Eric Hobsbawn
“O trabalho do historiador, porém, não consiste em demonstrar seus estados de alma e suas ‘posições’ escrevendo textos nostálgicos, mas a tornar um passado inteligível a partir de uma base documentada”
(Cortar o Mal pela Raiz! – pág. 98).
Por muito tempo os comunistas procuraram impor a sua própria historiografia do Século XX, em particular a historiografia do comunismo. Depois de terem, por décadas, desenvolvido um discurso alinhado com as teses soviéticas, esses historiadores foram surpreendidos pelo desmoronamento da União Soviética, desmantelamento do sistema comunista mundial e pela abertura dos arquivos. A grande maioria dos partidos comunistas perdeu a pretensão de elaborar “suas” histórias.
Todavia, após um tempo de flutuação, os velhos reflexos ressurgiram encarnados em quatro livros emblemáticos: A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawn, The Road to Terror, de J. Arch Getty e Oleg Naumov, Le Siècle des Communismes, dirigido por um grupo de universitários franceses, e Les Furies, de Arno Mayer. Todos eles são representativos das reações de três gerações de filocomunistas: a dos velhos marxistas e comunistas ocidentais – Hobsbawn nasceu em 1917 -, a geração acadêmica dos anos 70, influenciada pelos revisionistas norte-americanos e, por fim, a geração oriunda de 1968, esquerdistas e comunistas.
Eric Hobsbawn, autor marxista conhecido por seus trabalhos sobre o Século XIX, acreditou no projeto de dar uma continuidade ao “Era das Revoluções” com o “Era dos Extremos”, publicado em 1994. Esse livro pareceu tão ancorado na mitologia comunista que seu habitual editor francês recusou-se a publicá-lo, mas o Le Monde Diplomatique – órgão quase que oficial do marxismo terceiro-mundista – realizou sua edição em 1999, a fim de utilizá-lo em seu combate ao “ultraliberalismo” e à “globalização” – vocábulos neocomunistas que designam o capitalismo em geral e o imperialismo norte-americano em particular -, mas também contra os historiadores críticos do comunismo.
A “Era dos Extremos” apresenta uma ampla síntese do curto Século XX, que se inicia em 1 de agosto de 1914 (início da I Guerra Mundial) e se encerra em 19 de agosto de 1991 (data do confinamento de Gorbachev na Criméia, por três dias, por dirigentes do partido e da KGB contrários à perestroika).
No livro, Hobsbawn confunde a Revolução Bolchevique com a Revolução Democrática de fevereiro de 1917 e retoma o tema da “grande revolução proletária mundial”, mito criado por Lenin, que mantinha relações bastante longínquas com a realidade, já que o proletariado, além de pouco desenvolvido, não era necessariamente revolucionário.
O antifascismo é apresentado por Hobsbawn como um fenômeno central do período que, segundo seu entendimento, conheceu sua hora da verdade em 22 de junho de 1941 quando, com o ataque da Alemanha à URSS, o campo herdeiro do iluminismo do Século XVIII se viu unido contra o campo da reação e do obscurantismo.
Com essa abordagem, o historiador retém uma visão sumária do campo político europeu: de um lado o comunismo, do outro o fascismo, no qual ele não chega a distinguir entre nazismo, fascismo e regimes autoritários, e a direita liberal sendo vista apenas como uma aliada potencial do fascismo mas nunca como uma força democrática.
Hobsbawn finge ignorar que Lenin já havia sido denunciado por Trotsky, desde 1903, como um novo Robespierre e que os bolcheviques, e depois os comunistas, combateram com ferocidade a democracia representativa, a começar pelo primeiro gesto, altamente simbólico, que foi a interdição da Assembléia Constituinte russa em 18 de janeiro de 1918 e a repressão violenta aos seus partidários. Ou seja, Hobsbawn não quer admitir que a Revolução Bolchevique foi a primeira revolução antidemocrática da história moderna.
Ele não apenas desliza discretamente sobre os pactos germano-soviéticos de 1939, sobre a partilha da Polônia – nenhuma palavra sobre o Massacre de Katyn -, sobre a anexação dos países do Báltico e da Bessarábia por Stalin, como também não chega a evocar a guerra civil desencadeada pelos comunistas na Grécia em 1946, o “golpe de Praga” de 1948 ou o bloqueio econômico de Berlim em 1948-1949. E estima, evidentemente, que a Guerra Fria deveu-se àhisteria anticomunista surgida nos EUA.
Enfim, o socialismo realmente existente é, segundo Hobsbawn, um maravilhoso projeto de modernização acelerada da URSS que, mesmo tendo sido marcado por um custo sem dúvida excessivo, parece-lhe em parte justificado, não arrancando de sua parte qualquer palavra de compaixão pelas vítimas. Ele justifica assim a existência da URSS: a revolução bolchevique foi“a salvação do capitalismo liberal, pois permitiu ao Ocidente ganhar a 2ª Guerra Mundial, incitando também o capitalismo a se reformar e, paradoxalmente, em virtude da aparente imunidade da União Soviética à Grande Crise, a renunciar à ortodoxia do mercado”.
Trata-se de – paradoxo supremo para um cidadão britânico – ignorar que, no verão de 1940, em plena lua-de-mel germano-soviética, apenas a Grã-Bretanha, com a ajuda norte-americana, resistia a Hitler. Aliás, o capitalismo não esperou por Lenin nem Stalin para se reformar, limitar seus efeitos nocivos no campo social, submetendo-se à pressão reguladora do Estado, chegando finalmente ao que Hobsbawn é obrigado a classificar como “era dourada” – os anos 1950-1973 -. Essa era dourada, contudo, concerne somente à parte não-comunista do mundo, pois nesse mesmo período as populações submetidas a regimes comunistas curvavam-se ante o terror de Stalin, de Mao, de Ceaucescu e Pol Pot, e viviam uma miséria que era resultado direta da ideologia comunista aplicada ao campo econômico.
Hobsbawn apresenta o período posterior a 1973 como os anos de declínio e de uma nova catástrofe anunciada. Ora, ao contrário, os anos 1989-1991 foram marcados, no Leste-Europeu e na ex-URSS, por uma etapa na qual se seguia em direção à libertação dos povos e que se rumava, nessa sempre difícil jornada, para a democracia e para a prosperidade.
A seus críticos, Hobsbawn responde que “é um desafio para os historiadores serem obrigados a escrever a História como vencidos” (o seu caso). Curiosa maneira de posar de vítima, esquecendo que por várias décadas ele escreveu a História concebida “à luz do marxismo vitorioso” e do “futuro radiante” soviético.
Finalmente, Eric Hobsbawn dá a resposta a respeito das intenções de seu livro: “(...) Minha obra se apresenta como um esforço para repensar as posições de toda uma vida”. O trabalho do historiador, porém, não consiste em demonstrar seus estados de alma e suas “posições” escrevendo textos nostálgicos, mas a tornar um passado inteligível a partir de uma base documentada.
Certamente, não será indiferente ao leitor saber que a maior parte dos autores de O Livro Negro do Comunismo foram, com maior ou menor grau de intensidade, militantes comunistas e/ou revolucionário em sua juventude. Entretanto, eles não escreveram o livro para “repensar suas posições” do período militante de suas vidas, mas para estabelecer um painel histórico pouco conhecido, muitas vezes mal documentado e mantido como tabu por bastante tempo. Que esse trabalho histórico seja, para alguns autores, a chegada a uma reavaliação de seus itinerários pessoais, isso não interfere com o trabalho científico e interessa apenas aos autores, e muito secundariamente aos leitores.
Que A Era dos Extremos revele um acerto de contas de Hobsbawn consigo mesmo, o que será bastante útil a título de testemunho para os historiadores do futuro que procurem elucidar a militância no comunismo e a cegueira de grandes intelectuais ocidentais, mas isso nada nos ensina acerca da realidade do comunismo no poder e de seu peso sobre o Século XX.
Bibliografia:
Livro: Cortar o Mal pela Raiz! História e Memória do Comunismo na Europa, diversos autores sob a direção de Stéphane Courtois, editora Bertrand do Brasil, 2006.