Costuma-se dizer que só o Brasil se acha incapaz de criar, daí sujeitar-se humilhado à imitação. Nada verdadeiramente nacional, entre nós, tem o valor que está a merecer. Temos sempre que encontrar um similar estrangeiro, uma origem européia, uma criação norte-americana, de modo a satisfazer o nosso eterno complexo de povo subdesenvolvido.
Um sobrenome estrangeiro merece fé, pouco importando a competência e muito menos o caráter do indivíduo. E se o dono do sobrenome tem olhos azuis, tez branca e cabelos louros, vale dezenas de vezes mais do que o nosso mestiço com a sua tradição familiar de 400 anos de Brasil.
E o que dizer da língua que falamos? A nossa língua portuguesa falada por mais de 190 milhões de brasileiros, espalhados por este imenso país-continente de 8,5 milhões de quilômetros quadrados?
A tradição cultural do nosso povo, o poder de criação do brasileiro, a inventiva de nossa gente simples, que não perde a sua ironia e o seu jeito próprio de zombar dos fatos do dia-a-dia, cai por vezes no esquecimento e/ou é atribuído a sua criatividade a povos de outras plagas.
Assim é o vocábulo forró. Essa invenção excepcional do nosso povo, hoje motivo de alegria de todas as classes, já conhecida entre nós como forrobodó, com a sua forma alternada para forrobodança, desde o século XIX. Pois bem, o nosso forró, tão exaltado no cancioneiro do pernambucano Zé Dantas (José de Souza Dantas Filho), tem sua origem atribuída, por alguns menos avisados, a expressão inglesa for all (para todos) quando melhor se aplicaria everybody.
Para isso inventaram uma lenda, uma estória da carochinha, de que tal costume tivera início com os ingleses da The Great Western of Brazil Railway, quando promoviam seus bailes populares. A lenda, proclamada inicialmente por Luiz Gonzaga, inspirado, segundo ele próprio, no que lhe foi ensinado pelo engenheiro Luiz Siqueira, nunca veio a ser comprovada por nenhum dos antigos funcionários da Rede Ferroviária e muito menos por anúncio, cartaz ou qualquer outro documento de época.
Agora o forrobodó, como vernáculo expressando “divertimento, pagodeira, festança”, já o encontramos na pequena imprensa do Recife do século XIX (América Ilustrada, nº. 25/1882; O Mephistopheles, nº. 15/1883; O Alphinete, nº. 13/1890), sendo classificados por Rodrigues de Carvalho (Cancioneiro do Norte. Fortaleza, 1903) como “bailes da canalha”. A Pimenta (nº. 373/1905) assim registra: “forrobodó ou forrobodança é um baile mais aristocrático que o Chorão do Rio de Janeiro, obrigado a sanfona, reco-reco e aguardente…”.
E se ainda não estão convencidos, que recorram ao Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Cândido Figueiredo (Lisboa, 1913), Dicionário Musical Brasileiro, do Mário de Andrade, ao Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, do Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, ou ao novíssimo Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa; todos eles, sem exceção, consagrando o vocábulo forró como originário de forrobodó !!!. E agora, José?
Outra estorinha envolvendo ingleses também foi criada em torno do vocábulo baitola, também registrado pelo Aurélio e Houaiss, no seu sentido chulo de pederasta passivo, como de origem popular no Nordeste do Brasil. E, aliás, bitola em inglês é gauge…
E o mais engraçado de tudo isso, dentre as dezenas de exemplos que poderíamos citar, é o vocábulo madapolão, originário do topônimo indiano do mesmo nome e importante centro de tecelagem do algodão. Os caçadores de anglicismos, por sua vez, depois de inventar uma estória fantasiosa, teimam em atribuir a origem do vocábulo na expressão “Made in Poland” que, segundo eles, estaria impressa nos cortes dos tecidos de algodão (morim) importados da Polônia! – Será que aquele país é especialista na produção de tal produto?
Madapolão, na sua forma conhecida entre nós – tecido fino de algodão, para roupa branca, também chamado de morim –, já era de uso da nossa imprensa na primeira metade do século XIX, como registra o Diario de Pernambuco: “O negro fugiu com calça de brim, camisa de madapolão, e jaqueta de ganga azul”; Diario de Pernambuco, nº. 273/1831. Registra Pereira da Costa, reafirmando a origem indiana do vocábulo, que, pelos anos de 1850, “gozava de grandes créditos no nosso mercado um madapolão em cujas peças se viam estampadas estes versos: ‘Do Brasil foi remetido para Londres o algodão; / Volta agora bem tecido, / Neste bom madapolão’” (Vocabulário Pernambucano).
Explicando melhor Antônio Houaiss, no seu dicionário, dá a origem do topônimo: “Mádhavapalan na cidade de Narasapur (estado de Madras, costa oriental da Índia), onde se fabricava o tecido; prov. pelo fr. madapolam (d1823 madapolame) ‘id.’; f.hist. 1881 madapolan”.
Para os caçadores de anglicismos, galicismos ou quaisquer outros estrangeirismos, nada como a consulta a um bom dicionário. Origem inglesas de certas palavras ou expressões sim, em alguns casos; em outros, nem sempre.