#naovaitercopa pegou fogo no país do futebol
Pão e circo, diziam os romanos. Talvez esteja aí a essência da política, em todos os tempos. Por um lado, proporcionar ganhos materiais - pelo menos, a sobrevivência. Por outro, inventar fantasias, desejos, essa esfera da vida que não é objetiva, que não se mede, mas compete em importância com o interesse econômico. As pessoas não são loucas, não votarão sistematicamente contra suas vantagens. Por isso, quem quer arrochá-las sempre busca um pretexto, um tema nacionalista, religioso ou moralista. Aqui entra o circo, geralmente alegre, até exultante, mas às vezes sinistro. Quase tudo o que apela à imaginação humana pode dar em circo.
Lula pensou coroar três mandatos sucessivos do PT, marcados pela inclusão social em larga escala, inicialmente denominada "Fome Zero," com duas enormes festas, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Sem maldade nenhuma: depois do pão, o circo. Depois da fome saciada, a festa.
Deu errado. Deu? Ninguém poderia imaginar, um ano atrás, que a hashtag #naovaitercopa pegasse fogo no país do futebol. OK, até penso que a maioria dos brasileiros prefira os jogos da Copa às manifestações. Pode ser que estas últimas estejam sendo superdimensionadas. Mas mesmo assim é triste a esquerda (ou centro-esquerda, como considero mais exato) reagir aos gritos nas ruas evocando os que falam mais em jogos do que em política - os que ficam em casa, os que não soltam a voz, os que veem TV, em vez dos que protestam. "Maioria silenciosa" sempre foi um termo de direita, convém mal à esquerda.
A expressão "pão e circo" costuma ter sentido pejorativo. Entende-se: numa certa altura da história de Roma, quando a grande cidade já dominava praticamente todo o Mediterrâneo, a cidade - ou melhor, seus ricos, os patrícios, os que mandavam - dispôs de recursos para aplacar uma plebe que, no passado, várias vezes ameaçara sua dominação. Isso se obtinha distribuindo-se comida (o "pão") e promovendo-se espetáculos, entre os quais lutas de gladiadores. Aqui está a essência do populismo, que seus atuais críticos conservadores esquecem: ele é uma forma de privar o povo, os pobres, do poder que desejaria ter. O populismo é conservador. Chavez, Lula ou mesmo Vargas não são populistas no sentido de dar pão e circo no lugar de uma coisa maior - porque eles efetivamente melhoraram a condição dos pobres. Já em Roma, distribuir pão e circo foi um meio de não fazer a reforma agrária e de preservar o poder em mãos das velhas classes dominantes.
A rigor, não há sociedade política sem pão e sem circo, sem a satisfação material e a midiática - que substituiu, faz tempo, a espiritual, a tal ponto que várias religiões hoje são tributárias da mídia. Em princípio, é positivo que se preste maior atenção ao pão, porque ele diz respeito ao real interesse das pessoas. Cinquenta ou cem anos atrás, teríamos pregadores dizendo que não, que deveríamos priorizar a alma; hoje, esse tipo de discurso, nas democracias, só tem sucesso nas regiões culturalmente atrasadas dos Estados Unidos. Bill Clinton falava de pão quando adotou o mote "É a economia, estúpido!" Já seu sucessor, o segundo Bush, fez das guerras com os muçulmanos o seu circo, rapidamente perdendo o capital de simpatia obtido com o 11 de setembro.
Não é fácil dizer onde está o interesse real das pessoas, onde estará o seu pão, com os "upgrades" que pode ter numa sociedade desenvolvida. Políticas sociais, que a esquerda aplaude, a direita contesta. O circo também nem sempre é fácil. Até porque em nossa sociedade ambos, pão e circo, foram privatizados. A renda da maioria hoje vem da economia privada - ainda que os governos, com suas políticas, cumpram o papel crucial de estimular ou travar a economia. Já o circo pertence à mídia. O Big Brother, que recém terminou sua 14ª edição anual, é o exemplo mais escarrado. Mas ele embota o sentido crítico das pessoas? Atende a interesses políticos? Favorece a dominação?
As pessoas cultas dirão sim à primeira pergunta, independentemente de sua preferência partidária, mas se dividirão nas outras. Para a esquerda, reduzir o senso crítico da maioria favorece o controle da sociedade pelas classes proprietárias. Já os liberais não verão assim. Mas provavelmente enxergarão a Copa do Mundo como o grande circo do PT e, por isso, só por isso, não porque torçam contra a seleção canarinho, não verterão lágrimas se o circo não for um sucesso de audiência.
Melhor não mentir a si próprio. Qualquer partido que dispute a hegemonia no País adoraria sediar aqui a Copa. Mas quem fez isso foi o PT. Só que esse episódio coincide com a crise dos circos, pelo menos os flagrantes, em nossa política. Essa queda do circo talvez seja sinal de um certo amadurecimento dos costumes. Lamento que o declínio do papel político positivo da festa prejudique um partido que promoveu a inclusão social em escala inédita, um trabalho inconcluso, não por demérito do PT, mas pela dificuldade de uma tarefa que é demandada no Brasil pelo menos desde 1580 (eu dato a luta pela justiça social dos inícios do quilombo dos Palmares). Mas isso aconteceria, cedo ou tarde. Cobrar padrão FIFA para a saúde, a educação, a segurança e o transporte públicos hoje é um slogan contra o PT - pondo-se de lado a culpa dos Estados e municípios em temas que, na maior parte, são de sua responsabilidade constitucional - mas é também uma mudança cultural de monta, que veio para ficar. Isso, só podemos saudar - mesmo aqueles que irão aos estádios e torcerão pelo Brasil e pela festa. O povo quer mais pão, com manteiga ou mesmo convertido em brioche, e menos circo.
Pão e circo, diziam os romanos. Talvez esteja aí a essência da política, em todos os tempos. Por um lado, proporcionar ganhos materiais - pelo menos, a sobrevivência. Por outro, inventar fantasias, desejos, essa esfera da vida que não é objetiva, que não se mede, mas compete em importância com o interesse econômico. As pessoas não são loucas, não votarão sistematicamente contra suas vantagens. Por isso, quem quer arrochá-las sempre busca um pretexto, um tema nacionalista, religioso ou moralista. Aqui entra o circo, geralmente alegre, até exultante, mas às vezes sinistro. Quase tudo o que apela à imaginação humana pode dar em circo.
Lula pensou coroar três mandatos sucessivos do PT, marcados pela inclusão social em larga escala, inicialmente denominada "Fome Zero," com duas enormes festas, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Sem maldade nenhuma: depois do pão, o circo. Depois da fome saciada, a festa.
Deu errado. Deu? Ninguém poderia imaginar, um ano atrás, que a hashtag #naovaitercopa pegasse fogo no país do futebol. OK, até penso que a maioria dos brasileiros prefira os jogos da Copa às manifestações. Pode ser que estas últimas estejam sendo superdimensionadas. Mas mesmo assim é triste a esquerda (ou centro-esquerda, como considero mais exato) reagir aos gritos nas ruas evocando os que falam mais em jogos do que em política - os que ficam em casa, os que não soltam a voz, os que veem TV, em vez dos que protestam. "Maioria silenciosa" sempre foi um termo de direita, convém mal à esquerda.
A expressão "pão e circo" costuma ter sentido pejorativo. Entende-se: numa certa altura da história de Roma, quando a grande cidade já dominava praticamente todo o Mediterrâneo, a cidade - ou melhor, seus ricos, os patrícios, os que mandavam - dispôs de recursos para aplacar uma plebe que, no passado, várias vezes ameaçara sua dominação. Isso se obtinha distribuindo-se comida (o "pão") e promovendo-se espetáculos, entre os quais lutas de gladiadores. Aqui está a essência do populismo, que seus atuais críticos conservadores esquecem: ele é uma forma de privar o povo, os pobres, do poder que desejaria ter. O populismo é conservador. Chavez, Lula ou mesmo Vargas não são populistas no sentido de dar pão e circo no lugar de uma coisa maior - porque eles efetivamente melhoraram a condição dos pobres. Já em Roma, distribuir pão e circo foi um meio de não fazer a reforma agrária e de preservar o poder em mãos das velhas classes dominantes.
A rigor, não há sociedade política sem pão e sem circo, sem a satisfação material e a midiática - que substituiu, faz tempo, a espiritual, a tal ponto que várias religiões hoje são tributárias da mídia. Em princípio, é positivo que se preste maior atenção ao pão, porque ele diz respeito ao real interesse das pessoas. Cinquenta ou cem anos atrás, teríamos pregadores dizendo que não, que deveríamos priorizar a alma; hoje, esse tipo de discurso, nas democracias, só tem sucesso nas regiões culturalmente atrasadas dos Estados Unidos. Bill Clinton falava de pão quando adotou o mote "É a economia, estúpido!" Já seu sucessor, o segundo Bush, fez das guerras com os muçulmanos o seu circo, rapidamente perdendo o capital de simpatia obtido com o 11 de setembro.
Não é fácil dizer onde está o interesse real das pessoas, onde estará o seu pão, com os "upgrades" que pode ter numa sociedade desenvolvida. Políticas sociais, que a esquerda aplaude, a direita contesta. O circo também nem sempre é fácil. Até porque em nossa sociedade ambos, pão e circo, foram privatizados. A renda da maioria hoje vem da economia privada - ainda que os governos, com suas políticas, cumpram o papel crucial de estimular ou travar a economia. Já o circo pertence à mídia. O Big Brother, que recém terminou sua 14ª edição anual, é o exemplo mais escarrado. Mas ele embota o sentido crítico das pessoas? Atende a interesses políticos? Favorece a dominação?
As pessoas cultas dirão sim à primeira pergunta, independentemente de sua preferência partidária, mas se dividirão nas outras. Para a esquerda, reduzir o senso crítico da maioria favorece o controle da sociedade pelas classes proprietárias. Já os liberais não verão assim. Mas provavelmente enxergarão a Copa do Mundo como o grande circo do PT e, por isso, só por isso, não porque torçam contra a seleção canarinho, não verterão lágrimas se o circo não for um sucesso de audiência.
Melhor não mentir a si próprio. Qualquer partido que dispute a hegemonia no País adoraria sediar aqui a Copa. Mas quem fez isso foi o PT. Só que esse episódio coincide com a crise dos circos, pelo menos os flagrantes, em nossa política. Essa queda do circo talvez seja sinal de um certo amadurecimento dos costumes. Lamento que o declínio do papel político positivo da festa prejudique um partido que promoveu a inclusão social em escala inédita, um trabalho inconcluso, não por demérito do PT, mas pela dificuldade de uma tarefa que é demandada no Brasil pelo menos desde 1580 (eu dato a luta pela justiça social dos inícios do quilombo dos Palmares). Mas isso aconteceria, cedo ou tarde. Cobrar padrão FIFA para a saúde, a educação, a segurança e o transporte públicos hoje é um slogan contra o PT - pondo-se de lado a culpa dos Estados e municípios em temas que, na maior parte, são de sua responsabilidade constitucional - mas é também uma mudança cultural de monta, que veio para ficar. Isso, só podemos saudar - mesmo aqueles que irão aos estádios e torcerão pelo Brasil e pela festa. O povo quer mais pão, com manteiga ou mesmo convertido em brioche, e menos circo.
15 de abril de 2014
Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico