A corrupção enfeia nossos corpos e apaga a luz que brilharia em nossas almas, com a corrupção ninguém faz uma casa de boas pedras, com a corrupção ninguém pinta um paraíso no muro de uma igreja, nenhuma pintura será feita para durar nem para brilhar diante de nossos olhos, com a corrupção seu pão cada vez mais será de farrapos dormidos, seu pão será seco como papel sem trigo da montanha e sem nutritiva farinha, com a corrupção ninguém encontra um bom sítio para fazer sua casa, os tecelões são afastados de seus teares, a corrupção embota a agulha nas mãos das donzelas e desbota a graça dos tecidos, Dante não nasceu da corrupção, nem Piero della Francesca, nem Giotto, a corrupção enferruja o cinzel do escultor e as estátuas não se erguem, o azul vira um câncer na corrupção e não se bordam de ouro as vestes púrpuras, a corrupção apunhala a criança no ventre e a esmeralda não será lapidada e mata o prazer dos jovens amantes deitando entre seus corpos paralisados na cama, cadáveres sentarão na mesa dos banquetes sob as ordens da corrupção, a corrupção é obesa, a corrupção cria esposas desprezadas se consumindo e amantes cobertas de pérolas e juras de amor, a corrupção cria súbita dignidade em tribunais, cria ladrões de olhos em brasa, dedos espetados, uivos de falsas virtudes, negando os contratos de gaveta, os recibos falsos, os laranjas desdentados nas portas de empresas inexistentes.
A corrupção provoca brados de honradez, socos nas mesas, babas indignadas nas negações em tribunais, hipócritas lágrimas de esguicho, punhos batidos no peito e clamores a Deus. A corrupção se sente superior à ridícula moralidade de classe média. A corrupção tem uma única vontade: vingar-se de inimigos, cobrar lealdade dos seguidores, exigir pagamentos de propina em dia.
A corrupção cria firmas sem dono, sem obras, vagando num deserto jurídico e contábil que leva ao caos proposital, a corrupção aumenta a amizade entre as famílias de safados, cria os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos cantos das varandas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices, os charutos comemorativos, vastos jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas, dichotes, sacanagens jucundas.
A corrupção valoriza a norma castiça da língua, palavras que dormem em estado de dicionário. A corrupção traz de volta interjeições e adjetivos raros: “ilibado”, “despautério”, “infâmias”, “aleivosias”... A corrupção é o paraíso dos advogados, com ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste, “chicanas” decoradas, diplomas comprados.
Com a corrupção, malas pretas voam em todas as direções, os dólares flutuam nos céus estrelados, as luas são sempre minguantes, os rostos nunca mostram o que pensam, as gargalhadas soam como latidos, as bocas salivam, os punhais saem das bainhas, os carros atropelam, as finas cordas apertam os pescoços, os assassinos se fartam, os olhos do povo olham impotentes. A corrupção confunde, é um labirinto, uma grande aranha em sua teia, a corrupção cria firmas em sanfona, uma dentro da outra, subsidiárias sem obras, vagando num labirinto jurídico e contábil que leva a um caos indecifrável, pois o emaranhado de roubalheiras dificulta apurações. No imaginário brasileiro, a corrupção tem uma aura heroica.
São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. A corrupção é a mola mestra do atraso. A corrupção mostra que os lírios que apodrecem fedem mais que as ervas daninhas (Shakespeare). A corrupção desenha as caras deformadas de políticos, as barrigas, a gomalina dos cabelos, a boçalidade dos discursos, tudo compondo um estafermo fabricado com detritos de vergonhas passadas, cérebros encolhidos, olhos baços, irresponsabilidades fiscais, municípios apodrecidos, decapitações, ônibus em fogo. A corrupção escolhe seus peões entre os mais espertos dentre os mais rombudos e boçais. A corrupção transforma a estupidez em uma estranha forma de inteligência, uma rara esperteza para golpes sujos e sacos-puxados.
A corrupção é fabricada entre angus e feijoadas do interior, em favores de prefeituras, em pequenos furtos municipais, em conluios perdidos nos grandes sertões. A corrupção é a torta escultura feita de palha e barro, de gorjetas, de sobras de campanha, de canjica de aniversários e água benta de batismos. A corrupção explica o país, pois tem raízes e tradição: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. A corrupção durante quatro séculos criou capitanias, igrejas, congressos, golpes e tomadas de poder. A corrupção tem um vago sentimento de poesia brasileira. A corrupção para muitos se julga revolucionária, roubando para um futuro imaginário e mentiroso, para enganar otários cheios de esperança. A corrupção é um rabo de lagarto que sempre se recompõe, renasce quando cortado.
A corrupção cria, esculpe, organiza as imposturas, as perfídias, os sepulcros caiados, os beijos de Judas, os abraços de tamanduá, as lágrimas de crocodilo.
(*) Com gratidão a Ezra Pound por seu “Canto XLV” — “A usura”.
30 de dezembro de 2014
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista. Originalmente publicado em O Globo e no Estadão em 30 de dezembro de 2014.