“A ditadura do proletariado é a dominação não restringida pela lei e baseada na força” (Lenin, em “O Estado e a Revolução”)
Todos os anos, no mês de janeiro, as esquerdas nacional e internacional de todos os matizes recordaram o aniversário da morte de Lenin, organizador do golpe de Estado bolchevique em outubro de 1917 e fundador do Estado soviético. Em janeiro de 2015 serão 101 anos. Será que os comunistas ainda o recordarão?
Nessa oportunidade, os comunistas certamente recolheram e publicaram opiniões sobre ele, emitidas por personalidades em todo o mundo. Opiniões que em sua grande maioria apareceram falseadas pelo desconhecimento da verdadeira História, seja pela propaganda, seja pelo oportunismo político. Nessas circunstâncias é propício recordar o que pensavam de Lenin e seus métodos no partido e no governo aqueles que o conheceram, seus companheiros, os velhos bolcheviques, os marxistas de outras tendências e personalidades diversas da política e da cultura russa de sua época.
A revolucionária alemã Rosa Luxemburgo, que em tantas batalhas políticas atuou junto a Lenin, também o criticou severamente em diversas questões, como a ultra-centralização do partido, as depredações, os assaltos e as chamadas expropriações. Depois de sua morte, em janeiro de 1919, em Berlim, foi canonizada pelos comunistas porém, na União Soviética, pelo menos até a morte de Lenin, nunca se conheceu a sua última e definitiva opinião sobre a revolução bolchevique, escrita em 1918:
“Certamente, toda instituição democrática tem seus limites e defeitos, características compartilhadas com todas as demais instituições humanas. Porém, o remédio encontrado por Lenin e Trotsky, que foi a eliminação da democracia como tal, foi pior que a enfermidade que supostamente iria curar, porque obstruiu a verdadeira fonte viva, a única da qual pode surgir a retificação de todos os defeitos naturais das instituições sociais. Essa fonte é a vida pública ativa, livre e vigorosa das grandes massas populares(...). A liberdade somente para aqueles que apóiam o governo, somente para os membros de um partido, por mais numeroso que seja – não é liberdade em absoluto. A liberdade é sempre e exclusivamente para aquele que pensa diferente. E não devido a um conceito fanático de ‘justiça’, e sim porque tudo o que é educativo, beneficente e purificador depende dessa característica essencial, e sua eficácia se desvanece quando a liberdade se transforma em um privilégio especial” (“A Revolução Russa”, Rosa Luxemburgo, Berlim, 1922).
O pai do marxismo russo e professor de Lenin, Guiorgui Plekanov, rompeu com seu discípulo totalitário e profetizou o que seria a futura vida do partido baseado nos princípios organizativos de Lenin. Plekanov, em março de 1904, escreveu que se o Comitê Central outorga a si próprio o direito de eliminar qualquer membro do partido, então, com um Congresso em perspectiva “o Comitê Central liquida todos os elementos que lhe desagradem, localiza suas próprias criaturas, preenchendo todos os comitês com esses indivíduos, assegura uma maioria totalmente submissa no Congresso. O Congresso, assim constituído, aprova todos os seus êxitos e fracassos e aplaude todos os seus planos e iniciativas”. Anos mais tarde, em seu jornal “Yedinstvo”, Plekanov denunciou a estreita convivência de Lenin com agentes alemães e as somas recebidas pelos bolcheviques para realizar propaganda derrotista no Exército e organizar a revolução.
Também são conhecidas as opiniões de Trotsky, organizador, junto com Lenin, do golpe de Estado bolchevique e criador do Exército Vermelho. Já em 1904 ele percebeu claramente as características negativas da personalidade política de Lenin, a quem descreveria como “um déspota e terrorista que trata de converter o Comitê Central do partido em um Comitê de Saúde Pública, com a finalidade de poder desempenhar o papel de Robespierre”.
Trotsky assinalou que se algum dia Lenin subisse ao Poder “todo o movimento internacional do proletariado seria acusado de ‘moderado’ por um tribunal revolucionário e a primeira a cair na guilhotina seria a cabeça de Marx”. Foi também profético ao advertir que quando Lenin falava da ditadura do proletariado, na realidade queria referir-se a “uma ditadura sobre o proletariado”.
O bolchevique Vlacheslav Menzhinsky, que mais tarde seria Comissário das Finanças e chefe da OGPU, polícia secreta soviética, uns 15 meses antes do golpe de Estado bolchevique, escreveu que “Lenin é um jesuíta político que desde muitos anos vem adaptando o marxismo a seus objetivos do momento (...). Lenin, esse filho ilegítimo do absolutismo russo, não apenas se considera o sucessor natural ao trono da Rússia, quando ele fique vago, como também é o único herdeiro da Internacional Socialista. Se algum dia chegar ao Poder, o dano que poderá fazer não será menor que o de Paulo I” (referência ao Czar louco, anterior a Alexandre I).
O Comissário de Educação Lunarcharsky, por sua vez, já nos primeiros dias do regime bolchevique, previu que a ditadura do proletariado levaria a uma ditadura unipessoal. Em um discurso ao Comitê do partido de Petrogrado, em 1 de novembro de 1917, expressou: “Nós temos nos afeiçoado muito à guerra, como se não fossemos operários e sim soldados, um partido de militares (...). No partido nos entregamos à polêmica e continuaremos assim, porém, restará um homem: um ditador” (citado por Trotsky em “A Escola Stalinista da Falsificação”, Berlim, 1932). Anos mais tarde, em um longo artigo, Lunarcharsky escreveu com certa ironia: “Lenin trabalha de maneira intensa, não porque lhe goste o Poder, e sim porque está certo de não se equivocar (...). Seu amor ao Poder nasce de sua tremenda segurança e da correção de seus princípios (...) da incapacidade de ver desde o ponto de vista de seus adversários”(“Retratos Revolucionários”, Moscou, 1923).
O dirigente bolchevique Alexander Lozovsky, que viria a ser o dirigente máximo da Internacional Sindical Vermelha, escreveu em novembro de 1917, dias depois do golpe de Estado bolchevique: “Não posso calar, em nome da disciplina do partido, quando vejo a liquidação da imprensa dissidente, batidas, prisões arbitrárias e perseguições (...). Não posso calar e fazer-me moral e politicamente responsável, quando o chefe da fração do partido declara que por cada um dos nossos mataremos cinco inimigos (...). Não posso calar em nome da disciplina do partido, quando o Comitê Militar Revolucionário decide arbitrariamente o destino da Nação, quando publica decretos fantásticos estabelecendo tribunais especiais, quando intervém na administração do país, além dos assuntos militares” (Rabochaya Gazieta, periódico operário, 18 de novembro de 1917).
Em novembro de 1917, apenas um mês após o golpe de Estado, dez dirigentes comunistas abandonaram o governo em protesto pelo terror que havia começado desde os primeiros dias. Em sua declaração propuseram um acordo com todos os partidos socialistas e o fim imediato da guerra dentro da “democracia revolucionária”. A declaração expressava: "Pensamos que, ao contrário, só há um caminho possível: a manutenção de um governo exclusivamente bolchevique por meio do terror político. Esse é o caminho eleito pelo Conselho de Comissários do Povo. Nós não podemos seguí-lo. Parece-nos que esse caminho conduz a que as organizações de massa proletária se afastem do controle da vida política, ao estabelecimento de um regime irresponsável e à ruína da revolução e do país” (citado por Trotsky em “Obras”, Moscou, 1924).
O chefe indiscutível da fração menchevique do Partido Social Democrata Russo, Julius Martov, em 1920 denunciou o terror leninista ante os delegados, inclusive soviéticos, reunidos em sessão especial do Partido Socialista Independente da Alemanha. Dirigindo-se à assembléia, Martov expressou: “Uma evidência suficiente da amplitude do terror é constituída pelo fato de que as esposas dos opositores políticos e seus filhos são tomados como reféns e que em muitos casos esses reféns têm sido fuzilados em vingança pelos atos de seus maridos e pais (...). Porém, o sistema de terror não se limita apenas aos assassinatos. Há prisões em massa, supressão de toda liberdade de imprensa e reunião, condenações a trabalhos forçados sem julgamento prévio, castigos diários por greves ou quaisquer tipos de ações coletivas empreendidas pelos operários e, finalmente, como o reconhece o próprio Zinoviev, condenações ao exílio de operários pertencentes ao Partido Comunista pelo fato de atreverem-se a criticar seus dirigentes” (Atas do Congresso Extraordinário do Partido Socialista Independente, Berlim, 1920).
O pai do anarquismo revolucionário russo, Piotr Kropotkin, em dezembro de 1920 escreveu a Lenin: “É possível que você não saiba que um refém é um homem que não está preso por um crime que tenha cometido e sim porque a seus inimigos lhes convém exercer chantagem sobre seus companheiros? (...) Se você admite esses métodos, então um dia você usará a tortura, como na Idade Média (...). Os governantes dos países onde existe a monarquia abandonaram, há muito tempo, os meios de defesa agora introduzidos na Rússia com a tomada de reféns (...). Que futuro terá o comunismo quando um dos seus mais importantes defensores pisoteia dessa forma todo o honrado sentimento humano?” (citado por Lazar Volin em “Kropotin e seus Ensinamentos”, Chicago, 1931).
Dirigente da velha guarda bolchevique e membro da Oposição Operária dentro do partido, coordenada por Lenin em 1921, Myasnikov escreveu em um livro publicado anos depois no estrangeiro: “Os operários e camponeses sem partido foram proibidos de criticar a toda poderosa burocracia; quer dizer, não podem publicar jornais, revistas e nem livros em desacordo com as doutrinas da burocracia ou a linha do partido. Tampouco podem efetuar reuniões e nem se organizar em grupos. Porém, os membros do partido também estão proibidos de fazer críticas. Se eles tentam defender seus próprios pontos de vista, buscando persuadir a maioria do partido, são tratados com tanta ferocidade e selvageria que inclusive torna humano o torpe tratamento dado aos comunistas nos tribunais fascistas italianos. Nós temos tribunais abertos para ladrões, assassinos, violadores, dilapidadores, guardas brancos, generais, capitalistas e seus agentes porém, os membros dissidentes do proletariado, os camponeses e os intelectuais, desaparecem secretamente nos sótãos da GPU” (“O Engano de Turno”, Paris, 1931).
Esse é o regime que alguns, disfarçados de trabalhadores, ainda tentam implantar em nosso país.
09 de janeiro de 2015
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.