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"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville (1805-1859)
"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville (1805-1859)
"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
GOVERNOS, PANDEMIAS E A GRANDE DEPRESSÃO DO SÉCULO XIV
Uma lição sobre as consequências não-premeditadas do intervencionismo
Quase todas as pessoas — e os historiadores não são exceção — são tentadas a crer que o progresso econômico e cultural é um fenômeno contínuo e ininterrupto.
Quase todas as pessoas — e os historiadores não são exceção — são tentadas a crer que o progresso econômico e cultural é um fenômeno contínuo e ininterrupto.
A crença é a de que, a cada século, as pessoas estão em melhor situação do que estavam no século anterior. Essa confortável presunção teve de ser abandonada bem precocemente quando, após o colapso do Império Romano, iniciou-se a Idade das Trevas.
Sempre se afirmava que, após o "renascimento" do século XI, o progresso na Europa Ocidental havia sido bastante linear e contínuo desde aquele ponto até os dias atuais. Entretanto, foram necessários os heróicos esforços — empreendidos ao longo de várias décadas — de historiadores econômicos como os professores Armando Sapori e Robert Sabatino Lopez para finalmente convencer os historiadores de que houve um grave declínio secular na maior parte da Europa Ocidental no período que vai desde aproximadamente 1300 até meados do século XV; um período que pode ser chamado de Baixa Idade Média ou a era inicial do Renascimento.
Esse declínio secular, incorretamente intitulado como uma mera "depressão", permeou quase toda a Europa Ocidental, com a exceção de algumas poucas cidades-estados italianas.
O declínio econômico foi marcado por uma severa queda na população. Desde o século XI, o crescimento econômico e a prosperidade haviam impulsionado as cifras populacionais. A população total da Europa Ocidental, estimada em 24 milhões no ano 1.000 d.C., havia saltado para 54 milhões já no ano 1340.
No entanto, em pouco mais de um século, de 1340 a 1450, a população europeia ocidental foi reduzida de 54 milhões para 37 milhões, uma queda de 31% em apenas um século.
A batalha para se estabelecer como verdadeira a ocorrência do grande declínio foi bem sucedida; no entanto, foi muito pouco efetiva para estabelecer a causa ou as causas desse desastre.
O enfoque dado à devastação causada pelos surtos da Peste Negra em meados do século XIV é parcialmente correto, porém superficial, pois esses surtos foram eles próprios causados por um colapso econômico e por uma consequente queda no padrão de vida que haviam começado ainda no início daquele século.
Tributações, confiscos e destruição da Igreja: as causas de tudo
As causas da grande depressão da Europa Ocidental podem ser resumidas em uma rígida, simples e completa frase: a recém-imposta soberania do estado.
Durante a síntese medieval da Alta Idade Média (séculos XI, XII e XIII), havia um equilíbrio de poder entre Igreja e estado, com a Igreja sendo ligeiramente mais poderosa. No século XIV, esse equilíbrio foi quebrado, e o conceito de estado-nação tornou-se predominante. O poder da Igreja foi quebrado e os estados começaram a impor tributos e regulamentações, a controlar as pessoas e a provocar devastações por meio de uma guerra virtualmente contínua, que durou mais de um século (a Guerra dos Cem Anos, de 1337 a 1453).[1]
O primeiro e decisivamente mais importante passo rumo à ascensão do poder do estado em detrimento da economia, a qual foi sendo continuamente enfraquecida, foi a destruição das feiras de Champagne.
Durante a Alta Idade Média, as feiras de Champagne eram o principal centro do comércio internacional, além de ser o centro de distribuição de todo o comércio local e regional. Essas feiras haviam sido cuidadosamente criadas, cultivadas e fomentadas para serem zonas livres, não tributadas e não reguladas por reis ou aristocratas franceses, ao mesmo tempo em que a justiça era rápida e eficientemente distribuída por tribunais privados ou tribunais mercantis, que operavam em regime de livre concorrência.
As feiras de Champagne atingiram seu apogeu durante o século XIII, e se tornaram o centro do comércio terrestre das mercadorias que eram transportadas ao longo dos Alpes no norte da Itália, vindas de lugares longínquos.
E então, no início do século XIV, Filipe IV, o Belo, rei da França (1285—1314), deu início ao processo de tributação, espoliação e, efetivamente, de destruição das vitalmente importantes feiras de Champagne. Para financiar suas perpétuas guerras dinásticas, Filipe impôs às feiras de Champagne um rígido imposto sobre vendas. Ele também destruiu o capital e as finanças domésticas ao impor repetidos tributos confiscatórios sobre grupos ou organizações que lidavam com dinheiro.
Em 1308, ele destruiu a rica Ordem dos Templários, confiscando seus fundos e desviando-os para o tesouro real.
Em seguida, Filipe impôs em sequência uma série de tributos e confiscos severos e debilitantes sobre os judeus e os italianos do norte da Itália (da Lombardia), que eram os grupos mais importantes das feiras: em 1306, 1311, 1315, 1320 e 1321. Ademais, em guerra com os flamengos (belgas da região de Flandres), Filipe aboliu o tradicional e antigo costume de todos os mercadores serem bem-vindos às feiras, decretando a exclusão dos flamengos.
O resultado dessas medidas foi um rápido e permanente declínio das feiras de Champagne e da tradicional rota do comércio ao longo dos Alpes. Desesperadoramente, as cidades-estados da Itália começaram a reconstituir as rotas comerciais e a enviar embarcações para Bruges, passando pelo Estreito de Gibraltar. Essa rota começou a prosperar mesmo com a região de Flandres em declínio.
Foi algo particularmente fatídico que Filipe, o Belo, tenha inaugurado o sistema de tributação regular na França. Antes disso, não havia impostos regulares. Na era medieval, embora o rei supostamente fosse o todo-poderoso dentro de sua esfera de domínio, essa esfera era restringida pela santidade da propriedade privada. O rei supostamente deveria ser um braço armado da lei e um mantenedor da ordem, e suas receitas supostamente deveriam advir dos aluguéis cobrados sobre as terras reais, e das taxas e pedágios feudais. Não havia nada que pudesse ser classificado de tributação regular. Em uma emergência, tal como uma invasão ou o início de uma cruzada, o príncipe, além de invocar o dever feudal de seus vassalos de lutar em nome dele, poderia também pedir-lhes um subsídio. Mas tal ajuda seria requisitada em vez de ordenada, e teria sua duração limitada ao período da emergência.
As guerras perpétuas do século XIV e da primeira metade do século XV começaram na década de 1290, quando Filipe, o Belo, tirando proveito da guerra conduzida pelo rei Eduardo I de Inglaterra contra a Escócia e o País de Gales, apossou-se da província da Gasconha, tomando-a da Inglaterra. Isso deu origem a um contínuo embate militar envolvendo, de um lado, Inglaterra e Flandres, e do outro, a França, fazendo com que tanto a coroa inglesa quanto a francesa ficassem desesperadas por novos fundos para financiar essa aventura militar.
Os mercadores e capitalistas das feiras de Champagne podiam ter dinheiro, mas o maior e mais tentador alvo para a espoliação real era a Igreja Católica. Ambos os monarcas da Inglaterra e da França começaram a tributar a Igreja, o que os colocou em rota de colisão com o papa.
O papa Bonifácio VIII (1294—1303) resistiu de maneira resoluta a essa nova forma de pilhagem, e proibiu os monarcas de tributarem a Igreja. O rei Eduardo reagiu a esta resistência papal negando à Igreja acesso à justiça dos tribunais reais, ao passo que Filipe foi mais combativo: proibiu a Igreja de transferir suas receitas da França para Roma.
Bonifácio foi forçado a recuar e a permitir a tributação, mas sua bula Unam Sanctam (1302) insistiu em afirmar que toda autoridade temporal deve ser subordinada à espiritual. Isso enfureceu Filipe, que audaciosamente sequestrou o papa na Itália e fez todos os preparativos para julgá-lo por heresia, um julgamento que só não se consumou porque Bonifácio, já velho, morreu antes.
Após essa ocorrência, Filipe, o Belo, tomou para si próprio o papado, e mudou a sede da Igreja Católica Romana de Roma para Avignon, onde ele próprio passou a se designar papa. Durante praticamente todo o século XIV, o papa, em seu "cativeiro babilônico", foi apenas um instrumento abjeto do rei francês; o papa iria retornar a Roma somente no início do século XV.
Desta forma, a até então poderosa Igreja Católica, poder dominante e autoridade espiritual durante toda a Alta Idade Média, havia sido apequenada, reduzida e transformada praticamente em uma vassala do saqueador real da França.
O declínio da autoridade da Igreja, portanto, deu-se paralela e simultaneamente à ascensão do poder do estado absoluto. Não contente em confiscar, espoliar, tributar e destruir as feiras de Champagne, além de colocar a Igreja Católica sob seu tacão, Filipe, o Belo, também decidiu obter receitas adicionais para suas guerras eternas por meio da adulteração da cunhagem de moedas[2], o que gerou uma inflação secular.
As consequências
As guerras do século XIV não geraram um grande volume de devastação direta: os exércitos eram pequenos e as hostilidades, intermitentes. A principal devastação veio com os pesados impostos, com a inflação monetária e com o grande endividamento do estado para financiar as perpétuas aventuras reais.
O enorme aumento da tributação foi o aspecto mais debilitante das guerras. As despesas da guerra: recrutamento de um exército de tamanho moderado, pagamento dos salários dos soldados, suprimentos e fortificações — tudo isso custou de duas a quatro vezes os gastos habituais da Coroa. Acrescente a isso os altos custos da determinação, fiscalização e imposição/aplicação dos tributos, bem como os custos dos empréstimos tomados — e o fardo economicamente debilitante gerado pela tributação para financiar a guerra se torna demasiado claro.
Os novos impostos estavam por todos os lados. Vimos os graves efeitos dos impostos sobre a Igreja; em uma grande fazenda monástica, os impostos frequentemente absorviam mais de 40% dos lucros líquidos dessa fazenda. Um imposto per capita uniforme, de um xelim, criado pela Coroa Inglesa em 1380, infligiu grandes dificuldades e privações sobre camponeses e artesãos. O tributo equivalia a um mês de salário dos trabalhadores agrícolas e a uma semana de salário dos trabalhadores urbanos.
Ademais, dado que muitos trabalhadores e camponeses pobres eram pagos em bens em vez de em dinheiro, acumular e ajuntar o dinheiro necessário para pagar o tributo era particularmente difícil.
Foram criados outros novos tributos, como impostos ad valorem (de acordo com o valor) sobre todas as transações; impostos sobre a venda de bebidas no atacado e no varejo; e impostos sobre o sal e a lã. Para combater a sonegação, os governos estabeleceram mercados monopolistas para a venda de sal na França e "pontos específicos" para o comércio de lã na Inglaterra.
Os impostos restringiram a oferta e elevaram os preços, paralisando o crucial comércio de lãs na Inglaterra. A produção e o comércio foram adicionalmente afetados por volumosos confiscos para fins belicistas impetrados pelos reis, o que provocou uma drástica queda da renda e da riqueza, bem como inúmeras falências entre os produtores.
Em suma, os consumidores sofriam com os preços artificialmente altos e os produtores sofriam com os retornos cada vez menores, sendo que esse diferencial era confiscado da economia pelo rei. Os empréstimos contraídos pelos governos serviram para piorar ainda mais a situação, dado que os reis deram seguidos calotes nas dívidas, o que gerou grandes prejuízos e falências entre os banqueiros privados que foram tolos o bastante para emprestar para o governo.
O resultado foi uma grande depressão econômica.
Criados como uma resposta para a "emergência" gerada por épocas de guerra, os novos impostos acabaram se tornando permanentes: não somente porque as operações militares duraram mais de um século, mas porque o estado, sempre à procura de uma desculpa para aumentar suas receitas e seu poder, aproveitou a oportunidade de ouro para converter esses impostos criados especificamente para épocas de guerra em uma parte permanente da cultura nacional.
Surge a pandemia - e as regulações trabalhistas
De meados do século XIV até o seu fim, a Europa foi assolada pela devastadora pandemia da Peste Negra — a peste bubônica —, a qual, no curto período de 1348—1350, dizimou completamente um terço da população.
A Peste Negra foi em grande medida uma consequência da redução do padrão de vida das pessoas, causada pela grande depressão e pela resultante perda de resistência física e imunológica à doença. A praga continuou ocorrendo em surtos periódicos — embora não em forma tão virulenta quanto a primeira — durante todas as décadas do século.
Tão grande é o poder recuperativo da raça humana, que essa enorme tragédia não gerou duradouros e catastróficos efeitos sociais ou psicológicos entre a população europeia. De certo modo, o mais longevo efeito danoso gerado pela Peste Negra foi a reação da Coroa Inglesa, que impôs sobre a sociedade um permanente controle de salários e um racionamento compulsório da mão-de-obra.
O súbito declínio da população e a consequente duplicação do valor dos salários (pois a mão-de-obra disponível ficou escassa) foram combatidos pelo governo por meio de uma severa imposição de um teto salarial determinado pelo Decreto de 1349 e pelo Estatuto dos Trabalhadores de 1351. O teto salarial foi criado a pedido da classe patronal: grandes, médios e pequenos proprietários de terra, bem como artesãos mestres, os primeiros particularmente alarmados com o aumento dos salários agrícolas.
O decreto e o estatuto desafiaram as leis econômicas ao tentar fixar um teto salarial no mesmo nível dos salários vigentes antes da pandemia. O inevitável resultado, entretanto, foi uma grave escassez de mão-de-obra, uma vez que, ao nível salarial determinado pelo estatuto, a demanda por mão-de-obra era amplamente maior do que a agora escassa oferta.
Toda intervenção governamental cria novos problemas enquanto tenta infrutiferamente resolver os antigos. Consequentemente, o governo se vê confrontado por duas escolhas: criar novas intervenções para solucionar os novos e inexplicáveis problemas, ou revogar a intervenção original. O instinto do governo, obviamente, é o de maximizar sua riqueza e poder criando novas intervenções.
E foi isso o que fez o Estatuto dos Trabalhadores inglês: impôs trabalho forçado, ao nível salarial vigente antes da Peste, a todos os homens da Inglaterra que tivessem menos de 60 anos de idade; restringiu a mobilidade da mão-de-obra, declarando que o senhor de um dado território tinha o direito prioritário sobre a força de trabalho de um homem; e tornou crime um empregador dar emprego para um trabalhador que havia deixado seu ex-patrão.
Desta maneira, o governo inglês impôs o racionamento da mão-de-obra para tentar manter os trabalhadores nas mesmas profissões que ocupavam antes da pandemia, e recebendo os mesmos salários daquela época.
Esse racionamento compulsório da mão-de-obra foi um ataque à inclinação natural do homem de procurar empregos que pagam salários mais altos. Assim, o inevitável surgimento de um mercado negro para a mão-de-obra dificultou a aplicação e a imposição dos estatutos.
A desesperada Coroa Inglesa tentou mais uma vez, com o Estatuto de Cambridge de 1388, tornar o racionamento ainda mais rigoroso. Todo e qualquer tipo de mobilidade da mão-de-obra foi proibida. Trabalhadores só poderiam transitar de um emprego para outro com uma permissão escrita das autoridades judiciárias locais. O trabalho infantil compulsório foi imposto na agricultura.
Mas esse cartel compulsório dos compradores de mão-de-obra não se sustentava. Havia evasões contínuas, principalmente dos grandes empregadores, os quais estavam particularmente ávidos por mão-de-obra de qualidade e podiam pagar salários maiores para elas. A desajeitada e lerda máquina judiciária inglesa era totalmente ineficaz em impor e fazer cumprir a legislação, embora as guildas urbanas monopolísticas (monopólios protegidos e estimulados pelo governo) conseguissem manter parcialmente os controles salariais nas cidades.
Com o tempo, o capitalismo venceu e libertou as massas trabalhadoras.
Este artigo foi extraído do livro An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. 1, Economic Thought Before Adam Smith.
04 de fevereiro de 2020
Murray N. Rothbard
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[1] O declínio populacional foi praticamente uniforme por toda a Europa Ocidental, com a população da Itália caindo de 10 para 7,5 milhões; a da França e dos Países Baixos, de 19 para 12 milhões; da Alemanha e Escandinávia, de 11,5 para 7,5 milhões; e da Espanha de 9 para 7 milhões. A maior queda percentual ocorreu na Grã-Bretanha, onde o número de habitantes caiu de 5 para 3 milhões nesse período.
[2] Naquela época, os reis cortavam as bordas das moedas metálicas (medida essa chamada de "clipagem" da moeda) e utilizavam esses
Sempre se afirmava que, após o "renascimento" do século XI, o progresso na Europa Ocidental havia sido bastante linear e contínuo desde aquele ponto até os dias atuais. Entretanto, foram necessários os heróicos esforços — empreendidos ao longo de várias décadas — de historiadores econômicos como os professores Armando Sapori e Robert Sabatino Lopez para finalmente convencer os historiadores de que houve um grave declínio secular na maior parte da Europa Ocidental no período que vai desde aproximadamente 1300 até meados do século XV; um período que pode ser chamado de Baixa Idade Média ou a era inicial do Renascimento.
Esse declínio secular, incorretamente intitulado como uma mera "depressão", permeou quase toda a Europa Ocidental, com a exceção de algumas poucas cidades-estados italianas.
O declínio econômico foi marcado por uma severa queda na população. Desde o século XI, o crescimento econômico e a prosperidade haviam impulsionado as cifras populacionais. A população total da Europa Ocidental, estimada em 24 milhões no ano 1.000 d.C., havia saltado para 54 milhões já no ano 1340.
No entanto, em pouco mais de um século, de 1340 a 1450, a população europeia ocidental foi reduzida de 54 milhões para 37 milhões, uma queda de 31% em apenas um século.
A batalha para se estabelecer como verdadeira a ocorrência do grande declínio foi bem sucedida; no entanto, foi muito pouco efetiva para estabelecer a causa ou as causas desse desastre.
O enfoque dado à devastação causada pelos surtos da Peste Negra em meados do século XIV é parcialmente correto, porém superficial, pois esses surtos foram eles próprios causados por um colapso econômico e por uma consequente queda no padrão de vida que haviam começado ainda no início daquele século.
Tributações, confiscos e destruição da Igreja: as causas de tudo
As causas da grande depressão da Europa Ocidental podem ser resumidas em uma rígida, simples e completa frase: a recém-imposta soberania do estado.
Durante a síntese medieval da Alta Idade Média (séculos XI, XII e XIII), havia um equilíbrio de poder entre Igreja e estado, com a Igreja sendo ligeiramente mais poderosa. No século XIV, esse equilíbrio foi quebrado, e o conceito de estado-nação tornou-se predominante. O poder da Igreja foi quebrado e os estados começaram a impor tributos e regulamentações, a controlar as pessoas e a provocar devastações por meio de uma guerra virtualmente contínua, que durou mais de um século (a Guerra dos Cem Anos, de 1337 a 1453).[1]
O primeiro e decisivamente mais importante passo rumo à ascensão do poder do estado em detrimento da economia, a qual foi sendo continuamente enfraquecida, foi a destruição das feiras de Champagne.
Durante a Alta Idade Média, as feiras de Champagne eram o principal centro do comércio internacional, além de ser o centro de distribuição de todo o comércio local e regional. Essas feiras haviam sido cuidadosamente criadas, cultivadas e fomentadas para serem zonas livres, não tributadas e não reguladas por reis ou aristocratas franceses, ao mesmo tempo em que a justiça era rápida e eficientemente distribuída por tribunais privados ou tribunais mercantis, que operavam em regime de livre concorrência.
As feiras de Champagne atingiram seu apogeu durante o século XIII, e se tornaram o centro do comércio terrestre das mercadorias que eram transportadas ao longo dos Alpes no norte da Itália, vindas de lugares longínquos.
E então, no início do século XIV, Filipe IV, o Belo, rei da França (1285—1314), deu início ao processo de tributação, espoliação e, efetivamente, de destruição das vitalmente importantes feiras de Champagne. Para financiar suas perpétuas guerras dinásticas, Filipe impôs às feiras de Champagne um rígido imposto sobre vendas. Ele também destruiu o capital e as finanças domésticas ao impor repetidos tributos confiscatórios sobre grupos ou organizações que lidavam com dinheiro.
Em 1308, ele destruiu a rica Ordem dos Templários, confiscando seus fundos e desviando-os para o tesouro real.
Em seguida, Filipe impôs em sequência uma série de tributos e confiscos severos e debilitantes sobre os judeus e os italianos do norte da Itália (da Lombardia), que eram os grupos mais importantes das feiras: em 1306, 1311, 1315, 1320 e 1321. Ademais, em guerra com os flamengos (belgas da região de Flandres), Filipe aboliu o tradicional e antigo costume de todos os mercadores serem bem-vindos às feiras, decretando a exclusão dos flamengos.
O resultado dessas medidas foi um rápido e permanente declínio das feiras de Champagne e da tradicional rota do comércio ao longo dos Alpes. Desesperadoramente, as cidades-estados da Itália começaram a reconstituir as rotas comerciais e a enviar embarcações para Bruges, passando pelo Estreito de Gibraltar. Essa rota começou a prosperar mesmo com a região de Flandres em declínio.
Foi algo particularmente fatídico que Filipe, o Belo, tenha inaugurado o sistema de tributação regular na França. Antes disso, não havia impostos regulares. Na era medieval, embora o rei supostamente fosse o todo-poderoso dentro de sua esfera de domínio, essa esfera era restringida pela santidade da propriedade privada. O rei supostamente deveria ser um braço armado da lei e um mantenedor da ordem, e suas receitas supostamente deveriam advir dos aluguéis cobrados sobre as terras reais, e das taxas e pedágios feudais. Não havia nada que pudesse ser classificado de tributação regular. Em uma emergência, tal como uma invasão ou o início de uma cruzada, o príncipe, além de invocar o dever feudal de seus vassalos de lutar em nome dele, poderia também pedir-lhes um subsídio. Mas tal ajuda seria requisitada em vez de ordenada, e teria sua duração limitada ao período da emergência.
As guerras perpétuas do século XIV e da primeira metade do século XV começaram na década de 1290, quando Filipe, o Belo, tirando proveito da guerra conduzida pelo rei Eduardo I de Inglaterra contra a Escócia e o País de Gales, apossou-se da província da Gasconha, tomando-a da Inglaterra. Isso deu origem a um contínuo embate militar envolvendo, de um lado, Inglaterra e Flandres, e do outro, a França, fazendo com que tanto a coroa inglesa quanto a francesa ficassem desesperadas por novos fundos para financiar essa aventura militar.
Os mercadores e capitalistas das feiras de Champagne podiam ter dinheiro, mas o maior e mais tentador alvo para a espoliação real era a Igreja Católica. Ambos os monarcas da Inglaterra e da França começaram a tributar a Igreja, o que os colocou em rota de colisão com o papa.
O papa Bonifácio VIII (1294—1303) resistiu de maneira resoluta a essa nova forma de pilhagem, e proibiu os monarcas de tributarem a Igreja. O rei Eduardo reagiu a esta resistência papal negando à Igreja acesso à justiça dos tribunais reais, ao passo que Filipe foi mais combativo: proibiu a Igreja de transferir suas receitas da França para Roma.
Bonifácio foi forçado a recuar e a permitir a tributação, mas sua bula Unam Sanctam (1302) insistiu em afirmar que toda autoridade temporal deve ser subordinada à espiritual. Isso enfureceu Filipe, que audaciosamente sequestrou o papa na Itália e fez todos os preparativos para julgá-lo por heresia, um julgamento que só não se consumou porque Bonifácio, já velho, morreu antes.
Após essa ocorrência, Filipe, o Belo, tomou para si próprio o papado, e mudou a sede da Igreja Católica Romana de Roma para Avignon, onde ele próprio passou a se designar papa. Durante praticamente todo o século XIV, o papa, em seu "cativeiro babilônico", foi apenas um instrumento abjeto do rei francês; o papa iria retornar a Roma somente no início do século XV.
Desta forma, a até então poderosa Igreja Católica, poder dominante e autoridade espiritual durante toda a Alta Idade Média, havia sido apequenada, reduzida e transformada praticamente em uma vassala do saqueador real da França.
O declínio da autoridade da Igreja, portanto, deu-se paralela e simultaneamente à ascensão do poder do estado absoluto. Não contente em confiscar, espoliar, tributar e destruir as feiras de Champagne, além de colocar a Igreja Católica sob seu tacão, Filipe, o Belo, também decidiu obter receitas adicionais para suas guerras eternas por meio da adulteração da cunhagem de moedas[2], o que gerou uma inflação secular.
As consequências
As guerras do século XIV não geraram um grande volume de devastação direta: os exércitos eram pequenos e as hostilidades, intermitentes. A principal devastação veio com os pesados impostos, com a inflação monetária e com o grande endividamento do estado para financiar as perpétuas aventuras reais.
O enorme aumento da tributação foi o aspecto mais debilitante das guerras. As despesas da guerra: recrutamento de um exército de tamanho moderado, pagamento dos salários dos soldados, suprimentos e fortificações — tudo isso custou de duas a quatro vezes os gastos habituais da Coroa. Acrescente a isso os altos custos da determinação, fiscalização e imposição/aplicação dos tributos, bem como os custos dos empréstimos tomados — e o fardo economicamente debilitante gerado pela tributação para financiar a guerra se torna demasiado claro.
Os novos impostos estavam por todos os lados. Vimos os graves efeitos dos impostos sobre a Igreja; em uma grande fazenda monástica, os impostos frequentemente absorviam mais de 40% dos lucros líquidos dessa fazenda. Um imposto per capita uniforme, de um xelim, criado pela Coroa Inglesa em 1380, infligiu grandes dificuldades e privações sobre camponeses e artesãos. O tributo equivalia a um mês de salário dos trabalhadores agrícolas e a uma semana de salário dos trabalhadores urbanos.
Ademais, dado que muitos trabalhadores e camponeses pobres eram pagos em bens em vez de em dinheiro, acumular e ajuntar o dinheiro necessário para pagar o tributo era particularmente difícil.
Foram criados outros novos tributos, como impostos ad valorem (de acordo com o valor) sobre todas as transações; impostos sobre a venda de bebidas no atacado e no varejo; e impostos sobre o sal e a lã. Para combater a sonegação, os governos estabeleceram mercados monopolistas para a venda de sal na França e "pontos específicos" para o comércio de lã na Inglaterra.
Os impostos restringiram a oferta e elevaram os preços, paralisando o crucial comércio de lãs na Inglaterra. A produção e o comércio foram adicionalmente afetados por volumosos confiscos para fins belicistas impetrados pelos reis, o que provocou uma drástica queda da renda e da riqueza, bem como inúmeras falências entre os produtores.
Em suma, os consumidores sofriam com os preços artificialmente altos e os produtores sofriam com os retornos cada vez menores, sendo que esse diferencial era confiscado da economia pelo rei. Os empréstimos contraídos pelos governos serviram para piorar ainda mais a situação, dado que os reis deram seguidos calotes nas dívidas, o que gerou grandes prejuízos e falências entre os banqueiros privados que foram tolos o bastante para emprestar para o governo.
O resultado foi uma grande depressão econômica.
Criados como uma resposta para a "emergência" gerada por épocas de guerra, os novos impostos acabaram se tornando permanentes: não somente porque as operações militares duraram mais de um século, mas porque o estado, sempre à procura de uma desculpa para aumentar suas receitas e seu poder, aproveitou a oportunidade de ouro para converter esses impostos criados especificamente para épocas de guerra em uma parte permanente da cultura nacional.
Surge a pandemia - e as regulações trabalhistas
De meados do século XIV até o seu fim, a Europa foi assolada pela devastadora pandemia da Peste Negra — a peste bubônica —, a qual, no curto período de 1348—1350, dizimou completamente um terço da população.
A Peste Negra foi em grande medida uma consequência da redução do padrão de vida das pessoas, causada pela grande depressão e pela resultante perda de resistência física e imunológica à doença. A praga continuou ocorrendo em surtos periódicos — embora não em forma tão virulenta quanto a primeira — durante todas as décadas do século.
Tão grande é o poder recuperativo da raça humana, que essa enorme tragédia não gerou duradouros e catastróficos efeitos sociais ou psicológicos entre a população europeia. De certo modo, o mais longevo efeito danoso gerado pela Peste Negra foi a reação da Coroa Inglesa, que impôs sobre a sociedade um permanente controle de salários e um racionamento compulsório da mão-de-obra.
O súbito declínio da população e a consequente duplicação do valor dos salários (pois a mão-de-obra disponível ficou escassa) foram combatidos pelo governo por meio de uma severa imposição de um teto salarial determinado pelo Decreto de 1349 e pelo Estatuto dos Trabalhadores de 1351. O teto salarial foi criado a pedido da classe patronal: grandes, médios e pequenos proprietários de terra, bem como artesãos mestres, os primeiros particularmente alarmados com o aumento dos salários agrícolas.
O decreto e o estatuto desafiaram as leis econômicas ao tentar fixar um teto salarial no mesmo nível dos salários vigentes antes da pandemia. O inevitável resultado, entretanto, foi uma grave escassez de mão-de-obra, uma vez que, ao nível salarial determinado pelo estatuto, a demanda por mão-de-obra era amplamente maior do que a agora escassa oferta.
Toda intervenção governamental cria novos problemas enquanto tenta infrutiferamente resolver os antigos. Consequentemente, o governo se vê confrontado por duas escolhas: criar novas intervenções para solucionar os novos e inexplicáveis problemas, ou revogar a intervenção original. O instinto do governo, obviamente, é o de maximizar sua riqueza e poder criando novas intervenções.
E foi isso o que fez o Estatuto dos Trabalhadores inglês: impôs trabalho forçado, ao nível salarial vigente antes da Peste, a todos os homens da Inglaterra que tivessem menos de 60 anos de idade; restringiu a mobilidade da mão-de-obra, declarando que o senhor de um dado território tinha o direito prioritário sobre a força de trabalho de um homem; e tornou crime um empregador dar emprego para um trabalhador que havia deixado seu ex-patrão.
Desta maneira, o governo inglês impôs o racionamento da mão-de-obra para tentar manter os trabalhadores nas mesmas profissões que ocupavam antes da pandemia, e recebendo os mesmos salários daquela época.
Esse racionamento compulsório da mão-de-obra foi um ataque à inclinação natural do homem de procurar empregos que pagam salários mais altos. Assim, o inevitável surgimento de um mercado negro para a mão-de-obra dificultou a aplicação e a imposição dos estatutos.
A desesperada Coroa Inglesa tentou mais uma vez, com o Estatuto de Cambridge de 1388, tornar o racionamento ainda mais rigoroso. Todo e qualquer tipo de mobilidade da mão-de-obra foi proibida. Trabalhadores só poderiam transitar de um emprego para outro com uma permissão escrita das autoridades judiciárias locais. O trabalho infantil compulsório foi imposto na agricultura.
Mas esse cartel compulsório dos compradores de mão-de-obra não se sustentava. Havia evasões contínuas, principalmente dos grandes empregadores, os quais estavam particularmente ávidos por mão-de-obra de qualidade e podiam pagar salários maiores para elas. A desajeitada e lerda máquina judiciária inglesa era totalmente ineficaz em impor e fazer cumprir a legislação, embora as guildas urbanas monopolísticas (monopólios protegidos e estimulados pelo governo) conseguissem manter parcialmente os controles salariais nas cidades.
Com o tempo, o capitalismo venceu e libertou as massas trabalhadoras.
Este artigo foi extraído do livro An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. 1, Economic Thought Before Adam Smith.
04 de fevereiro de 2020
Murray N. Rothbard
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[1] O declínio populacional foi praticamente uniforme por toda a Europa Ocidental, com a população da Itália caindo de 10 para 7,5 milhões; a da França e dos Países Baixos, de 19 para 12 milhões; da Alemanha e Escandinávia, de 11,5 para 7,5 milhões; e da Espanha de 9 para 7 milhões. A maior queda percentual ocorreu na Grã-Bretanha, onde o número de habitantes caiu de 5 para 3 milhões nesse período.
[2] Naquela época, os reis cortavam as bordas das moedas metálicas (medida essa chamada de "clipagem" da moeda) e utilizavam esses
ADRILES FALA A VERDADE SOBRE ROGER SCRUTON, ÍCONE DO CONSERVADORISMO
Adrilles fala a verdade sobre Roger Scruton,ícone do conservadorismo
04 de fevereiro de 2020
COM O POVO SE VOLTANDO CONTRA SUAS IDÉIAS, OS PROGRESSISTAS JÁ COMEÇAM A CONDENAR A DEMOCRACIA
E essa saudável tendência é global
Eis algo cada vez mais claro: a "democracia" só existe e só é boa quando os eleitores escolhem a opção preferida por determinada classe de intelectuais e políticos. Quando os eleitores escolhem candidatos ou resultados não-chancelados pela elite progressista, bom, aí a tal democracia saiu do controle e o povo demonstrou suprema ignorância.
Nos rastros do referendo do Brexit, da eleição de Donald Trump, do referendo em que a população húngara decidiu restringir a imigração, e do referendo em que o povo colombiano rejeitou o acordo de paz do governo com os terroristas das FARC, a esquerda global percebeu que algo tem de ser feito para restringir a ideia de democracia irrestrita — uma ideia que ela própria vem promovendo há mais de um século.
Percebendo que referendos populares [como o do desarmamento no Brasil] fornecem uma maneira de os eleitores contornarem a vontade das elites progressistas, intelectuais e jornalistas se uniram recentemente e, em uma reviravolta impressionante, passaram a denunciar a própria ideia de democracia direta.
Para lançar esse recém-criado ataque ideológico à democracia, o The New York Times, no início do mês, publicou um artigo intitulado "Why Referendums Aren't As Democratic as they Seem" (Por que referendos não são tão democráticos quanto parecem). Nele, os jornalistas citam vários "especialistas" que descrevem o processo democrático adotado em um referendo como "supérfluo" e "perigoso".
O artigo, que nem sequer se preocupa em parecer minimamente equilibrado — ele não apresenta nenhum "especialista" dando alguma opinião pró-referendo —, cita uma variedade de políticos, economistas e outros membros das elites com uma visão nada lisonjeira a respeito do povo que vota 'sim' para mudanças políticas, como o Brexit. O economista Kenneth Rogoff, o mesmo que defende a abolição de todo e qualquer dinheiro em espécie (o que seria fatal para os mais pobres que não têm conta em banco), disse que referendos são uma "roleta russa para as repúblicas".
Outros "experts" citados neste artigo do Times descrevem os eleitores como imbecis que não entendem o assunto em que estão votando; néscios propensos a mudar de ideia a qualquer momento influenciados por caprichos superficiais.
Enquanto isso, após o povo colombiano ter votado contra um acordo de paz entre o governo e os terroristas marxistas das FARC, tanto a revista The Economist quanto o jornal internacional Christian Science Monitor declararam que era necessário "repensar" a ideia de "deixar a democracia diretamente nas mãos do povo."
Assim como os porta-vozes da elite política citados no artigo do The New York Times, os especialistas anti-referendos disseram que somente políticos treinados estão devidamente qualificados para tomar decisões políticos. Isso é especialmente válido, dizem eles, no caso de política externa:
Escrevendo na revista Foreign Policy, o professor de ciência política Matt Qvortrup observou que o ex-Secretário de Estado americano Henry Kissinger e o ex-diplomata americano George Kennan diziam que assuntos internacionais deveriam ser mantidos estritamente sob a responsabilidade de uma "profética minoria" que sabe o que realmente é bom para o resto dos cidadãos.
Essa instintiva reação anti-povo, demonstrada por políticos confortavelmente estabelecidos e por seus assessores e apoiadores, não é necessariamente errada. Muitos eleitores de fato são ignorantes e muito realmente mudam de ideia sem qualquer motivo aparente. Mas o que esses recém-convertidos críticos parecem não entender é que, por uma questão de lógica, toda a sua reprovação aos referendos se aplica igualmente ao processo conhecido como democracia representativa.
Ou, o que é ainda mais provável, eles percebem a contradição, mas simplesmente não ligam. Na próxima ocasião em que o povo votar "corretamente", os atuais críticos irão simplesmente fingir que jamais fizeram qualquer crítica à sapiência do povo.
Porém, agora que a elite progressista anti-povo deixou claro acreditar que os eleitores são muito ignorantes e incompetentes ao ponto de votar pelo Brexit, pela eleição de Trump, pela restrição à imigração e contra o acordo entre o governo colombiano e as FARC, é de imaginar o que simultaneamente os torna competentes para votar para presidente, para senador e para deputado.
No entanto, a cada vez que há uma eleição e o escolhido é aquele chancelado pela elite progressista, somos obrigados a ouvir intelectuais e jornalistas dizendo que o povo realmente queria aquela opção e que, por isso, o eleito realmente ganhou "um mandato" do povo.
Em suma, sempre que o povo vota em prol de algo que o establishment gosta, então "o povo se manifestou" e sua escolha é "sagrada".
"Democracia" é aquilo que só eles podem definir
Um grande exemplo desse padrão contraditório foi o recente caso de impeachment no Brasil, em que a presidente Dilma Rousseff foi afastada em definitivo da presidência. Às vésperas da votação do impeachment pela Câmara dos Deputados, as elites progressistas defendiam um referendo popular em que o povo deveria votar 'sim' ou 'não' pelo afastamento da então presidente. Tal referendo era considerado sacrossanto. Por outro lado, a remoção de Dilma por deputados e senadores — eleitos democraticamente por esse mesmo povo! — era considerado um "golpe contra a democracia".
Ou seja, a escolha dos eleitores em outubro de 2014 (por uma margem bastante apertada) era algo indiscutível e, acima de tudo, imutável. Já qualquer tentativa de reverter o resultado via democracia representativa — por meio de representantes democraticamente eleitos, os quais, em tese, representam a "voz do povo" — era considerado um 'golpe' e, portanto, 'ilegítimo'.
E agora vem a melhor parte: no caso do Brasil, o legislativo eleito pelo povo estava sendo "anti-democrático" ao contradizer a eleição popular de Dilma dois anos antes. Já no caso do Brexit, a esquerda progressista — capitaneada pelo jornal The Guardian — diz ser um dever do legislativo contradizer os eleitores e anular o voto do Brexit.
Em outras palavras, se o povo vota a favor de uma figura querida da esquerda globalista, então o povo é sábio e sabe perfeitamente o que está fazendo. Já se o povo vota pelo Brexit, contra um acordo de paz com os marxistas das FARC, ou em Donald Trump, então o povo é composto por bufões ignorantes demais para entender os reais problemas.
Referendos e iniciativas populares não têm nada de novo
Esse recente pânico em relação à democracia direta também advém da falsa alegação de que a democracia via referendos e iniciativas populares são algo majoritariamente novo, sem precedentes na política ocidental.
A Suíça, vale lembrar, utiliza referendos e iniciativas populares desde 1893. Já a ideia da democracia plebiscitária era um componente convencional do liberalismo na Europa do século XIX. Ludwig von Mises, por exemplo, ele próprio muito bem enredado nos radicais movimentos pró-laissez faire na Áustria antes da Primeira Guerra Mundial, sugeriu em seu livro Liberalismo — Segundo a tradição clássica que os eleitores de qualquer jurisdição política, mesmo em simples vilarejos, deveriam ser livres para se separar de outras jurisdições políticas via voto popular:
Quando os habitantes de um determinado território (seja uma simples vila, todo um distrito, ou uma série de distritos adjacentes) fizerem saber, por meio de um plebiscito livremente conduzido, que não mais desejam permanecer ligados ao estado a que pertencem, mas desejam formar um estado independente ou tornar-se parte de algum outro estado, seus anseios devem ser respeitados e cumpridos.
Tampouco é algum mistério saber por que Mises considerava que esse tipo de democracia direta era algo trivial. Menos de cinco anos antes de Mises lançar seu livro, a região alemã de Büsingen havia votado maciçamente em prol de se juntar à Suíça, tornando-se um dos cantões daquele país. Um ano depois, os eleitores da região austríaca de Vorarlberg votaram para se separar da Áustria e se juntar à Suíça.
Em ambos os casos, os suíços rejeitaram essas tentativas de alargar seu país.
Esse tipo de democracia direta sempre foi considerado por vários como sendo a prerrogativa dos eleitores. E certamente, em nenhum dos dois exemplos acima, ficou explicitado que os eleitores de Büsingen ou de Vorarlberg eram menos qualificados para determinar seu próprio destino do que a supostamente mais sábia e mais bem informada "profética minoria" de Berlim ou Viena.
Analisando as iniciativas populares restritas apenas aos eleitores suíços, vemos que, entre 1893 e 2014, apenas 22 de 192 iniciativas populares foram aprovadas pelos eleitores. A reticência com que essas iniciativas são recebidas pelos suíços indica prudência da parte dos eleitores, bem ao contrário do que alegam os oponentes das iniciativas populares, que afirmam que a imprudência e a afobação dos eleitores irão gerar um apocalipse.
E, enquanto toda a Europa se degenerava no fascismo, no nazismo e no autoritarismo ao longo das décadas de 1920 e 1930, a Suíça, com toda a sua democracia direta, permaneceu notavelmente estável.
Adicionalmente, vários estados americanos (majoritariamente estados do meio-oeste) utilizam referendos e iniciativas populares. E, dado que esses estados tendem a ter um desempenho econômico e social, no mínimo, tão bom quanto o do resto do país em termos de expectativa de vida, criminalidade e "saúde fiscal" (com a exceção da Califórnia), não há nenhuma evidência de que jurisdições que empregam a democracia direta tenham qualquer semelhança com a "roleta russa" imaginada por Rogoff.
É impossível concluir, obviamente, que a estabilidade política da Suíça ou a baixa criminalidade do estado do Oregon sejam causadas pela proeminência da democracia direta daquelas jurisdições. Porém, também não podemos concluir que a democracia direta seja especialmente problemática naquelas áreas. Tampouco, por extensão, há qualquer motivo para acreditar que a democracia representativa seja especialmente bela e moral quando comparada a este estilo mais direto de democracia.
Com efeito, assim como ocorre com a democracia representativa, a democracia direta tem gerado resultados mistos. Eleitores frequentemente irão votar em prol de um salário mínimo maior ou de outras regulamentações governamentais que não seriam aprovadas sem um voto direto. Tais iniciativas irão empobrecer e afetar as economias dessas jurisdições. Por outro lado, eleitores frequentemente votaram contra aumentos de impostos e outras onerosas regulamentações estatais, como a recentemente rejeitada proposta de uma "renda mínima básica" na Suíça.
Seria a democracia direta mais facilmente manipulável?
Os oponentes da democracia direta sempre alegaram que iniciativas populares e referendos podem ser manipulados por grupos de interesses e lobbies. [No Brasil, os intelectuais de sempre falaram que o referendo do desarmamento no Brasil foi manipulado pela indústria de armas].
Curiosamente, essas mesmas pessoas ignoram que políticos eleitos por meio da democracia representativa raramente demonstram independência em relação aos lobbies e aos grupos de interesse [a Lava-Jato é um claro exemplo].
Como observou o cientista político chileno David Altman, eleitores na América Latina rejeitaram referendos e iniciativas populares com grande frequência:
Nos últimos 40 anos, 109 votos populares foram convocados pelas autoridades da América Latina na forma de plebiscitos e referendos compulsórios. Destes, 64 (58%) receberam o apoio da população, ao passo que 45 foram rejeitados. Mas os votos propostos pelo público — tais como iniciativas populares ou referendos contra leis existentes — também não foram aceitos automaticamente. Dos 18 votos populares que ocorreram, nove foram aceitos.
Altman conclui que "o instrumento da democracia direta é menos suscetível a manipulações do que geralmente se imagina"
A democracia possui vários defeitos graves, e nenhum deles pode ser ignorado com meras piadinhas do tipo "a democracia é a pior de todas as formas de governo, excetuando-se as demais". No entanto, tão logo começamos a analisar todos os sistemas democráticos existentes, não há nenhum indício de que a democracia direta leve a resultados demonstravelmente piores do que a democracia representativa.
Recentemente, é fato, o povo de vários países tem votado de uma maneira que vem preocupando as elites globais e progressistas, que se acostumaram a ter resultados eleitorais a seu favor. Consequentemente, o The New York Times, o The Guardian, a The Economist, e todos os seus seguidores e imitadores se apressaram em nos explicar que o povo é simplesmente ignorante demais para ter o poder de decidir questões grandes e importantes.
Se tais pessoas estão infelizes com o arranjo, então há motivos para ficarmos felizes.
A democracia direta não é perfeita, mas, considerando os inimigos que ela vem ganhando ultimamente, talvez ela não seja tão ruim quanto pensávamos.
04 de fevereiro de 2020
Ryan McMaken
Eis algo cada vez mais claro: a "democracia" só existe e só é boa quando os eleitores escolhem a opção preferida por determinada classe de intelectuais e políticos. Quando os eleitores escolhem candidatos ou resultados não-chancelados pela elite progressista, bom, aí a tal democracia saiu do controle e o povo demonstrou suprema ignorância.
Nos rastros do referendo do Brexit, da eleição de Donald Trump, do referendo em que a população húngara decidiu restringir a imigração, e do referendo em que o povo colombiano rejeitou o acordo de paz do governo com os terroristas das FARC, a esquerda global percebeu que algo tem de ser feito para restringir a ideia de democracia irrestrita — uma ideia que ela própria vem promovendo há mais de um século.
Percebendo que referendos populares [como o do desarmamento no Brasil] fornecem uma maneira de os eleitores contornarem a vontade das elites progressistas, intelectuais e jornalistas se uniram recentemente e, em uma reviravolta impressionante, passaram a denunciar a própria ideia de democracia direta.
Para lançar esse recém-criado ataque ideológico à democracia, o The New York Times, no início do mês, publicou um artigo intitulado "Why Referendums Aren't As Democratic as they Seem" (Por que referendos não são tão democráticos quanto parecem). Nele, os jornalistas citam vários "especialistas" que descrevem o processo democrático adotado em um referendo como "supérfluo" e "perigoso".
O artigo, que nem sequer se preocupa em parecer minimamente equilibrado — ele não apresenta nenhum "especialista" dando alguma opinião pró-referendo —, cita uma variedade de políticos, economistas e outros membros das elites com uma visão nada lisonjeira a respeito do povo que vota 'sim' para mudanças políticas, como o Brexit. O economista Kenneth Rogoff, o mesmo que defende a abolição de todo e qualquer dinheiro em espécie (o que seria fatal para os mais pobres que não têm conta em banco), disse que referendos são uma "roleta russa para as repúblicas".
Outros "experts" citados neste artigo do Times descrevem os eleitores como imbecis que não entendem o assunto em que estão votando; néscios propensos a mudar de ideia a qualquer momento influenciados por caprichos superficiais.
Enquanto isso, após o povo colombiano ter votado contra um acordo de paz entre o governo e os terroristas marxistas das FARC, tanto a revista The Economist quanto o jornal internacional Christian Science Monitor declararam que era necessário "repensar" a ideia de "deixar a democracia diretamente nas mãos do povo."
Assim como os porta-vozes da elite política citados no artigo do The New York Times, os especialistas anti-referendos disseram que somente políticos treinados estão devidamente qualificados para tomar decisões políticos. Isso é especialmente válido, dizem eles, no caso de política externa:
Escrevendo na revista Foreign Policy, o professor de ciência política Matt Qvortrup observou que o ex-Secretário de Estado americano Henry Kissinger e o ex-diplomata americano George Kennan diziam que assuntos internacionais deveriam ser mantidos estritamente sob a responsabilidade de uma "profética minoria" que sabe o que realmente é bom para o resto dos cidadãos.
Essa instintiva reação anti-povo, demonstrada por políticos confortavelmente estabelecidos e por seus assessores e apoiadores, não é necessariamente errada. Muitos eleitores de fato são ignorantes e muito realmente mudam de ideia sem qualquer motivo aparente. Mas o que esses recém-convertidos críticos parecem não entender é que, por uma questão de lógica, toda a sua reprovação aos referendos se aplica igualmente ao processo conhecido como democracia representativa.
Ou, o que é ainda mais provável, eles percebem a contradição, mas simplesmente não ligam. Na próxima ocasião em que o povo votar "corretamente", os atuais críticos irão simplesmente fingir que jamais fizeram qualquer crítica à sapiência do povo.
Porém, agora que a elite progressista anti-povo deixou claro acreditar que os eleitores são muito ignorantes e incompetentes ao ponto de votar pelo Brexit, pela eleição de Trump, pela restrição à imigração e contra o acordo entre o governo colombiano e as FARC, é de imaginar o que simultaneamente os torna competentes para votar para presidente, para senador e para deputado.
No entanto, a cada vez que há uma eleição e o escolhido é aquele chancelado pela elite progressista, somos obrigados a ouvir intelectuais e jornalistas dizendo que o povo realmente queria aquela opção e que, por isso, o eleito realmente ganhou "um mandato" do povo.
Em suma, sempre que o povo vota em prol de algo que o establishment gosta, então "o povo se manifestou" e sua escolha é "sagrada".
"Democracia" é aquilo que só eles podem definir
Um grande exemplo desse padrão contraditório foi o recente caso de impeachment no Brasil, em que a presidente Dilma Rousseff foi afastada em definitivo da presidência. Às vésperas da votação do impeachment pela Câmara dos Deputados, as elites progressistas defendiam um referendo popular em que o povo deveria votar 'sim' ou 'não' pelo afastamento da então presidente. Tal referendo era considerado sacrossanto. Por outro lado, a remoção de Dilma por deputados e senadores — eleitos democraticamente por esse mesmo povo! — era considerado um "golpe contra a democracia".
Ou seja, a escolha dos eleitores em outubro de 2014 (por uma margem bastante apertada) era algo indiscutível e, acima de tudo, imutável. Já qualquer tentativa de reverter o resultado via democracia representativa — por meio de representantes democraticamente eleitos, os quais, em tese, representam a "voz do povo" — era considerado um 'golpe' e, portanto, 'ilegítimo'.
E agora vem a melhor parte: no caso do Brasil, o legislativo eleito pelo povo estava sendo "anti-democrático" ao contradizer a eleição popular de Dilma dois anos antes. Já no caso do Brexit, a esquerda progressista — capitaneada pelo jornal The Guardian — diz ser um dever do legislativo contradizer os eleitores e anular o voto do Brexit.
Em outras palavras, se o povo vota a favor de uma figura querida da esquerda globalista, então o povo é sábio e sabe perfeitamente o que está fazendo. Já se o povo vota pelo Brexit, contra um acordo de paz com os marxistas das FARC, ou em Donald Trump, então o povo é composto por bufões ignorantes demais para entender os reais problemas.
Referendos e iniciativas populares não têm nada de novo
Esse recente pânico em relação à democracia direta também advém da falsa alegação de que a democracia via referendos e iniciativas populares são algo majoritariamente novo, sem precedentes na política ocidental.
A Suíça, vale lembrar, utiliza referendos e iniciativas populares desde 1893. Já a ideia da democracia plebiscitária era um componente convencional do liberalismo na Europa do século XIX. Ludwig von Mises, por exemplo, ele próprio muito bem enredado nos radicais movimentos pró-laissez faire na Áustria antes da Primeira Guerra Mundial, sugeriu em seu livro Liberalismo — Segundo a tradição clássica que os eleitores de qualquer jurisdição política, mesmo em simples vilarejos, deveriam ser livres para se separar de outras jurisdições políticas via voto popular:
Quando os habitantes de um determinado território (seja uma simples vila, todo um distrito, ou uma série de distritos adjacentes) fizerem saber, por meio de um plebiscito livremente conduzido, que não mais desejam permanecer ligados ao estado a que pertencem, mas desejam formar um estado independente ou tornar-se parte de algum outro estado, seus anseios devem ser respeitados e cumpridos.
Tampouco é algum mistério saber por que Mises considerava que esse tipo de democracia direta era algo trivial. Menos de cinco anos antes de Mises lançar seu livro, a região alemã de Büsingen havia votado maciçamente em prol de se juntar à Suíça, tornando-se um dos cantões daquele país. Um ano depois, os eleitores da região austríaca de Vorarlberg votaram para se separar da Áustria e se juntar à Suíça.
Em ambos os casos, os suíços rejeitaram essas tentativas de alargar seu país.
Esse tipo de democracia direta sempre foi considerado por vários como sendo a prerrogativa dos eleitores. E certamente, em nenhum dos dois exemplos acima, ficou explicitado que os eleitores de Büsingen ou de Vorarlberg eram menos qualificados para determinar seu próprio destino do que a supostamente mais sábia e mais bem informada "profética minoria" de Berlim ou Viena.
Analisando as iniciativas populares restritas apenas aos eleitores suíços, vemos que, entre 1893 e 2014, apenas 22 de 192 iniciativas populares foram aprovadas pelos eleitores. A reticência com que essas iniciativas são recebidas pelos suíços indica prudência da parte dos eleitores, bem ao contrário do que alegam os oponentes das iniciativas populares, que afirmam que a imprudência e a afobação dos eleitores irão gerar um apocalipse.
E, enquanto toda a Europa se degenerava no fascismo, no nazismo e no autoritarismo ao longo das décadas de 1920 e 1930, a Suíça, com toda a sua democracia direta, permaneceu notavelmente estável.
Adicionalmente, vários estados americanos (majoritariamente estados do meio-oeste) utilizam referendos e iniciativas populares. E, dado que esses estados tendem a ter um desempenho econômico e social, no mínimo, tão bom quanto o do resto do país em termos de expectativa de vida, criminalidade e "saúde fiscal" (com a exceção da Califórnia), não há nenhuma evidência de que jurisdições que empregam a democracia direta tenham qualquer semelhança com a "roleta russa" imaginada por Rogoff.
É impossível concluir, obviamente, que a estabilidade política da Suíça ou a baixa criminalidade do estado do Oregon sejam causadas pela proeminência da democracia direta daquelas jurisdições. Porém, também não podemos concluir que a democracia direta seja especialmente problemática naquelas áreas. Tampouco, por extensão, há qualquer motivo para acreditar que a democracia representativa seja especialmente bela e moral quando comparada a este estilo mais direto de democracia.
Com efeito, assim como ocorre com a democracia representativa, a democracia direta tem gerado resultados mistos. Eleitores frequentemente irão votar em prol de um salário mínimo maior ou de outras regulamentações governamentais que não seriam aprovadas sem um voto direto. Tais iniciativas irão empobrecer e afetar as economias dessas jurisdições. Por outro lado, eleitores frequentemente votaram contra aumentos de impostos e outras onerosas regulamentações estatais, como a recentemente rejeitada proposta de uma "renda mínima básica" na Suíça.
Seria a democracia direta mais facilmente manipulável?
Os oponentes da democracia direta sempre alegaram que iniciativas populares e referendos podem ser manipulados por grupos de interesses e lobbies. [No Brasil, os intelectuais de sempre falaram que o referendo do desarmamento no Brasil foi manipulado pela indústria de armas].
Curiosamente, essas mesmas pessoas ignoram que políticos eleitos por meio da democracia representativa raramente demonstram independência em relação aos lobbies e aos grupos de interesse [a Lava-Jato é um claro exemplo].
Como observou o cientista político chileno David Altman, eleitores na América Latina rejeitaram referendos e iniciativas populares com grande frequência:
Nos últimos 40 anos, 109 votos populares foram convocados pelas autoridades da América Latina na forma de plebiscitos e referendos compulsórios. Destes, 64 (58%) receberam o apoio da população, ao passo que 45 foram rejeitados. Mas os votos propostos pelo público — tais como iniciativas populares ou referendos contra leis existentes — também não foram aceitos automaticamente. Dos 18 votos populares que ocorreram, nove foram aceitos.
Altman conclui que "o instrumento da democracia direta é menos suscetível a manipulações do que geralmente se imagina"
A democracia possui vários defeitos graves, e nenhum deles pode ser ignorado com meras piadinhas do tipo "a democracia é a pior de todas as formas de governo, excetuando-se as demais". No entanto, tão logo começamos a analisar todos os sistemas democráticos existentes, não há nenhum indício de que a democracia direta leve a resultados demonstravelmente piores do que a democracia representativa.
Recentemente, é fato, o povo de vários países tem votado de uma maneira que vem preocupando as elites globais e progressistas, que se acostumaram a ter resultados eleitorais a seu favor. Consequentemente, o The New York Times, o The Guardian, a The Economist, e todos os seus seguidores e imitadores se apressaram em nos explicar que o povo é simplesmente ignorante demais para ter o poder de decidir questões grandes e importantes.
Se tais pessoas estão infelizes com o arranjo, então há motivos para ficarmos felizes.
A democracia direta não é perfeita, mas, considerando os inimigos que ela vem ganhando ultimamente, talvez ela não seja tão ruim quanto pensávamos.
04 de fevereiro de 2020
Ryan McMaken
O HORROR DA CHINA COMUNISTA E SEUS PAVOROSOS CAMPOS DE MORTE
Quando crianças viraram alimentos
Nota do Editor
Neste mês de outubro de 2019 completam-se 70 anos da Revolução Comunista chinesa, que deu início ao mais cruel e sanguinolento regime governamental da história humana (sem exageros).
Espantosamente, não só é raro encontrar pessoas realmente bem informadas sobre as atrocidades cometidas por aquele regime — o que nos diz muita coisa sobre nosso sistema educacional —, como ainda há partidos políticos e intelectuais que simpatizam com o maoísmo.
No artigo abaixo, uma tentativa de mitigar um pouco deste obscurantismo, em um breve resumo daquele período.
_____________________________________________________
Embora atualmente muito se fale sobre a economia da China e muito se critique o país, o que é realmente notável em todos esses comentários e críticas é quão distantes e limitados eles parecem ser quando se pensa na história recente da China.
E esse é um assunto profundamente doloroso, horrível em seus detalhes, mas altamente elucidativo e útil para nos ajudar a entender a política — e que também põe em perspectiva as notícias sobre esses recentes problemas na China.
É um escândalo, de fato, que poucos ocidentais sequer estejam informados — ou, se estão, não estão conscientes — sobre a sanguinolenta realidade que predominou na China entre os anos de 1949 e 1976, os anos da ditadura comunista de Mao Tsé-Tung. (Ou Mao Zédong).
Quantos morreram como resultado das perseguições e das políticas de Mao? Será que você se importaria em adivinhar? Muitas pessoas ao longo dos anos tentaram. Mas elas sempre acabavam subestimando os números. Porém, à medida que mais dados foram aparecendo durante as décadas de 1980 e 90, e os especialistas foram se dedicando mais intensamente às investigações e estimativas, os números foram se tornando cada vez mais confiáveis. Mas, ainda assim, eles permanecem imprecisos. Qual a margem de erro com a qual estamos lidando? Ela pode ser, por baixo, de 40 milhões; mas também pode ser de 100 milhões ou mais.
Para o Grande Salto para Frente, de 1959 a 1961, o número de mortos varia entre 20 milhões e 75 milhões. No período anterior foi de 20 milhões. No período posterior, dezenas de milhões a mais.
Estudiosos da área de homicídio em massa dizem que a maioria de nós não é capaz de imaginar 100 mortos ou 1.000. E, acima disso, tudo vira apenas estatística: os números passam a não ter qualquer sentido conceitual para nós, e a coisa se torna um simples jogo numérico que nos desvia do horror em si. Há um limite de informações horríveis que nosso cérebro pode absorver, um limite de quanto sangue podemos imaginar.
No entanto, há um motivo maior pelo qual o experimento comunista chinês permanece um fato oculto: ele apresenta um argumento forte e decisivo contra o poder do estado, de maneira ainda mais conspícua que os casos da Rússia e da Alemanha do século XX.
Esse horror já podia ser pressagiado quando uma guerra civil se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Depois de nove milhões de mortos, os comunistas emergiram vitoriosos em 1949, tendo Mao como o soberano. Assim, a terra de Lao-Tzu (rima, ritmo, paz), do Taoísmo (compaixão, moderação, humildade) e do Confucionismo (piedade, harmonia social, progresso individual) foi confiscada pela importação da mais esquisita matéria-prima jamais conhecida pelos chineses: o marxismo alemão importado via Rússia.
Era uma ideologia que negava toda a lógica, toda a experiência, todas as leis econômicas, todos os direitos de propriedade, e todos os limites sobre o poder do estado, que alegava que todas essas noções eram meros preconceitos burgueses, e que afirmava que tudo o que era necessário para transformar a sociedade era criar um núcleo composto por poucas pessoas iluminadas e dotadas de ilimitados poderes para modificar todas as coisas.
É realmente bizarro pensar nisso: a China, dentre todos os lugares, com pôsteres de Marx e Lênin, e sendo governada por uma ideologia ditatorial, extorsiva e homicida, que só chegou ao fim em 1976. A transformação ocorrida nos últimos 40 anos foi tão espetacular que alguém dificilmente saberia que tudo isso já aconteceu, exceto pelo fato de o Partido Comunista ainda estar no poder, embora já tenha dispensado os princípios básicos da parte comunista.
O experimento começou da maneira mais sanguinolenta possível, após a Segunda Guerra, quando todos os olhos do Ocidente estavam voltados para assuntos internos (e, quando havia alguma preocupação externa, ela estava na Rússia). Os "mocinhos" (comunistas) haviam vencido a guerra contra os vilões (nacionalistas) da China — ou assim fomos levados a crer, na época em que o comunismo era a moda mundial.
A comunização da China se deu seguindo os três estágios usuais: expurgos, planejamentos e, por fim, a procura por bodes expiatórios.
Primeiro ocorreram os expurgos — também conhecidos como "purificação" — para que o comunismo pudesse ser implantado. Havia rebeldes a serem mortos e terras a serem nacionalizadas. As igrejas tinham de ser destruídas. Os contra-revolucionários tinham de ser suprimidos. A violência começou no campo e depois se espalhou para as cidades.
Todos os camponeses foram inicialmente divididos em quatro classes que eram consideradas politicamente aceitáveis: pobres, semi-pobres, médios, e ricos. Todos os outros eram considerados latifundiários e, assim, marcados para ser eliminados. Se nenhum latifundiário fosse encontrado, os "ricos" eram então incluídos nesse grupo.
A classe demonizada era desentocada em uma série de "encontros da amargura" — que ocorriam em nível nacional —, nos quais as pessoas delatavam seus vizinhos que possuíssem propriedades e que fossem politicamente desleais. Aqueles assim considerados eram imediatamente executados junto com quem quer que tivesse simpatias por eles.
A regra era que deveria haver ao menos uma pessoa morta por vilarejo. O número de mortos está estimado entre um milhão e cinco milhões. Adicionalmente, entre quatro e seis milhões de proprietários de terra foram trucidados pelo simples crime de serem donos de capital. Se alguém fosse suspeito de estar escondendo alguma riqueza, ele ou ela seria torturado com ferro quente até confessar. As famílias dos mortos eram também torturadas e os túmulos de seus predecessores eram saqueados e pilhados. O que acontecia com a terra? Era dividida em minúsculos lotes e distribuída entre os camponeses remanescentes.
A campanha então se dirigiu para as cidades. As motivações políticas eram o principal incentivo, mas havia também o desejo de se fazer controles comportamentais. Qualquer suspeito de envolvimento com prostituição, jogatina, sonegação, mentiras, tráfico de ópio, ou suspeito de contar segredos de estado, era executado sob a acusação de "bandido".
Estimativas oficiais colocam o número de mortos em dois milhões, sendo que outros dois milhões foram morrer nas prisões. Comitês residenciais formados por pessoas leais ao estado vigiavam cada movimento. Qualquer visita noturna era imediatamente denunciada, e todos os envolvidos eram presos ou assassinados. As celas das prisões iam ficando cada vez menores, chegando a um ponto em que uma pessoa vivia em um espaço de aproximadamente 35 centímetros. Alguns prisioneiros faziam trabalho forçado até morrer, e qualquer um que se envolvesse em alguma revolta era agrupado com seus colaboradores e todos eram queimados.
Havia indústrias nas cidades, mas aqueles que eram seus proprietários e gerentes eram submetidos a restrições cada vez mais apertadas: transparência forçada, escrutínio constante, impostos escorchantes, além de sofrerem todos os tipos de pressão para oferecer seus negócios à coletivização. Houve muitos suicídios entre os pequenos e médios empresários que perceberam para onde tudo estava indo. Filiar-se ao partido adiava apenas temporariamente a morte, já que em 1955 começou a campanha contra os contra-revolucionários escondidos dentro do próprio partido. Havia um princípio de que um em cada dez membros do partido era um traidor secreto.
Quando os rios de sangue haviam atingido seu ápice, Mao criou a campanha do Desabrochar das Cem Flores, durante dois meses de 1957, sendo o legado desta a frase que frequentemente se ouve: "Deixemos que cem flores desabrochem!" As pessoas foram encorajadas a falar abertamente e mostrar seu ponto de vista, uma oportunidade muito tentadora para os intelectuais. Mas essa liberalização durou pouco. Na verdade, foi tudo uma armadilha. Todos aqueles que falaram contra o que estava acontecendo na China foram arregimentados e aprisionados, talvez entre 400.000 e 700.000 pessoas, incluindo dez por cento das classes mais educadas. Outras eram rotuladas de direitistas e sujeitadas a interrogatório e reeducação; outras eram expulsas de suas casas e isoladas.
Mas isso não foi nada comparado à fase dois, que se tornou uma das maiores catástrofes da história do planejamento central. Após a coletivização das terras, Mao decidiu ir mais a fundo e passou a ditar aos camponeses o que eles deveriam plantar, como eles deveriam plantar, para onde eles deveriam mandar a colheita, e até mesmo se — em vez de ter de plantar qualquer coisa — eles deveriam ser arrastados para as indústrias. Essa etapa se tornaria o Grande Salto para Frente, que acabou por gerar a escassez mais mortal da história.
Os camponeses foram ajuntados em grupos de milhares e forçados a dividir todas as coisas. Todos os grupos deveriam ser auto-suficientes. As metas de produção foram aumentadas para níveis nunca antes imaginados.
Centenas de milhares de pessoas foram deslocadas de onde a produção era alta para onde ela era baixa, como um meio de impulsionar a produção. Elas também foram deslocadas da agricultura para a indústria. Houve uma campanha maciça para se coletar ferramentas e transformá-las em habilidade industrial. Como maneira de demonstrar esperança para o futuro, os coletivizados eram encorajados a fazer enormes banquetes e a comer de tudo, principalmente carne. Esse era um modo de mostrar a crença de que a colheita do ano seguinte seria ainda mais farta.
Mao tinha essa idéia de que ele sabia como cultivar os grãos. Ele proclamou que "as sementes são mais felizes quando cultivadas juntas" — e então as sementes foram semeadas em densidades de cinco a dez vezes maiores do que a normal. As plantas morreram, o solo secou, e o sal subiu à superfície. Para impedir que os pássaros comessem os grãos, os pardais foram exterminados, o que aumentou imensamente o número de parasitas. Erosões e enchentes se tornaram endêmicas. Plantações de chá foram transformadas em plantações de arroz, sob o argumento de que o chá estava em decadência e era coisa de capitalista.
Equipamentos hidráulicos construídos para servir às novas fazendas coletivas não funcionavam e não tinham peças para reposição. Isso levou Mao a colocar nova ênfase na indústria, que surgiu forçadamente nas mesmas áreas da agricultura, levando a um caos ainda maior. Os trabalhadores eram arrastados de um setor para outro, e cortes obrigatórios em alguns setores eram compensados com um aumento obrigatório das cotas em outros setores.
Em 1957, o desastre estava por todos os lados. Os trabalhadores estavam tão enfraquecidos que eram incapazes até mesmo de colher suas escassas safras; e assim eles morriam, vendo o arroz apodrecer. As indústrias se avolumavam, mas não produziam nada de útil. A resposta do governo foi dizer às pessoas que gorduras e proteínas eram desnecessárias. Mas a fome não podia ser negada. O preço do arroz subiu de 20 a 30 vezes no mercado negro.
Como as transações foram proibidas entre os grupos coletivistas (você sabe, a tal da auto-suficiência), milhões ficaram à míngua. Já em 1960, a taxa de mortalidade pulou de 15% para 68%, e a taxa de natalidade despencou. Quem quer que fosse pego estocando grãos era fuzilado. Camponeses flagrados com a menor quantia imaginável eram aprisionados. Fogueiras foram banidas. Funerais foram proibidos, pois eram considerados esbanjadores.
Aldeões que tentavam fugir dos campos para as cidades eram fuzilados nos portões. Os mortos por inanição chegaram a 50% em alguns vilarejos. Os sobreviventes ferviam grama e cascas de árvore para fazer sopa, enquanto outros vagueavam pelas estradas à procura de comida. Algumas vezes eles se bandeavam e atacavam casas, procurando por restos do milho que era servido ao gado. As mulheres eram incapazes de engravidar devido à desnutrição. Pessoas nos campos de trabalho forçado foram usadas em experimentos com comidas, provocando doenças e mortes.
Mas isso ainda era pouco. Em 1968, um membro da Guarda Vermelha, de 18 anos, chamado Wei Jingsheng, encontrou refúgio em uma família de um vilarejo em Anhui, e ali ele viveu para escrever o que ele viu:
Caminhávamos juntos ao longo do vilarejo. . . Diante de meus olhos, entre as ervas daninhas, surgiu uma das cenas que já haviam me contado: um dos banquetes no qual as famílias trocam suas crianças para poder comê-las. Eu podia vislumbrar claramente a angústia nos rostos das famílias enquanto elas mastigavam a carne dos filhos dos amigos. As crianças que estavam caçando borboletas em um campo próximo pareciam ser a reencarnação das crianças devoradas por seus pais. O que fez com que aquelas pessoas tivessem de engolir aquela carne humana, entre lágrimas e aflições — carne essa que elas jamais se imaginaram provando, mesmo em seus piores pesadelos?
O autor dessa passagem foi preso como traidor, mas seu status o protegeu da morte, e ele foi finalmente solto em 1997.
Quantas pessoas morreram durante a fome de 1959-1961? A menor estimativa é de 20 milhões. A maior, de 43 milhões. Finalmente, em 1961 o governo cedeu e permitiu alguma importação de comida, mas foi pouco e já era tarde. Foi permitido a alguns camponeses voltar a plantar em sua própria terra. Surgiram alguns ateliês particulares. Alguns mercados foram permitidos. Finalmente, a fome começou a diminuir e a produção começou a crescer.
Mas então veio a terceira etapa: encontrar os bodes expiatórios. O que havia causado toda a calamidade? A resposta oficial era qualquer coisa, menos o comunismo; qualquer coisa, menos Mao. E então a captura de pessoas por motivos puramente políticos começou novamente — e aqui chegamos ao cerne da Revolução Cultural.
Milhares de campos e centros de detenção foram abertos. As pessoas que eram mandadas para lá, morriam lá. Na prisão, utilizava-se das desculpas mais fajutas possíveis para se eliminar alguém — tudo para haver sobras alimentícias, uma vez que os prisioneiros eram um fardo para o sistema, de acordo com o pensamento de quem estava no comando. Esse sistema penal, o maior já construído, era organizado em um estilo militar, com alguns campos mantendo por volta de 50.000 pessoas.
Havia um critério para se aprisionar alguém: os indivíduos eram abordados aleatoriamente e recebiam ordens de prisão de maneira indiscriminada. Isso acontecia com ampla frequência. Todos tinham de carregar consigo uma cópia do Pequeno Livro Vermelho, de Mao. Questionar a razão da prisão era em si uma evidência de deslealdade, já que o estado era infalível.
Uma vez preso, o caminho mais seguro era a confissão instantânea. Os guardas eram proibidos de usar de violência aberta, de modo que assim os interrogatórios durassem centenas de horas, o que frequentemente fazia com que os prisioneiros morressem durante o processo. Aqueles que tivessem seus nomes citados durante uma confissão eram então caçados e recolhidos.
Após ter passado por esse processo, você era mandado para um campo de trabalhos forçados, onde seria avaliado de acordo com o número de horas que seria capaz de trabalhar com pouca comida. Você não poderia comer carne nem qualquer tipo de açúcar ou azeite. Os prisioneiros passariam então a ser controlados pela racionalização do pouco da comida que tinham.
A fase final dessa incrível litania de criminalidade durou o período de 1966 até 1976, durante o qual o número de mortos caiu dramaticamente, variando "apenas" entre um milhão e três milhões. O governo, agora cansado e nos primeiros estágios da desmoralização, começou a perder o controle, primeiro dentro dos campos de trabalhos forçados, e então na zona rural. E foi esse enfraquecimento que levou ao período final, e de certa forma o mais cruel, da história comunista da China.
Os primeiros estágios da rebelião ocorreram da única maneira permissível: a linha dura começou a criticar o governo por ser muito frouxo e muito descompromissado com o ideal comunista. Ironicamente, isso começou a surgir exatamente no momento em que a moderação se tornou manifesta na Rússia. Os neo-revolucionários da Guarda Vermelha começaram a criticar os comunistas chineses como sendo "reformistas a la Khrushchev". Como um escritor apontou, a guarda "se levantou contra seu próprio governo com o intuito de defendê-lo".
Durante esse período, o culto à personalidade de Mao chegou ao seu ápice, com o Pequeno Livro Vermelho atingindo um prestígio mítico. Os Guardas Vermelhos perambulavam pelo país tentando expurgar as "Quatro Coisas Antiquadas": idéias, cultura, costumes e hábitos. Os templos remanescentes foram obstruídos. Óperas tradicionais foram banidas, tendo a Ópera de Beijing todos os seus vestuários e cenários queimados. Monges foram expulsos. O calendário foi modificado. Todo o cristianismo foi banido. Animais de estimação como pássaros e gatos foram proibidos. Humilhação era a palavra de ordem.
Assim foi o Terror Vermelho: em sua capital, ocorreram 1.700 mortes e 84.000 pessoas fugiram. Em outras cidades, como Xangai, os números eram ainda piores. Foi implantado um processo de expurgo e purificação dentro do partido, com centenas de milhares presos e muitos assassinados. Artistas, escritores, professores, técnicos: todos eram alvos. Massacres organizados ocorriam em comunidades seguidas, com Mao aprovando cada passo como meio de eliminar cada possível rival político.
Mas, interiormente, o governo estava se fragmentando e rachando, mesmo que externamente ele estivesse se tornado ainda mais brutal e totalitário.
Finalmente, em 1976, Mao morreu. Em poucos meses, seus conselheiros mais próximos foram todos encarcerados. A reforma começou lenta a princípio, mas depois atingiu uma velocidade assustadora. As liberdades civis foram restauradas (comparativamente) e as reabilitações começaram. Os torturadores foram processados. Os controles econômicos foram gradualmente relaxados. A economia, por virtude da iniciativa humana e da iniciativa econômica privada, se transformou.
Tendo lido tudo isso, você agora faz parte da minúscula elite de pessoas que sabem alguma coisa sobre o maior campo de morte da história do mundo, que foi no que a China se transformou entre 1949 e 1976 — um experimento de controle total, algo que jamais se viu na história. Muitas pessoas hoje sabem mais sobre os produtos de baixa qualidade da China do que sobre as centenas de milhões de mortos e a inenarrável quantidade de sofrimento ocorrida sob o comunismo.
Quando você ouvir sobre produtos de baixa qualidade vindos da China, ou sobre trigo insuficientemente processado, imagine milhões sofrendo de uma fome dantesca, com pais trocando seus filhos para comê-los e, assim, permanecerem vivos. Não me diga que aprendemos alguma coisa com a história. Sequer conhecemos a história o suficiente para aprender algo com ela.
04 de fevereiro de 2020
Lew Rockwell
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Nota sobre as fontes, todas as quais você deve comprar e ler em detalhes: "China: uma longa marcha na noite", por Jean-Louis Margolin em O Livro Negro do Comunismo, por Stéphane Courtois et al. (Harvard, 1999), pp. 234-277; Death by Government, por R.J. Rummel (Transaction, 1996); e Hungry Ghosts: Mao's Secret Famine, por Jaspar Becker (Owl Books, 1998).
Nota do Editor
Neste mês de outubro de 2019 completam-se 70 anos da Revolução Comunista chinesa, que deu início ao mais cruel e sanguinolento regime governamental da história humana (sem exageros).
Espantosamente, não só é raro encontrar pessoas realmente bem informadas sobre as atrocidades cometidas por aquele regime — o que nos diz muita coisa sobre nosso sistema educacional —, como ainda há partidos políticos e intelectuais que simpatizam com o maoísmo.
No artigo abaixo, uma tentativa de mitigar um pouco deste obscurantismo, em um breve resumo daquele período.
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Embora atualmente muito se fale sobre a economia da China e muito se critique o país, o que é realmente notável em todos esses comentários e críticas é quão distantes e limitados eles parecem ser quando se pensa na história recente da China.
E esse é um assunto profundamente doloroso, horrível em seus detalhes, mas altamente elucidativo e útil para nos ajudar a entender a política — e que também põe em perspectiva as notícias sobre esses recentes problemas na China.
É um escândalo, de fato, que poucos ocidentais sequer estejam informados — ou, se estão, não estão conscientes — sobre a sanguinolenta realidade que predominou na China entre os anos de 1949 e 1976, os anos da ditadura comunista de Mao Tsé-Tung. (Ou Mao Zédong).
Quantos morreram como resultado das perseguições e das políticas de Mao? Será que você se importaria em adivinhar? Muitas pessoas ao longo dos anos tentaram. Mas elas sempre acabavam subestimando os números. Porém, à medida que mais dados foram aparecendo durante as décadas de 1980 e 90, e os especialistas foram se dedicando mais intensamente às investigações e estimativas, os números foram se tornando cada vez mais confiáveis. Mas, ainda assim, eles permanecem imprecisos. Qual a margem de erro com a qual estamos lidando? Ela pode ser, por baixo, de 40 milhões; mas também pode ser de 100 milhões ou mais.
Para o Grande Salto para Frente, de 1959 a 1961, o número de mortos varia entre 20 milhões e 75 milhões. No período anterior foi de 20 milhões. No período posterior, dezenas de milhões a mais.
Estudiosos da área de homicídio em massa dizem que a maioria de nós não é capaz de imaginar 100 mortos ou 1.000. E, acima disso, tudo vira apenas estatística: os números passam a não ter qualquer sentido conceitual para nós, e a coisa se torna um simples jogo numérico que nos desvia do horror em si. Há um limite de informações horríveis que nosso cérebro pode absorver, um limite de quanto sangue podemos imaginar.
No entanto, há um motivo maior pelo qual o experimento comunista chinês permanece um fato oculto: ele apresenta um argumento forte e decisivo contra o poder do estado, de maneira ainda mais conspícua que os casos da Rússia e da Alemanha do século XX.
Esse horror já podia ser pressagiado quando uma guerra civil se seguiu à Segunda Guerra Mundial. Depois de nove milhões de mortos, os comunistas emergiram vitoriosos em 1949, tendo Mao como o soberano. Assim, a terra de Lao-Tzu (rima, ritmo, paz), do Taoísmo (compaixão, moderação, humildade) e do Confucionismo (piedade, harmonia social, progresso individual) foi confiscada pela importação da mais esquisita matéria-prima jamais conhecida pelos chineses: o marxismo alemão importado via Rússia.
Era uma ideologia que negava toda a lógica, toda a experiência, todas as leis econômicas, todos os direitos de propriedade, e todos os limites sobre o poder do estado, que alegava que todas essas noções eram meros preconceitos burgueses, e que afirmava que tudo o que era necessário para transformar a sociedade era criar um núcleo composto por poucas pessoas iluminadas e dotadas de ilimitados poderes para modificar todas as coisas.
É realmente bizarro pensar nisso: a China, dentre todos os lugares, com pôsteres de Marx e Lênin, e sendo governada por uma ideologia ditatorial, extorsiva e homicida, que só chegou ao fim em 1976. A transformação ocorrida nos últimos 40 anos foi tão espetacular que alguém dificilmente saberia que tudo isso já aconteceu, exceto pelo fato de o Partido Comunista ainda estar no poder, embora já tenha dispensado os princípios básicos da parte comunista.
O experimento começou da maneira mais sanguinolenta possível, após a Segunda Guerra, quando todos os olhos do Ocidente estavam voltados para assuntos internos (e, quando havia alguma preocupação externa, ela estava na Rússia). Os "mocinhos" (comunistas) haviam vencido a guerra contra os vilões (nacionalistas) da China — ou assim fomos levados a crer, na época em que o comunismo era a moda mundial.
A comunização da China se deu seguindo os três estágios usuais: expurgos, planejamentos e, por fim, a procura por bodes expiatórios.
Primeiro ocorreram os expurgos — também conhecidos como "purificação" — para que o comunismo pudesse ser implantado. Havia rebeldes a serem mortos e terras a serem nacionalizadas. As igrejas tinham de ser destruídas. Os contra-revolucionários tinham de ser suprimidos. A violência começou no campo e depois se espalhou para as cidades.
Todos os camponeses foram inicialmente divididos em quatro classes que eram consideradas politicamente aceitáveis: pobres, semi-pobres, médios, e ricos. Todos os outros eram considerados latifundiários e, assim, marcados para ser eliminados. Se nenhum latifundiário fosse encontrado, os "ricos" eram então incluídos nesse grupo.
A classe demonizada era desentocada em uma série de "encontros da amargura" — que ocorriam em nível nacional —, nos quais as pessoas delatavam seus vizinhos que possuíssem propriedades e que fossem politicamente desleais. Aqueles assim considerados eram imediatamente executados junto com quem quer que tivesse simpatias por eles.
A regra era que deveria haver ao menos uma pessoa morta por vilarejo. O número de mortos está estimado entre um milhão e cinco milhões. Adicionalmente, entre quatro e seis milhões de proprietários de terra foram trucidados pelo simples crime de serem donos de capital. Se alguém fosse suspeito de estar escondendo alguma riqueza, ele ou ela seria torturado com ferro quente até confessar. As famílias dos mortos eram também torturadas e os túmulos de seus predecessores eram saqueados e pilhados. O que acontecia com a terra? Era dividida em minúsculos lotes e distribuída entre os camponeses remanescentes.
A campanha então se dirigiu para as cidades. As motivações políticas eram o principal incentivo, mas havia também o desejo de se fazer controles comportamentais. Qualquer suspeito de envolvimento com prostituição, jogatina, sonegação, mentiras, tráfico de ópio, ou suspeito de contar segredos de estado, era executado sob a acusação de "bandido".
Estimativas oficiais colocam o número de mortos em dois milhões, sendo que outros dois milhões foram morrer nas prisões. Comitês residenciais formados por pessoas leais ao estado vigiavam cada movimento. Qualquer visita noturna era imediatamente denunciada, e todos os envolvidos eram presos ou assassinados. As celas das prisões iam ficando cada vez menores, chegando a um ponto em que uma pessoa vivia em um espaço de aproximadamente 35 centímetros. Alguns prisioneiros faziam trabalho forçado até morrer, e qualquer um que se envolvesse em alguma revolta era agrupado com seus colaboradores e todos eram queimados.
Havia indústrias nas cidades, mas aqueles que eram seus proprietários e gerentes eram submetidos a restrições cada vez mais apertadas: transparência forçada, escrutínio constante, impostos escorchantes, além de sofrerem todos os tipos de pressão para oferecer seus negócios à coletivização. Houve muitos suicídios entre os pequenos e médios empresários que perceberam para onde tudo estava indo. Filiar-se ao partido adiava apenas temporariamente a morte, já que em 1955 começou a campanha contra os contra-revolucionários escondidos dentro do próprio partido. Havia um princípio de que um em cada dez membros do partido era um traidor secreto.
Quando os rios de sangue haviam atingido seu ápice, Mao criou a campanha do Desabrochar das Cem Flores, durante dois meses de 1957, sendo o legado desta a frase que frequentemente se ouve: "Deixemos que cem flores desabrochem!" As pessoas foram encorajadas a falar abertamente e mostrar seu ponto de vista, uma oportunidade muito tentadora para os intelectuais. Mas essa liberalização durou pouco. Na verdade, foi tudo uma armadilha. Todos aqueles que falaram contra o que estava acontecendo na China foram arregimentados e aprisionados, talvez entre 400.000 e 700.000 pessoas, incluindo dez por cento das classes mais educadas. Outras eram rotuladas de direitistas e sujeitadas a interrogatório e reeducação; outras eram expulsas de suas casas e isoladas.
Mas isso não foi nada comparado à fase dois, que se tornou uma das maiores catástrofes da história do planejamento central. Após a coletivização das terras, Mao decidiu ir mais a fundo e passou a ditar aos camponeses o que eles deveriam plantar, como eles deveriam plantar, para onde eles deveriam mandar a colheita, e até mesmo se — em vez de ter de plantar qualquer coisa — eles deveriam ser arrastados para as indústrias. Essa etapa se tornaria o Grande Salto para Frente, que acabou por gerar a escassez mais mortal da história.
Os camponeses foram ajuntados em grupos de milhares e forçados a dividir todas as coisas. Todos os grupos deveriam ser auto-suficientes. As metas de produção foram aumentadas para níveis nunca antes imaginados.
Centenas de milhares de pessoas foram deslocadas de onde a produção era alta para onde ela era baixa, como um meio de impulsionar a produção. Elas também foram deslocadas da agricultura para a indústria. Houve uma campanha maciça para se coletar ferramentas e transformá-las em habilidade industrial. Como maneira de demonstrar esperança para o futuro, os coletivizados eram encorajados a fazer enormes banquetes e a comer de tudo, principalmente carne. Esse era um modo de mostrar a crença de que a colheita do ano seguinte seria ainda mais farta.
Mao tinha essa idéia de que ele sabia como cultivar os grãos. Ele proclamou que "as sementes são mais felizes quando cultivadas juntas" — e então as sementes foram semeadas em densidades de cinco a dez vezes maiores do que a normal. As plantas morreram, o solo secou, e o sal subiu à superfície. Para impedir que os pássaros comessem os grãos, os pardais foram exterminados, o que aumentou imensamente o número de parasitas. Erosões e enchentes se tornaram endêmicas. Plantações de chá foram transformadas em plantações de arroz, sob o argumento de que o chá estava em decadência e era coisa de capitalista.
Equipamentos hidráulicos construídos para servir às novas fazendas coletivas não funcionavam e não tinham peças para reposição. Isso levou Mao a colocar nova ênfase na indústria, que surgiu forçadamente nas mesmas áreas da agricultura, levando a um caos ainda maior. Os trabalhadores eram arrastados de um setor para outro, e cortes obrigatórios em alguns setores eram compensados com um aumento obrigatório das cotas em outros setores.
Em 1957, o desastre estava por todos os lados. Os trabalhadores estavam tão enfraquecidos que eram incapazes até mesmo de colher suas escassas safras; e assim eles morriam, vendo o arroz apodrecer. As indústrias se avolumavam, mas não produziam nada de útil. A resposta do governo foi dizer às pessoas que gorduras e proteínas eram desnecessárias. Mas a fome não podia ser negada. O preço do arroz subiu de 20 a 30 vezes no mercado negro.
Como as transações foram proibidas entre os grupos coletivistas (você sabe, a tal da auto-suficiência), milhões ficaram à míngua. Já em 1960, a taxa de mortalidade pulou de 15% para 68%, e a taxa de natalidade despencou. Quem quer que fosse pego estocando grãos era fuzilado. Camponeses flagrados com a menor quantia imaginável eram aprisionados. Fogueiras foram banidas. Funerais foram proibidos, pois eram considerados esbanjadores.
Aldeões que tentavam fugir dos campos para as cidades eram fuzilados nos portões. Os mortos por inanição chegaram a 50% em alguns vilarejos. Os sobreviventes ferviam grama e cascas de árvore para fazer sopa, enquanto outros vagueavam pelas estradas à procura de comida. Algumas vezes eles se bandeavam e atacavam casas, procurando por restos do milho que era servido ao gado. As mulheres eram incapazes de engravidar devido à desnutrição. Pessoas nos campos de trabalho forçado foram usadas em experimentos com comidas, provocando doenças e mortes.
Mas isso ainda era pouco. Em 1968, um membro da Guarda Vermelha, de 18 anos, chamado Wei Jingsheng, encontrou refúgio em uma família de um vilarejo em Anhui, e ali ele viveu para escrever o que ele viu:
Caminhávamos juntos ao longo do vilarejo. . . Diante de meus olhos, entre as ervas daninhas, surgiu uma das cenas que já haviam me contado: um dos banquetes no qual as famílias trocam suas crianças para poder comê-las. Eu podia vislumbrar claramente a angústia nos rostos das famílias enquanto elas mastigavam a carne dos filhos dos amigos. As crianças que estavam caçando borboletas em um campo próximo pareciam ser a reencarnação das crianças devoradas por seus pais. O que fez com que aquelas pessoas tivessem de engolir aquela carne humana, entre lágrimas e aflições — carne essa que elas jamais se imaginaram provando, mesmo em seus piores pesadelos?
O autor dessa passagem foi preso como traidor, mas seu status o protegeu da morte, e ele foi finalmente solto em 1997.
Quantas pessoas morreram durante a fome de 1959-1961? A menor estimativa é de 20 milhões. A maior, de 43 milhões. Finalmente, em 1961 o governo cedeu e permitiu alguma importação de comida, mas foi pouco e já era tarde. Foi permitido a alguns camponeses voltar a plantar em sua própria terra. Surgiram alguns ateliês particulares. Alguns mercados foram permitidos. Finalmente, a fome começou a diminuir e a produção começou a crescer.
Mas então veio a terceira etapa: encontrar os bodes expiatórios. O que havia causado toda a calamidade? A resposta oficial era qualquer coisa, menos o comunismo; qualquer coisa, menos Mao. E então a captura de pessoas por motivos puramente políticos começou novamente — e aqui chegamos ao cerne da Revolução Cultural.
Milhares de campos e centros de detenção foram abertos. As pessoas que eram mandadas para lá, morriam lá. Na prisão, utilizava-se das desculpas mais fajutas possíveis para se eliminar alguém — tudo para haver sobras alimentícias, uma vez que os prisioneiros eram um fardo para o sistema, de acordo com o pensamento de quem estava no comando. Esse sistema penal, o maior já construído, era organizado em um estilo militar, com alguns campos mantendo por volta de 50.000 pessoas.
Havia um critério para se aprisionar alguém: os indivíduos eram abordados aleatoriamente e recebiam ordens de prisão de maneira indiscriminada. Isso acontecia com ampla frequência. Todos tinham de carregar consigo uma cópia do Pequeno Livro Vermelho, de Mao. Questionar a razão da prisão era em si uma evidência de deslealdade, já que o estado era infalível.
Uma vez preso, o caminho mais seguro era a confissão instantânea. Os guardas eram proibidos de usar de violência aberta, de modo que assim os interrogatórios durassem centenas de horas, o que frequentemente fazia com que os prisioneiros morressem durante o processo. Aqueles que tivessem seus nomes citados durante uma confissão eram então caçados e recolhidos.
Após ter passado por esse processo, você era mandado para um campo de trabalhos forçados, onde seria avaliado de acordo com o número de horas que seria capaz de trabalhar com pouca comida. Você não poderia comer carne nem qualquer tipo de açúcar ou azeite. Os prisioneiros passariam então a ser controlados pela racionalização do pouco da comida que tinham.
A fase final dessa incrível litania de criminalidade durou o período de 1966 até 1976, durante o qual o número de mortos caiu dramaticamente, variando "apenas" entre um milhão e três milhões. O governo, agora cansado e nos primeiros estágios da desmoralização, começou a perder o controle, primeiro dentro dos campos de trabalhos forçados, e então na zona rural. E foi esse enfraquecimento que levou ao período final, e de certa forma o mais cruel, da história comunista da China.
Os primeiros estágios da rebelião ocorreram da única maneira permissível: a linha dura começou a criticar o governo por ser muito frouxo e muito descompromissado com o ideal comunista. Ironicamente, isso começou a surgir exatamente no momento em que a moderação se tornou manifesta na Rússia. Os neo-revolucionários da Guarda Vermelha começaram a criticar os comunistas chineses como sendo "reformistas a la Khrushchev". Como um escritor apontou, a guarda "se levantou contra seu próprio governo com o intuito de defendê-lo".
Durante esse período, o culto à personalidade de Mao chegou ao seu ápice, com o Pequeno Livro Vermelho atingindo um prestígio mítico. Os Guardas Vermelhos perambulavam pelo país tentando expurgar as "Quatro Coisas Antiquadas": idéias, cultura, costumes e hábitos. Os templos remanescentes foram obstruídos. Óperas tradicionais foram banidas, tendo a Ópera de Beijing todos os seus vestuários e cenários queimados. Monges foram expulsos. O calendário foi modificado. Todo o cristianismo foi banido. Animais de estimação como pássaros e gatos foram proibidos. Humilhação era a palavra de ordem.
Assim foi o Terror Vermelho: em sua capital, ocorreram 1.700 mortes e 84.000 pessoas fugiram. Em outras cidades, como Xangai, os números eram ainda piores. Foi implantado um processo de expurgo e purificação dentro do partido, com centenas de milhares presos e muitos assassinados. Artistas, escritores, professores, técnicos: todos eram alvos. Massacres organizados ocorriam em comunidades seguidas, com Mao aprovando cada passo como meio de eliminar cada possível rival político.
Mas, interiormente, o governo estava se fragmentando e rachando, mesmo que externamente ele estivesse se tornado ainda mais brutal e totalitário.
Finalmente, em 1976, Mao morreu. Em poucos meses, seus conselheiros mais próximos foram todos encarcerados. A reforma começou lenta a princípio, mas depois atingiu uma velocidade assustadora. As liberdades civis foram restauradas (comparativamente) e as reabilitações começaram. Os torturadores foram processados. Os controles econômicos foram gradualmente relaxados. A economia, por virtude da iniciativa humana e da iniciativa econômica privada, se transformou.
Tendo lido tudo isso, você agora faz parte da minúscula elite de pessoas que sabem alguma coisa sobre o maior campo de morte da história do mundo, que foi no que a China se transformou entre 1949 e 1976 — um experimento de controle total, algo que jamais se viu na história. Muitas pessoas hoje sabem mais sobre os produtos de baixa qualidade da China do que sobre as centenas de milhões de mortos e a inenarrável quantidade de sofrimento ocorrida sob o comunismo.
Quando você ouvir sobre produtos de baixa qualidade vindos da China, ou sobre trigo insuficientemente processado, imagine milhões sofrendo de uma fome dantesca, com pais trocando seus filhos para comê-los e, assim, permanecerem vivos. Não me diga que aprendemos alguma coisa com a história. Sequer conhecemos a história o suficiente para aprender algo com ela.
04 de fevereiro de 2020
Lew Rockwell
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Nota sobre as fontes, todas as quais você deve comprar e ler em detalhes: "China: uma longa marcha na noite", por Jean-Louis Margolin em O Livro Negro do Comunismo, por Stéphane Courtois et al. (Harvard, 1999), pp. 234-277; Death by Government, por R.J. Rummel (Transaction, 1996); e Hungry Ghosts: Mao's Secret Famine, por Jaspar Becker (Owl Books, 1998).
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