Ilustração reproduzida do Jornal Contábil
Apesar da aparência de normalidade nos Estados Unidos, o crescente sentimento de desesperança de seu povo, evidenciado pela epidemia de drogas, a nostalgia e o afundamento da classe média em dívidas, traz um alerta: algo está corroendo o poder de compra do famoso “americano médio”. Este processo de corrosão é bem conhecido pelos brasileiros, através de duros processos inflacionários. Mas lá a inflação estadunidense está a décadas dentro da meta (os místicos 2% ao ano). Ou pelo menos é o que diz o índice de preços ao consumidor.
Cabe lembrar que, em termos de contabilidade criativa, o Brasil ainda está engatinhando (apesar de já ter tido um afastamento presidencial pelo motivo). A vanguarda está, certamente, com os Estados Unidos da América, que disparou na liderança após o escandaloso estouro das agências de risco e derivativos podres de 2008 (que todo mundo hoje finge que não existiu).
“SUBSTITUIÇÕES” – Em 11 de outubro, o jornalista Max Keiser publicou um artigo citando alguns meandros da contabilidade da inflação medida pelo índice ao consumidor dos EUA. Dois fatos impressionantes: o uso das “substituições” (por exemplo, comparar o preço de 1 kg de bife bovino por 1 kg de hamburguer, posteriormente substituído por 1 kg de frango) e o uso dos “ajustes hedônicos”, onde ganhos de qualidade ou prazer com um produto reduzem a inflação.
Como para tudo se tem explicação, a justificativa para essas correções é boa. A substituição representa a mudança comportamental do perfil de consumo. O ajuste hedônico incorpora o ganho no conforto humano com a tecnologia. Por exemplo, uma TV de tubo de 21 polegadas custava R$ 800 há 10 anos, enquanto hoje se compra uma tv de LED de 32 polegadas por R$1.200. A inflação da tv, considerados os ajustes hedônicos, pode ser 0% em 10 anos, ou até negativa, dependendo de quanto se valora o prazer adicionado no novo aparelho.
UMA TENTATIVA – Acontece que as “substituições” são a forma das famílias fazer bater as contas, e não seu desejo de mudar o comportamento. Aqui no Brasil tivemos um episódio em que o ministro da Fazenda sugeriu às pessoas substituírem a carne por frango ou ovo. Certamente ele tinha conhecimento do método de cálculo estadunidense (e talvez um desejo latente de pedalar).
Em teoria, os ajustes hedônicos são uma via de mão dupla: se a qualidade de um produto ou serviço piora, a inflação deve subir. Em teoria apenas, pois estes ajustes nunca aconteceram. Na prática, não se encontra nenhum episódio na história do índice de inflação que se tenha feito o ajuste hedônico negativo.
Exemplos de perdas de qualidade não faltam: passagens aéreas agora não incluem lanche, bagagem, espaço. A mesma TV de LED citada antes tem uma durabilidade de 5 anos, enquanto a de tubo durava, no mínimo, 10 anos.
PERDA DOS DIREITOS – Além disso, de forma mais geral, a perda dos direitos dos cidadãos também induz a um ajuste hedônico negativo, pois todo direito removido precisa ser reforçado pelo trabalhador mediante dinheiro. São seguros, poupanças, plano de saúde, de previdência complementar, processos trabalhistas mais caros, toda uma gama de produtos que o sistema financeiro oferece para substituir os direitos reduzidos e que retratam, na prática, um processo inflacionário.
A inflação hedônica negativa da educação superior é outro exemplo: as pessoas pegam financiamentos para adquirir um produto (diploma) que já não entrega mais o retorno de antigamente (carteira assinada). No final, sobra a dívida com emprego precário, transformando jovens de 25 anos em zumbis.
DOIS ALERTAS – Para a realidade brasileira, ficam dois alertas: (1) a qualquer momento alguém vai trazer (ou já trouxe) a ideia de aplicar substituições e ajustes hedônicos no IPCA, efetivamente baixando o placar da inflação; (2) toda redução de direito do trabalhador implica em um processo inflacionário oculto, pois troca um serviço de estado, fora do sistema do mercantilismo, por um serviço pago.
Em resumo, é preciso apreciar com moderação os índices inflacionários (e, por consequência, o crescimento do PIB) como medida de qualquer coisa que se assemelhe a qualidade de vida do cidadão médio.
02 de novembro de 2017
Mathias Erdtmann