As ideias e as brigas de Eduardo Viveiros de Castro, o
intelectual brasileiro que virou a filosofia ocidental pelo avesso
Marcio Ferreira da Silva, um sujeito grandalhão e bem-humorado, professor de
antropologia na Universidade de São Paulo, tentava encontrar um volume nas
estantes de seu apartamento. Depois de perscrutar as prateleiras da sala, sumiu
por um instante no corredor que levava aos quartos. “Achei”, exclamou. Trouxe lá
de dentro uma edição especial da revista L’Homme, publicada no ano
2000, em que o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aos 91 anos, comentava os
avanços recentes de sua disciplina.
“Olha o que o bruxo escreveu!”, disse o antropólogo da USP. Passou então a
ler em voz alta os parágrafos finais de um artigo em que o etnólogo francês
exalta o trabalho dos “colegas brasileiros”, atribuindo a eles a descoberta de
uma metafísica própria aos índios sul-americanos.
“A filosofia ocupa novamente o
proscênio da antropologia”, escreveu Lévi-Strauss. “Não mais a nossa filosofia”,
acrescentou, mas a filosofia dos “povos exóticos”. O texto que Marcio Silva
tinha nas mãos indicava que algo havia mudado na relação da academia brasileira
com a metrópole – uma relação que poderia ser descrita como uma via de mão
única, ou quase isso, ao longo da maior parte do século XX.
Num artigo que causou certa discussão, escrito em 1968 para a aut
aut, prestigiosa revista italiana de filosofia, o filósofo Bento Prado Jr.
registrou que resenhar, naquela publicação, as obras de seus pares produzidas no
Brasil “não implicaria nenhuma informação para o leitor europeu”. E argumentava:
“Aqui também se faz marxismo, fenomenologia, existencialismo, positivismo.” Mas
não havia novidade ou contribuição maior: “Quase sempre, o que se faz é
divulgação.” Três décadas depois, Lévi-Strauss identificava um conjunto de
ideias na fronteira da antropologia e da filosofia que, a seu ver, o leitor
europeu precisava conhecer.
Marcio Silva havia retirado outro volume da estante. Leu o título:
Transformations of Kinship [Transformações do Parentesco]. “É
a última grande compilação de estudos da área. O último grande livro do século
XX. Tem um artigo do Eduardo”, disse, referindo-se ao antropólogo Eduardo
Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, nos anos 80. Abriu o livro nas
páginas finais e procurou referências bibliográficas. Encontrou os nomes de
ex-alunos de Viveiros de Castro.
“Olha aqui o Carlos Fausto. Citado em
português! A Aparecida Vilaça também.” O próprio Silva também constava da lista.
“Foi por causa do Eduardo que os ‘colegas brasileiros’ passaram a existir”,
disse. “É muito fácil aferir isso. Basta folhear as principais revistas da
disciplina. Isso mudou. E mudou por causa dele.”
Eduardo Viveiros de Castro mora com a
mulher, Déborah Danowski, e a única filha deles, Irene, de 18 anos, num prédio
antigo, estilo art déco, na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. No
apartamento de pé-direito alto, estantes de livros cobrem as paredes já no
pequeno corredor que serve como hall de entrada. Na prateleira de uma delas, na
sala, vê-se uma foto antiga do antropólogo, na casa dos 20 anos, com o cabelo
comprido. Ao lado, um retrato de Bob Dylan.
Numa noite de outubro do ano passado, Viveiros de Castro criticava o avanço
do governo de Dilma Rousseff sobre a Amazônia, seus projetos de estradas e
usinas hidrelétricas, benefícios ao agronegócio – e descaso com os direitos dos
povos indígenas. Sentado no sofá, o antropólogo comparou as ambições
desenvolvimentistas da atual presidente à megalomania da ditadura, com seu
ideário de “Brasil Grande”.
“Hegel deve estar dando pulinhos de alegria no túmulo, vendo como a dialética
funciona”, ele disse. “Foi preciso a esquerda, uma ex-guerrilheira, para
realizar o projeto da direita. Na verdade, eles sempre quiseram a mesma coisa,
que é mandar no povo. Direita e esquerda achavam que sabiam o que era melhor
para o povo e, o que é pior, o que eles pensavam que fosse o melhor é muito
parecido. Os militares talvez fossem mais violentos, mais fascistas, mas o fato
é que é muito parecido.”
Apesar da contundência, falava com calma, o tom de voz baixo. “O PT, a
esquerda em geral, tem uma incapacidade congênita para pensar todo tipo de gente
que não seja o bom operário que vai se transformar em consumidor. Uma
incapacidade enorme para entender as populações que se recusaram a entrar no
jogo do capitalismo. Quem não entrou no jogo – o índio, o seringueiro, o
camponês, o quilombola –, gente que quer viver em paz, que quer ficar na dela,
eles não entendem.
O Lula e o PT pensam o Brasil a partir de São Bernardo. Ou de
Barretos. Eles têm essa concepção de produção, de que viver é produzir – ‘O
trabalho é a essência do homem’. O trabalho é a essência do homem porra nenhuma.
A atividade talvez seja, mas trabalhar, não.”
Viveiros de Castro não é um homem alto. “Oficialmente”, mede 1,68 metro, mas
diz que a idade já deve lhe ter roubado 1 ou 2 centímetros. Tem 62 anos, o
cabelo e a barba grisalhos. O que se destaca em sua fisionomia é o nariz grande,
reto, quase um triângulo retângulo aplicado ao rosto. Seus gestos são contidos e
ele fala numa versão mais atenuada, mais diluída, do sotaque carioca. Em
contraste com o discurso combativo, faz lembrar, na prosódia e nos modos, um
diplomata. Afável, o antropólogo recusa a imagem: a comparação com a elite
burocrática do país – espécie de símbolo da vida burguesa bem-comportada – não
lhe agrada.
Num texto memorialístico recente, Viveiros de Castro contabilizou dezesseis
anos de estudo, do primário à faculdade, em duas tradicionais instituições
cariocas: o Colégio Santo Inácio e a Pontifícia Universidade Católica do Rio.
“Dois estabelecimentos privados de classe média e alta – ninguém é perfeito – de
minha cidade natal, ambos dirigidos pelos padres jesuítas”, escreveu. Seu pai
pertencia a uma família de “políticos e juristas”.
Augusto Olympio Viveiros de
Castro, bisavô de Eduardo, foi ministro do Supremo Tribunal Federal e hoje é
nome de rua em Copacabana. Outro bisavô, Lauro Sodré, nome de avenida em
Botafogo, foi militar, senador e governador do Pará. Participou da Revolta da
Vacina, em 1904 – segundo o antropólogo, por ser positivista e acreditar que o
Estado “só podia chegar até a pele” dos cidadãos. “Um argumento curioso”,
comentou. “Equivocado, no caso da vacina. Mas tem seu interesse retórico. Tendo
a simpatizar com ele. Acho que o Estado devia parar muito antes, bem longe da
pele.”
Do ponto de vista intelectual, Viveiros de
Castro é herdeiro de cientistas sociais que ajudaram a derrubar o senso comum de
que os povos indígenas são marcados pelo atraso em relação ao mundo ocidental.
Essas sociedades sempre foram descritas como “primitivas” por carecerem de
instituições modernas – como o Estado e a ciência.
Foi Claude Lévi-Strauss quem aposentou definitivamente a ideia de que os
povos sem escrita seriam menos racionais do que os europeus. Os índios ocupavam
um lugar próximo, nessa visão de mundo que ele ajudou a desfazer, ao das
crianças, ou dos loucos. O pesquisador francês argumentou que havia método e
ordem nas aparentemente caóticas associações que esses povos faziam – entre
tipos de animais, acidentes geográficos, corpos celestes e instituições sociais.
Eram o resultado não da falta de razão, mas, em certo sentido, de seu excesso.
O
que nenhuma sociedade humana tolera, dizia Lévi-Strauss, é a falta de sentido. O
“pensamento selvagem”, assim, é totalizante, e procura, por meio de analogias,
uma compreensão completa de todo o universo, estabelecendo relações entre os
diferentes tipos de fenômenos. Um determinado rio se distingue de outro de
maneira análoga ao modo como uma espécie animal é diferente de outra, ou um
grupo social, de seus vizinhos. Nada pode escapar à sua malha de
significados.
Nos anos 70, o antropólogo francês Pierre Clastres argumentou que a falta de
Estado nos povos das terras baixas sul-americanas – em contraste com a forte
centralização política de seus vizinhos andinos – não seria uma carência, mas
uma escolha deliberada, coletiva. Há entre eles, com frequência, alguma forma de
chefia. Em troca de prestígio, o chefe ocupa um lugar privilegiado, e apartado,
em relação aos demais integrantes da sociedade. Pode falar à vontade. Mas
ninguém lhe dá ouvidos.
“O chefe por vezes prega no deserto”, escreveu Clastres.
Do chefe é exigida uma generosidade maior, que o obriga a distribuir bens para o
restante da sociedade. Lévi-Strauss, ao falar dos Nambikwara, dizia que “a
generosidade desempenha um papel fundamental para determinar o grau de
popularidade de que gozará o novo chefe”.
Por mais populares que sejam, contudo, tais líderes não dispõem de nenhuma
capacidade coercitiva. O chefe não manda. Tudo se passa como se essas sociedades
criassem uma posição privilegiada, o lugar exato onde o Estado poderia nascer,
para então esvaziá-la de poder, numa espécie de ação preventiva. Foi o que
Clastres chamou de “sociedades contra o Estado”. Defendeu a ideia, em um de seus
artigos, argumentando que “só os tolos podem acreditar que, para recusar a
alienação, é preciso primeiro tê-la experimentado”.
Naquela mesma década de 70, o norte-americano Marshall Sahlins se ocupou da
dimensão econômica dessas sociedades. Procurou analisar as mais “pobres” dentre
elas, os grupos nômades de caçadores-coletores. Segundo a visão então
consagrada, tais sociedades mal conseguiriam assegurar a própria subsistência.
Com técnicas pouco desenvolvidas e baixa produtividade, por certo não havia
nelas produção excedente, poupança, investimento. Viviam da mão para a boca.
Ocorre que o tempo dedicado ao trabalho também era pequeno. Esses estranhos
“primitivos” pareciam ser ao mesmo tempo miseráveis e ociosos. Oque Sahlins
argumentou é que não fazia sentido, para grupos nômades, acumular bens – quanto
menos tivessem que carregar, tanto melhor. Tampouco era lógico produzir
estoques, quando esses estão ao redor, “na própria natureza”. Do ponto de vista
dos caçadores-coletores, não lhes faltava nada. Trabalhar pouco era uma escolha,
e aqueles grupos constituiriam o que o antropólogo chamou de primeira “sociedade
de afluência”.
Em alguns de seus textos, Viveiros de Castro cita Lévi-Strauss e Pierre
Clastres como paixões intelectuais. Não chega a fazer o mesmo com Sahlins, mas o
ex-aluno dos padres jesuítas retomou o autor norte-americano, num ensaio
recente, para argumentar que, junto aos outros dois, ele contribuiu para colocar
em questão “a santíssima trindade do homem moderno: o Estado, o Mercado e a
Razão, que são como o Pai, o Filho e o Espírito Santo da teologia capitalista”.
Em vez de símbolo de atraso, a “sociedade primitiva”, escreveu o antropólogo
carioca, “é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de
que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há
socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos –
continuará havendo”.
O antropólogo e sua mulher mantêm uma casa
simples num condomínio de classe média alta, em Petrópolis, na serra fluminense.
Costumam passar os finais de semana lá. No centro do terreno se ergue uma
espécie de pequeno Pão de Açúcar, uma pedra grande, com cerca de 5 metros de
diâmetro, que se mostrou providencial para baratear o preço do lote. “O pessoal
por aqui quer casa com cinco salas, cinco suítes”, disse Viveiros de Castro.
“Esse pedregulho atrapalha.” Nos fundos, fica uma obra a que ele se dedica com
afinco e que parece lhe dar grande orgulho: um jardim-pomar.
Num domingo de céu sem nuvens, ele caminhava por entre os arbustos
distribuídos no terreno gramado. Levava um cajado de madeira quase do seu
tamanho. Usava-o sobretudo para apontar as frutas de nomes estranhos, que eram
sempre aparentadas de outras, mais conhecidas.
“Essa é da família da pitanga”;
aquela outra, “parente da lichia”; uma terceira, “deliciosa, com o gosto entre a
goiaba e o abacaxi”. Déborah acompanhava o percurso. Ela é professora de
filosofia na PUC do Rio. Os dois são casados há quase três décadas. Quando
voltamos para a sala da casa, pedi que Viveiros de Castro falasse sobre a ideia
que o projetou. A síntese da metafísica dos povos “exóticos”, a que se referia
Lévi-Strauss, surgiu em 1996. Ganhou o nome de “perspectivismo ameríndio”.
Fazia já alguns anos, então, que o antropólogo se ocupava de um traço
específico do pensamento indígena nas Américas. Em contraste com a ênfase dada
pelas sociedades industriais à produção de objetos, vigora entre esses
povos a lógica da predação.
O pensamento ameríndio dá muita importância
às relações entre caça e caçador – que têm, para eles, um valor comparável ao
que conferimos ao trabalho e à fabricação de bens de consumo. Diferentes
espécies animais são pensadas a partir da posição que ocupam nessa relação.
Gente, por exemplo, é ao mesmo tempo presa de onça e predadora de porcos.
Duas alunas suas, Aparecida Vilaça e Tânia Stolze Lima, preparavam, naquela
ocasião, teses de doutorado que chamavam a atenção para outra característica
curiosa do pensamento de diferentes grupos indígenas. Tânia pesquisava os
Juruna, do Xingu; Aparecida, os Wari, em Rondônia. Pois bem: de acordo com os
interlocutores de ambas, os animais podiam assumir a perspectiva humana. Tânia e
Viveiros de Castro fizeram um levantamento que indicava a existência de ideias
semelhantes em outros grupos espalhados pelas Américas, do Alasca à Patagônia.
Segundo diferentes etnias, os porcos, por exemplo, se viam uns aos outros como
gente. E enxergavam os humanos, seus predadores, como onça. As onças, por sua
vez, viam a si mesmas e às outras onças como gente. Para elas, contudo, os
índios eram tapires ou pecaris – eram presa. Essa lógica não se restringia aos
animais. Aplicava-se aos espíritos, que veem os homens como caça, e também aos
deuses e aos mortos.
Ser gente parecia uma questão de ponto de vista. Gente é quem ocupa a posição
de sujeito. No mundo amazônico, escreveu o antropólogo, “há mais pessoas no céu
e na terra do que sonham nossas antropologias”.
Ao se verem como gente, os animais adotam também todas as características
culturais humanas. Da perspectiva de um urubu, os vermes da carne podre que ele
come são peixes grelhados, comida de gente. O sangue que a onça bebe é, para
ela, cauim, porque é cauim o que se bebe com tanto gosto. Urubus entre urubus
também têm relações sociais humanas, com ritos, festas e regras de casamento. O
mesmo vale para peixes entre peixes, ou porcos-do-mato entre porcos-do-mato.
Tudo se passa, conforme Viveiros de Castro, como se os índios pensassem o
mundo de maneira inversa à nossa, se consideradas as noções de “natureza” e de
“cultura”. Para nós, o que é dado, o universal, é a natureza, igual para todos
os povos do planeta. O que é construído é a cultura, que varia de uma sociedade
para outra. Para os povos ameríndios, ao contrário, o dado universal é a
cultura, uma única cultura, que é sempre a mesma para todo sujeito. Ser gente,
para seres humanos, animais e espíritos, é viver segundo as regras de casamento
do grupo, comer peixe, beber cauim, temer onça, caçar porco.
Mas se a cultura é igual para todos, algo precisa mudar. E o que muda, o que
é construído, dependendo do observador, é a natureza. Para o urubu, os vermes no
corpo em decomposição são peixe assado. Para nós, são vermes. Não há uma
terceira posição, superior e fundadora das outras duas. Ao passarmos de um
observador a outro, para que a cultura permaneça a mesma, toda a natureza em
volta precisa mudar.
Já fazia alguns minutos que Déborah tinha se enfurnado dentro da casa,
enquanto o antropólogo falava de peixes, antas e urubus. Viveiros de Castro
disse se lembrar de que estava lendo um ensaio de Lévi-Strauss quando teve o
“estalo” que deu origem ao perspectivismo. Fez uma pausa e, sem se levantar da
poltrona, chamou pela mulher. “Débi!” Ela apareceu no mezanino, sobre nossas
cabeças. O antropólogo voltou a contar a história. “Eu lembro que saí do
escritório, onde estava lendo esse texto, e disse à Débi que tinha acabado de
ter uma ideia; uma ideia que iria me ocupar por uns dez anos, se eu quisesse
tirar todas as consequências dela.” Virou-se para cima e perguntou: “Lembra,
Débi?” Do alto do mezanino, ela riu, simpática, e respondeu balançando a cabeça:
“Não.”
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de
Chicago, avalia que as ideias desenvolvidas por Viveiros de Castro a partir do
perspectivismo ameríndio dialogam diretamente com boa parte da
tradição filosófica ocidental. Ao mesmo tempo, a síntese que ele propôs do
pensamento indígena é uma crítica a essa tradição, ao colocar em questão as
noções de “natureza” e “cultura” da “vulgata metafísica ocidental”.
Essa capacidade crítica foi logo notada. Durante um debate na Inglaterra, mal
a ideia havia sido apresentada, um interlocutor do antropólogo carioca lhe disse
que os índios de que ele falava “pareciam ter estudado em Paris”. Reagindo à
provocação, Viveiros de Castro comentou que “na realidade havia ocorrido
exatamente o contrário: que alguns parisienses”, e ele se referia certamente a
Lévi-Strauss, que viveu no Brasil entre 1935 e 1939, “haviam estudado na
Amazônia”. E argumentou que sua análise “devia tanto ao estruturalismo francês”,
de Lévi-Strauss, quanto este estava em débito com o conhecimento que travara com
povos indígenas do Brasil. “Não fora o Pará que estivera em Paris”, disse o
antropólogo, “mas sim Paris no Pará”.
Viveiros de Castro promoveu, em relação à filosofia, algo análogo ao que
Pierre Clastres e Marshall Sahlins haviam feito em relação ao Estado e à
economia de mercado: mostrou que um outro mundo é possível. A ideia recebeu
enorme atenção, dentro e fora do país, quase imediatamente após sua formulação.
“Na França e na Inglaterra, o Eduardo é altamente respeitado”, declarou a
professora da Universidade de Chicago; “basta dizer que na livraria Gibert, em
Paris, há uma seção de prateleira com o nome dele.”
Nos Estados Unidos, a resistência ao perspectivismo foi maior, observou
Manuela. No final de novembro passado, contudo, após uma conferência de Viveiros
de Castro para a Associação Americana de Antropologia, ela me enviou uma
mensagem informando que a recepção às ideias dele estava “melhorando bastante”.
Mesmo antes disso, de toda forma, o professor brasileiro já contava com
defensores importantes. Marshall Sahlins, colega de Manuela em Chicago,
considera Viveiros de Castro “o antropólogo mais erudito e original do planeta”
da atualidade, tendo inaugurado “uma nova era para a antropologia, com profundas
implicações para o resto das ciências humanas e das humanidades”.
Eduardo Batalha Viveiros de Castro nasceu no
dia 19 de abril de 1951, no Rio de Janeiro. Passou toda a adolescência na Gávea,
Zona Sul da cidade. Nos anos 60, o bairro era uma larga ilha de classe média
contida entre a Rocinha, no alto do morro, e o Parque Proletário, uma favela que
não existe mais. Eduardo morava numa casa grande de dois andares, movimentada,
aberta à vizinhança, com os pais e os cinco irmãos mais novos. A mãe “era dona
de casa, formada em letras, como convinha a uma moça de boa família”. O pai, um
advogado trabalhista, não dirigia.
Nos finais de semana, contratava os serviços
de um vizinho taxista para levar a família à praia em Ipanema.
Tampouco tinham tevê – levaram certo tempo até adquirir uma, “meio que
obrigando a gente a estudar”. Por outro lado, a biblioteca era boa. “Os livros
que não eram brasileiros eram franceses. Aprendi a ler em francês folheando os
livros do meu pai. Minha mãe, também, tinha estudado numa escola de freiras
francesas. Havia um ruído de fundo em francês na casa.”
Viveiros de Castro não deu muita atenção quando chegou ao bairro a notícia do
golpe militar, em 64: “Eu tinha 13 anos, estava jogando bola.” Seu interesse,
além do futebol, eram os livros de divulgação científica. Começou a gostar de
música na época em que os discos dos Beatles e dos Rolling Stones desembarcaram
no país, e decidiu aprender inglês quando conheceu as canções de Bob Dylan, que
ele reputa, ainda hoje, personagem fundamental em sua formação intelectual. “Os
discos dele em geral tinham as letras na contracapa. Era só abrir o dicionário.”
Foi por meio do cantor norte-americano que o antropólogo descobriu a geração
beat, com seus valores libertários, e a contracultura.
Em contraposição à vida alegre da Gávea, o Colégio Santo Inácio, onde estudou
até chegar à faculdade, foi um longo “serviço militar”, do qual disse não
guardar boas lembranças – nem más. Uma escola exclusivamente masculina, em que a
ênfase não estava no ensino religioso, mas na disciplina.
Os anos decisivos foram 1967 e 1968. Interessou-se pelas discussões
intelectuais publicadas nos suplementos dominicais da imprensa, tomando o
partido da poesia concreta, das revoluções formais e do tropicalismo, contra o
que se refere como vertente nacional-populista, “tipo samba de raiz, Tinhorão,
CPC – o marxismo cultural, chamemos assim”.
Passou a ler obras de linguística,
filosofia, poesia brasileira e literatura francesa. Ainda gostava de matemática,
carreira que considerou seguir. Desistiu ao se confrontar com um colega que
“nadava de costas” na disciplina. “Ele era muito melhor do que eu. Vi que não
tinha condições de ser matemático.”
Foi nessa época, disse o antropólogo, que ele descobriu o mundo intelectual
“pra valer”. “Comecei também a desenvolver sentimentos antiburgueses. Deixei o
cabelo crescer, por assim dizer. Passei a experimentar as drogas, a frequentar
ambientes pouco recomendáveis e a ter amigos fora do colégio. Sobretudo um, que
foi muito importante para me situar nos debates da época, amigo meu até hoje,
que é o Ivan Cardoso, cineasta.”
Quando se referem um ao outro, Viveiros de
Castro e o amigo do tempo da adolescência, dois senhores de mais de 60 anos,
parecem garotos. Assim que encontrei Ivan Cardoso pela primeira vez, em sua
casa, em Copacabana, ele foi logo dizendo: “O Viveiros? Eu comia ele.”
Com uma calva pronunciada, o cineasta trazia o cabelo desarrumado nas
têmporas e na nuca. Numa sala atulhada de móveis e objetos criados por ele,
quadros com esmaecidas bandeirolas de Festa Junina se destacavam. “São Volpis?”,
perguntei. “São Ivolpis”, ele respondeu, satisfeito, “Ivolpis!”
Mais conhecido por seu longa O Segredo da Múmia, de 1982,
Cardoso foi um inovador formal, rodando filmes de vanguarda em super-8 a partir
do final dos anos 60. Viveiros de Castro conta que a preocupação do amigo com a
plasticidade das cenas, aliada à paródia das fitas de terror que fazia, levou o
poeta e crítico Haroldo de Campos a sintetizar sua obra como “Mondrian no
açougue”. “Tenho uma admiração imensa pelo Ivan”, me disse o antropólogo. “Ele,
sim, é um artista. Nunca se afastou disso, e tem uma puta imaginação plástica.
Eu sou um anão. O Ivan é um gigante.”
Os pais de Ivan Cardoso e de Viveiros de Castro eram amigos. Os dois garotos
estudavam em escolas diferentes, mas próximas. O Colégio São Fernando, que Ivan
frequentava, ficava em Botafogo, como o Santo Inácio. Cardoso editava um jornal
estudantil e convidava artistas plásticos para dar palestras aos alunos. “O Ivan
era muito cara de pau”, explicou o antropólogo. “Batia na porta das pessoas. Eu
ia um pouco no vácuo dele.” Os dois ficaram amigos de Hélio Oiticica. “Ele
gostou da gente”, contou o antropólogo. “Ensinava coisas. Foi um pouco nosso
guia no mundo artístico.”
Esticado na cama de seu quarto, Ivan Cardoso lembrou a primeira vez em que
encontrou Oiticica. Cardoso havia ligado para o artista, pedindo que falasse a
seus colegas, na escola. Recebeu, como resposta, um convite para que fosse a sua
casa, no Jardim Botânico – um lugar que mais tarde ele e Viveiros de Castro
passariam a frequentar. “A casa do Hélio era estranhíssima. Misturavam-se
críticos de arte e malandros do morro. Era um desfile. Na sala, tinha uma tenda.
Ele morava com a mãe. Todo mundo queimando fumo, e a mãe dele descia a escada e
reclamava: ‘Vocês vão ser todos presos! Eu já chamei a polícia, seus
maconheiros!’ A velha sofreu.”
Viveiros de Castro e Hélio Oiticica gostavam de conversar sobre literatura e
filosofia. “Os dois já tinham lido tudo. Cheguei à conclusão de que não
adiantava mais eu ler. Qualquer coisa, perguntava para eles.” Segundo o
cineasta, seu amigo tomava o café da manhã com um livro aberto na mesa. “Ele lia
até trepando”, disse, rindo. “Mas não era apenas um intelectual. Ele andava com
um canivete de mola. Era transviado também.
Uma vez ele arrumou uma confusão
desgraçada no baixo Leblon. Arranjou briga, tacou o carro em cima de um
desgraçado lá, um elemento nocivo, tipo um ‘bad boyzinho’ desses. Ele sempre foi
uma pessoa carismática, e fazia o marketing dele. Fumava Continental sem filtro,
que é um destronca peito desgraçado, e era um bom pé de cana. Tomava
traçado.”
No meio da conversa, o cineasta quis saber o que eu achava do amigo
intelectual. Em silêncio, sério, prestou atenção à resposta. “Então é isso”,
concluiu. “O Caetano está perdendo tempo com esse Mangabeira Unger. É um
merda.”
Em 1969, Viveiros de Castro começou a
estudar na PUC. Cursou jornalismo por um ano. No ciclo básico, se interessou por
ciências sociais e pediu transferência. Parte considerável do que era lecionado
no novo curso, no entanto, não o agradava. “O que o pessoal estava ensinando era
teoria da dependência, Fernando Henrique Cardoso, burguesia nacional, teoria da
revolução – quem seria o guia da mudança, se o operariado ou o campesinato”,
contou.
“Eu, na verdade, tinha horror àquela coisa. Não tinha saco para a teoria da
dependência e não gostava da teoria do Brasil. Achava de uma arrogância absurda
enunciar a verdade sobre o que o povo deve ser, o que o povo deve fazer. Isso de
teorizar o Brasil é uma coisa que a classe dominante sempre fez. Quem fala
‘Brasil’ é sempre alguém que está mandando. Seja para fazer revolução de
esquerda, seja para soltar os gorilas da ditadura na rua. E aqueles caras... Eu
ficava pensando: eles querem as mesmas coisas que os militares. Só que querem
ser eles a mandar. Vai ser um quartel, isso aqui.”
O tema mobiliza Viveiros de Castro: esquerda tradicional, “careta”, de um
lado; esquerda existencial, “libertária”, de outro. A divisão, ele observa, não
era apenas intelectual. Definiu trajetórias pessoais, “como ir para a
clandestinidade e para a luta armada; ou ir para a praia, fumar maconha, tocar
violão”. Num texto de memórias, disse admirar seus “companheiros mais corajosos”
que se arriscaram na clandestinidade. Viveiros resolveu ir à praia.
Em 1970, um píer foi construído em Ipanema, por ocasião das obras para lançar
o esgoto longe da costa. Moveram a areia e surgiram morrotes altos, que mais
tarde ganhariam o apelido de “dunas do barato”. Mudanças no fundo do mar
melhoraram as ondas, atraindo os surfistas. Com eles vieram os hippies e o que
havia de contracultura no Rio de Janeiro de então. O jovem estudante da PUC
também fazia ponto por lá.
“Como diz o Ivan Cardoso, esse era o tempo em que a gente era feliz e sabia.
Eu ia nos finais de semana. Tinha muita droga. Muita maconha, muito ácido. Foi
um momento importante porque houve uma interpenetração cultural entre o morro e
a baixada, por causa do pessoal que vendia pó, vendia fumo.” Ele próprio,
segundo disse, não gostava particularmente das substâncias em voga naquele
momento. “Eu sou uma pessoa medrosa. Experimentei uma ou duas vezes LSD. Não
gostei, fiquei paranoico. Maconha eu usei muito, mas mais porque era coisa da
época. O efeito em si... Me dava sono.”
Seu perfil de usuário era mais clássico: álcool, tabaco e cocaína. “Não era
maconha, comida vegetariana, ácido. Eu era mais década de 50 do que década de
70. Fui quase viciado em cocaína. Parei porque achei que não ia aguentar
fisicamente. É uma droga horrível. Ela te transforma num monstro narcísico. Dá
uma sensação de onipotência, que na verdade é uma ‘oni-impotência’. Quando você
está mais onipotente é na verdade quando você está completamente impotente: você
fica só falando merda, fazendo besteira, e também não é um estimulante sexual. É
uma droga idiota, fascista. Mas eu gostava. Eu usava.”
Entre o píer e a PUC, Viveiros de Castro
conheceu a obra de Lévi-Strauss, que começava a ser lida no Brasil. O crítico
literário Luiz Costa Lima, professor na mesma PUC, disse ter tomado contato com
as ideias do antropólogo francês em meados dos anos 60, “quando começou a moda
do estruturalismo”. Atraído pelo rigor formal das análises lévi-straussianas,
passou a estudá-las a sério. O que aprendia, ensinava na faculdade.
Viveiros de
Castro seguiu seu curso. “O estruturalismo fazia parte daquilo que a esquerda
tradicional considerava anátema”, disse o ex-aluno. “Falavam que era burguês,
formalista, que negava a história. Tinha uma série de palavras de ordem que você
ouvia.”
Costa Lima e o aluno se tornaram amigos. Formaram um grupo de estudos e se
dedicaram por alguns anos, duas vezes por semana, à leitura sistemática das
Mitológicas, a obra em que Lévi-Strauss analisa a lógica de mitos
ameríndios, reunindo rigor formal e atenção aos detalhes concretos,
significativos nas narrativas: cores, cheiros, comportamentos dos animais,
detalhes escatológicos, sexo. “Fiquei fascinado com os mitos”, disse Viveiros de
Castro. “Eram rabelaisianos, mas tinham uma lógica formal, por causa das
combinações, das permutações. Eram ‘Mondrian no açougue’, como os filmes do
Ivan. Aquilo tinha uma relação com as coisas que eu lia nos suplementos e de que
gostava. Em particular a linguística. E os concretistas. Havia uma afinidade,
não direta, mas havia, entre concretistas, tropicalismo e estruturalismo.”
Essa não foi a única influência que Costa Lima exerceria na vida do aluno.
Terminada a faculdade, Viveiros de Castro não sabia que rumo tomar. Pensou em
fazer pós-graduação em letras. O professor, crítico literário, o desestimulou.
Fez isso, explicaria mais tarde, porque “o estudo de literatura sempre foi muito
ruim no Brasil”. “Hoje é péssimo”, frisou. Recomendou ao aluno, entusiasmado
pelas Mitológicas, que cursasse antropologia no Museu Nacional,
vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Roberto DaMatta, à época professor do Museu, participou da banca de seleção
para o mestrado. “Eu era besta pra cacete”, comentou Viveiros de Castro, ao
falar sobre o exame. “O Matta me perguntou: ‘Estou vendo aqui no seu currículo
que você leu Lévi-Strauss. O que você leu?’ E eu respondi: ‘Tudo!’”
Na sala de sua casa, em São Paulo, Marcio
Silva acendeu um cigarro. O antropólogo pegou uma prancheta na qual havia
anotado pontos importantes da trajetória intelectual de seu antigo orientador.
Viveiros de Castro se tornou professor assistente do Museu em 1978, pouco depois
de concluir o mestrado. Naquele mesmo ano, escreveu um artigo com seus
professores Anthony Seeger e Roberto DaMatta sobre a noção de pessoa entre os grupos indígenas da
América do Sul, texto que se tornaria referência para o estudo desses povos.
Marcio ressaltou a audácia dos primeiros parágrafos do artigo. Ali os três
autores afirmam que diferentes regiões do planeta haviam contribuído, no
passado, com algum aspecto importante da teoria antropológica. A Melanésia,
diziam, descobriu a reciprocidade – a obrigação social de dar, receber e
retribuir “dádivas”, cuja circulação seria como a linha de costura da sociedade,
mantendo-a coesa. O Sudeste Asiático, por sua vez, alargou a compreensão dos
sistemas de parentesco e das alianças feitas por regras de casamento. Da África,
lembravam, veio um entendimento melhor das linhagens, da bruxaria e da
política.
Davam então o passo ousado. Os povos da América do Sul, menos pesquisados e
conhecidos, deveriam também fazer sua contribuição, resultado de uma
característica específica dessas sociedades: o privilégio que conferiam, em suas
cosmologias, ao corpo. “Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado,
resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que
as sociedades indígenas têm da natureza do ser humano.”
Perguntei a Marcio Silva se seu ex-orientador, à época desse artigo um jovem
de 27 anos, não lhe parecia “atrevido, pretensioso”. “Essa palavra, ‘atrevido’,
é boa”, respondeu Silva. “Às vezes ele parece gostar de correr riscos.”
Deu um exemplo. Nos anos 80, Viveiros de Castro retomou um tema, antes
central, que estava fora de moda na antropologia: o parentesco. A partir do
final do século XIX, pesquisadores passaram a identificar os laços forjados pela
consanguinidade – aqueles que criam grupos de descendência – e pela aliança por
casamento – laços que “costuram” as relações sociais entre grupos diferentes –
como a coluna vertebral das “sociedades primitivas”. Era assim que elas se
mantinham coesas, e era por meio do estudo desses laços que os antropólogos
poderiam conhecê-las melhor.
Viveiros de Castro fez uma pergunta distinta. Ele não queria saber apenas o
que o parentesco dizia sobre os povos indígenas, mas também o que as culturas
ameríndias teriam a dizer sobre o parentesco. Será que os índios explicavam o
parentesco do mesmo modo que nós, ocidentais? A ideia que lhe ocorreu é em tudo
semelhante à lógica do perspectivismo. Pode ser considerada um passo prévio,
mais fácil de compreender quando já se conhece a metafísica dos povos indígenas
das Américas.
No Ocidente, ele disse, o que é dado são as relações de filiação, de
“consanguinidade”. A ligação entre pais, irmãos e filhos é “natural”,
logicamente anterior às relações com esposa, sogros e cunhados – relações de
“afinidade” que não são dadas, mas construídas pelas escolhas dos
indivíduos.
Para os povos ameríndios, contudo, o valor fundamental não está nos laços
biológicos, “de sangue”, mas nas relações de aliança, com sogros e cunhados.
Aquilo que para nós faz parte da cultura, do que precisa ser construído, para
eles já é dado, é a referência que dá sentido e organiza as relações sociais. A
lógica da afinidade, das normas que proíbem ou prescrevem casamentos entre
pessoas e grupos distintos, é usada mesmo nas relações sociais relativamente
distantes, com outros povos, inimigos e espíritos; relações que não têm a ver,
necessariamente, com a troca de cônjuges.
O que precisa ser construído por eles, por outro lado, é aquilo que para nós
já é dado: o corpo. A “consanguinidade”, a relação de semelhança corporal entre
parentes e, até, entre pais e filhos, precisa ser fabricada mesmo depois do
nascimento – por meio da partilha dos mesmos alimentos, por exemplo. Daí a
importância do corpo, notada no artigo de 1978.
O atrevimento de seu ex-orientador, segundo Marcio Silva, foi tirar todas as
consequências desse fato. Os dois modos de compreensão do parentesco têm
implicações políticas distintas. “Numa sociedade como a nossa, a
consanguinidade, a relação entre irmãos, é pensada como um modelo da relação
social”, disse Silva. “Por exemplo, como Viveiros de Castro lembrava, na
Revolução Francesa você tem liberdade, igualdade e fraternidade. Fiquemos com a
fraternidade. A relação social boa é como se fosse uma relação entre irmãos.
Mesmo que eu não tenha parentesco com você, eu sou seu irmão: somos ambos filhos
de Deus. Também nas constituições laicas operamos com base nessa metáfora
fortíssima de irmãos. O que significa dizer que você é meu irmão? Significa que
somos semelhantes e que somos conectados por um ente superior. Que pode ser o
Estado, pode ser Deus, pode ser o nosso pai, se formos irmãos mesmo. Isso que
nos unifica é um termo superior.”
Já na lógica social dos povos indígenas, não há termo superior que unifique.
Os outros – que podem ser um povo indígena diferente, o inimigo, os animais –
são para os ameríndios, antes de tudo, uma espécie de cunhado. “O que significa
chamar de cunhado? Entre dois cunhados não tem ninguém que seja superior: tem
uma mulher que é diferente para cada um.
Para um é irmã, para o outro é esposa.
Somos relacionados porque vemos uma mesma mulher de maneiras diferentes.” Não
há, aí, necessidade de Deus, de pai ou de Estado para se pensar a boa relação
social.
“Lembro-me dele dizendo em sala de aula, em tom de blague, que na Amazônia
não valia o lema ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. Liberdade, tudo bem. Mas
no lugar de igualdade, diferença. No lugar de fraternidade, afinidade.”
Se a Melanésia havia contribuído com a noção de reciprocidade, e a África com
os grupos de descendência, então os povos da América do Sul forneciam, no início
dos anos 90, a ideia de “afinidade potencial”. Tanto nesse caso quanto no
perspectivismo ameríndio, que surgiria poucos anos depois, Viveiros de Castro
usou conceitos ocidentais – natureza, cultura, consanguinidade, afinidade – para
tentar entender as culturas ameríndias. Mas descobriu que era preciso
invertê-los para que funcionassem bem naquelas sociedades.
As consequências políticas dessa operação, tanto no caso do parentesco quanto
no da metafísica indígena, em que a natureza muda dependendo do observador, eram
as mesmas. “Esse é um mundo em que você não tem um ponto de vista dominante,
soberano, monárquico”, explicou Viveiros de Castro. “Ao contrário, a condição de
sujeito está espalhada, dispersa. Não tem uma transcendência, um ponto de vista
do todo, privilegiado. O perspectivismo é o correlato cosmológico, metafísico,
da ideia de sociedade contra o Estado, do Pierre Clastres.”
No seu apartamento, em outubro passado,
Viveiros de Castro parecia irritado. Explicou que havia se contrariado no
trabalho, o que não era incomum. Descreveu mais de três décadas de uma relação
conflituosa com seus colegas de instituição. A origem dos aborrecimentos, ele
disse, remontava a 1978, quando havia concluído o mestrado e concorreu a uma
vaga de professor assistente no Museu Nacional. Dois candidatos se apresentaram:
ele próprio e o antropólogo João Pacheco de Oliveira Filho.
Oliveira Filho é, hoje, um dos principais representantes de uma linha de
pesquisa importante na instituição carioca. Seus seguidores procuram entender os
povos indígenas em suas relações com a sociedade e o Estado brasileiros. Essa
corrente descende de Darcy Ribeiro, passando por Roberto Cardoso de Oliveira, um
dos criadores da pós-graduação em antropologia no Museu Nacional, em 1968.
Cardoso de Oliveira descreveu a “sociologia do contato”, que ele praticava, como
uma tentativa de explicar a “sociedade tribal, vista não mais em si, mas em
relação à sociedade envolvente”.
Em um artigo recente, em que mencionava os
Ticuna, do Amazonas, João Pacheco de Oliveira ressaltou que mesmo as “crenças,
costumes e princípios organizativos” dos povos indígenas estão “interligados e
articulados com determinaçõese projetos da sociedade nacional”.
Por telefone, o norte-americano Anthony Seeger, coautor do artigo de 1978 e
orientador de Viveiros de Castro no doutorado, disse que ele e o aluno
acreditavam que “as sociedades em si também mereciam atenção”. Ao se preocuparem
com o parentesco e com as cosmologias dos grupos que estudavam, praticavam uma
etnologia – a parte da antropologia que se ocupa dos povos indígenas –
“clássica”, tida por representantes da outra corrente como excessivamente
“filosófica”, apolítica e pouco comprometida com as circunstâncias sociais dos
índios. De sua parte, Viveiros de Castro acredita que é a “sociologia do
contato”, uma linha de pesquisa, ele diz, associada à “esquerda tradicional”,
que é politicamente questionável. Seus rivais veriam os índios a partir da mesma
perspectiva adotada pelo Estado, como parte do Brasil. Ele, ao contrário,
inverteria o ponto de vista. Partiria das sociedades indígenas, tomando suas
ideias e práticas como referências para criticar o Brasil, o Estado, o
capitalismo.
Viveiros de Castro perdeu o concurso de 1978. Segundo ele porque os
representantes da esquerda tradicional eram majoritários na banca. João Pacheco
de Oliveira Filho foi o escolhido, mas uma segunda vaga foi criada. O etnólogo
“clássico” se tornou, ele também, um jovem professor do Museu. Nos anos
seguintes, o que começara como uma disputa teórica se transformaria em cizânia e
ressentimento.
Tanto assim que as opiniões sobre o antropólogo carioca se dividem, de
maneira marcada. Entre ex-alunos, ele é reconhecido por gestos de generosidade e
de correção intelectual. Contudo, são também frequentes os relatos de arrogância
na relação de Viveiros de Castro com os colegas, o que contribui para o clima de
animosidade na instituição. Ele próprio disse representar, no Museu, “uma
posição que é considerada trouble maker, anarquista, e que despreza os
outros”. “Isso é quase verdade. Sou tido como alguém que não leva muito a sério
o outro tipo de antropologia que é feita lá. De fato. Eu nunca manifestei isso,
acho eu. Mas o pessoal percebe. Hoje eu diria que está quase todo mundo aliado
ao João, e contra mim. Alguns ficam em cima do muro, que é a posição mais
confortável.”
O antropólogo Paulo Maia, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e
ex-orientando de Viveiros de Castro, afirma que o antigo professor tende a
assumir posições pouco diplomáticas. “Ele não quer encontrar um meio-termo: quer
marcar posições”, disse Maia. “O Eduardo não busca o consenso e não gosta de
pessoas que têm um caráter mais subalterno, boazinhas. Ele gosta de gente mais
intempestiva mesmo. Na própria escrita dele, dá para ver isso. É um estilo que
não é muito diferente do modo como ele fala. O que para muitos alunos é
encantador. A escrita dele é cativante.”
Em 1997, a tensão entre colegas no Museu
Nacional se tornou mais aguda. A instituição abriu concurso para professor
titular, o posto mais alto da carreira universitária. Quase duas décadas depois
da primeira disputa entre os dois, Viveiros de Castro e João Pacheco de Oliveira
tinham novamente a intenção de se candidatar à mesma posição. Outros integrantes
do departamento se mobilizaram para evitar o embate. “Houve uma pressão muito
forte, dentro da instituição, para que só se apresentasse um candidato”, disse
Viveiros de Castro. “Partindo daquele éthos característico da academia,
em que você prefere arranjar as coisas para evitar situações delicadas.
Entenda-se: para que não entre a pessoa que você não quer.”
A solução encontrada, segundo professores do Museu, foi a realização de um
sorteio prévio: quem ganhasse se apresentaria como candidato, e o derrotado
desistiria da disputa. Viveiros de Castro perdeu.
Naquele mesmo ano, o antropólogo viajou para a Inglaterra, convidado para uma
temporada de um ano na Universidade de Cambridge. Lá, conheceu Marilyn
Strathern, professora titular de antropologia social na instituição, talvez o
cargo de maior prestígio da disciplina. Ela ainda não conhecia o trabalho do
colega brasileiro, que fez quatro conferências sobre o perspectivismo ameríndio.
Strathern disse ter ficado impressionada com o argumento, exposto com “erudição
e autoconfiança” – o mesmo atrevimento que lhe causava problemas em casa
ajudava-o a conquistar audiências estrangeiras. A ideia exposta por Viveiros de
Castro pareceu à professora “profundamente imaginativa e bastante precisa”.
O texto sobre o perspectivismo foi lançado em inglês em 1998. “Foram essas
conferências de Cambridge e a publicação em inglês que alçaram o tema a uma
posição de destaque no campo antropológico”, observou Viveiros de Castro.
Segundo Strathern, as ideias do brasileiro fazem, hoje, parte do cânone
apresentado aos estudantes de pós-graduação da disciplina no Reino Unido.
O caráter conflituoso de Viveiros de Castro
se manifesta nas redes sociais. O antropólogo tem mantido, nos últimos anos,
intensa atividade política no Twitter e no Facebook. Seus curtos enunciados são
às vezes enigmáticos, com frequência irônicos, quase sempre militantes. Em
outubro, quando manifestantes subiram no Monumento às Bandeiras, em São Paulo, e
cobriram de tinta as estátuas de Brecheret que celebram a conquista do Oeste
pelos paulistas, com consequências trágicas para os índios, ele ofereceu seu
veredicto: “É preciso derrubar essa porcaria.”
Boa parte das frases e dos pequenos textos que publicou no Twitter e no
Facebook, desde junho, manifestava entusiasmo pelas manifestações de rua, das
quais ele evitou participar, por medo de aglomerações. Seus posts revelavam
também o que ele chamou de “simpatia” em relação à ação dos black
blocs. “É espantoso como a esquerda tradicional está histérica com os
black blocs”, ele me disse. “Está histérica porque não controla, porque
não é partido. Não é militante de partido. Os black blocs nem existem
como movimento. É uma tática.”
“Devo dizer que fiquei muito feliz de ver os manifestantes subirem na
parte de cima do Caveirão. Gostaria que eles tivessem virado o Caveirão de
cabeça para baixo. Se tivessem feito isso, acharia legal! E será que destruir a
porta de um banco é uma coisa assim tão abominável? Em que será que se está
tocando quando se quebra a porta de um banco? Por que deixa todo mundo tão
nervoso?”
Já havia manifestado ideia semelhante no Facebook. “Quebrou uma vitrine do
Banco Itaú, é vândalo, apanha da polícia e vai pro presídio; desapareceu com
bilhões do BNDES, é empresário em dificuldades, vai para recuperação judicial”,
publicou, no início de novembro. Estendeu-se um pouco mais noutro comentário: “O
que o Estado faz, e deixa fazer, com os índios é um resumo altamente concentrado
e potencializado do que ele faz, e deixa que façam, com toda a população. Os que
dizem que não se pode mesmo dar mole para esses selvagens, que é preciso logo
civilizá-los etc., são como o servo que se acha senhor porque o servo do lado
levou mais chicotadas no lombo do que ele.”
Em seu apartamento, ao lado da mulher, o antropólogo explicou sua conversão
recente às redes sociais, resultado de uma briga com a imprensa
mainstream. Há pouco mais de três anos, a revista
Veja publicou uma reportagem intitulada “A farra da antropologia
oportunista”.
Criticava a multiplicação de povos indígenas no país, interessados
nas terras que sua nova condição lhes daria direito. “Em 2000, o Ceará contava
com seis povos indígenas”, o texto registrava. “Hoje, tem doze. Na Bahia,
catorze populações reivindicam reservas. Na Amazônia, quarenta grupos de
ribeirinhos de repente se descobriram índios.”
Citavam então Viveiros de Castro, atribuindo a ele uma opinião crítica aos
“índios ressurgidos”: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um
deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena
original.” A primeira frase havia sido retirada de um texto publicado pelo
antropólogo, intitulado “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”.
A
segunda, ele nunca disse ou escreveu. “Colocaram entre aspas uma frase que
tiraram de um artigo meu, e acrescentaram a ela outra, que eles inventaram.” Ao
inventarem, puseram em sua boca ideias opostas às que ele defende. Nas últimas
décadas, argumentou o antropólogo, tem acontecido no Brasil algo inverso ao
problema que ocupava os fundadores da sociologia do contato. Em vez de os índios
se tornarem, aos poucos, brasileiros, são os brasileiros que estão virando
índios. E não é necessário um “ambiente de cultura indígena original” para que
um grupo advogue essa condição.
“Várias populações tradicionais estão se redescobrindo indígenas. Isso
acontece porque eram índios.
Foram obrigadas a esquecer que eram, forçadas a
aprender português. Houve um processo de branqueamento que nunca se completou. E
não se completar fazia parte do processo: o cara deixava de ser índio, mas você
não o deixava virar branco. Parava no meio. Virava um brasileiro. O que é um
brasileiro? É um índio pra quem você diz: ‘Você vai ser branco, você deixará de
ser índio’, mas o cara para no meio. Você é quase branco. O cara perde a sua
condição indígena, mas não ganha do outro lado.”
Foi para divulgar sua indignação com a revista, disse o antropólogo, que ele
passou a usar as redes sociais. Primeiro o Twitter, no qual tem hoje cerca de 4
600 seguidores. Depois o Facebook, onde conta com mil amigos e quase 5 mil
seguidores.
Um dos temas caros a Viveiros de Castro e a
Déborah Danowski, tratado com frequência por ele em sua militância na internet,
é o que chamam de “catástrofe” ambiental. Em outubro, no dia do primeiro leilão
do pré-sal, o antropólogo escreveu: “Não faça parte das minorias com projetos
ideológicos irreais: colabore para a destruição do planeta. Deus proverá. Viva
Libra, viva a Shell, viva a Total, viva a China, viva o Brasil.” Em meados de
novembro, um outro post conclamava: “Liberar a Terra das cadeias
produtivas.”
Desde os anos 80, o antropólogo milita contra a construção de hidrelétricas
na Amazônia. Foi um dos fundadores do ISA, o Instituto Socioambiental, uma das
principais ONGs de defesa do meio ambiente e dos povos indígenas no país. Na
sala de sua casa, no Rio, o casal citou estimativas de aquecimento global feitas
pelo IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU. Um
aumento de temperatura que não é improvável neste século, disseram, pode pôr em
risco a maior floresta do planeta.
“A parte oriental da Amazônia é mais seca do
que a ocidental”, afirmou o antropólogo. “Essa parte mais seca, em alguns
lugares, está começando a perder mais água do que recebe. Aquilo está secando.
Um processo de ressecamento progressivo, discreto talvez, no sentido de que não
é uma coisa catastrófica. Mas acontece que, se essa floresta passa de
determinado ponto crítico de ressecamento, uma hora pega fogo e ninguém mais
apaga.”
Os dois lembraram ainda a impossibilidade de o planeta comportar, para toda a
sua população, o atual padrão de produção e consumo ocidental. “O que vai
acontecer, provavelmente, é a falência degenerativa, muito mais do que
apocalíptica, do atual sistema técnico-econômico mundial, que não vai se
sustentar”, disse Viveiros de Castro. “Temos que nos preparar para um mundo
radicalmente diferente deste em que vivemos. Temos que pensar num mundo fora do
milênio, fora da ideia de que um dia vamos dar tudo para todos, seja no
capitalismo ‘sustentável’, dois ponto zero, seja no socialismo.
A ideia de
que vamos finalmente chegar a um estágio de plenitude, de abundância e de
equilíbrio. Nós não vamos. Minha impressão é de que estamos numa curva
descendente do ponto de vista da civilização, talvez da espécie, e que a gente
tem que se preparar para o declínio.”
Argumentei que há quem conte com inovações tecnológicas, como já aconteceu no
passado, para mover a fronteira dos limites planetários. “Eu acho que isso é
religião”, respondeu o antropólogo. “Essa coisa de que vamos sair dessa é
teologia. É achar que o homem sempre pode dar um jeito, pela sua capacidade, de
transcender as condições naturais. Isso para mim é cristianismo laicizado.”
O que fazer? “Oposição ao governo, dono de um projeto ecocida”, respondeu. O
antropólogo votou em Marina Silva, em 2010, mas disse ter dúvidas se repetirá o
apoio em 2014, caso ela venha a concorrer. “Não morro de paixão pelas alianças
que ela fez nem por sua base de consulta intelectual”, composta por economistas
liberais. “Mas nada, nem o Serra, vai me fazer votar na Dilma. Não adianta virem
com o Serra pra cima de mim. ‘Olha o Serra!’ Não há Cristo, nem Diabo, que me
faça votar na Dilma.”
A política partidária, de toda forma, parece pouco relevante em seu discurso,
fatalista. “Pode ser que nós, ocidentais de classe média, o francês, o
brasileiro rico de São Paulo, o americano, pode ser que passemos pela mesma
coisa por que passaram os índios em 1500. Eles continuam aí, mas o mundo deles
acabou em 1500. Se formos falar do fim do mundo, pergunte aos índios como é,
porque eles sabem. Eles viveram isso. A América acabou. Pode ser que venhamos
todos a ser índios, nesse sentido. Todos venhamos a passar por essa experiência
de ter um mundo desabando. No caso deles, eles foram invadidos por nós. Nós
também vamos ser invadidos por nós. Já estamos sendo invadidos por nós mesmos.
Vamos acabar com nós mesmos da mesma maneira como acabamos com os índios: com
essa concepção de que é preciso crescer mais, produzir mais.”
No seu apartamento, já de noite, Viveiros de Castro se disse pessimista. “Mas
esse pessimismo não é paralisante. Não é um quietismo. A sensação que eu tenho é
de que a gente está lutando dentro de casa. Quarteirão a quarteirão. Como essas
guerrilhas.” Deu um exemplo de resistência. “Dizem que os índios já foram
incorporados ao capitalismo. Mas não foram dominados mentalmente. Já foram
dominados economicamente, politicamente, mas não mentalmente. O problema com os
índios é que eles são insubordinados. Você não consegue domesticar o índio. É
por isso que o governo tem tanto horror deles.”
“É isso que significa o brasileiro virar índio”, disse, alargando o sentido
da frase. “Numa versão ‘Twitter’, para encurtar a conversa, é isso. É virar
black bloc. Menos pelego, e mais black bloc.”
Em 2008, Marilyn Strathern se aposentou do
cargo de professora titular de antropologia social, em Cambridge. Mais de um ano
antes, tinha dado início ao processo de escolha de seu sucessor. Ela sugeriu ao
etnólogo carioca que apresentasse sua candidatura ao posto.
Viveiros de Castro disse que foi só por causa da insistência da amiga que
concordou em concorrer. “Relutei e tergiversei, pois não tinha a intenção de
aceitar”, diria mais tarde. Além de razões práticas – como o trabalho de sua
mulher no Rio –, afirmou que “sabia do tamanho do abacaxi que era ser o cabeça
da antropologia social” na universidade inglesa. Disse não ter vontade de se
dedicar à administração acadêmica, o que certamente seria exigido pela
posição.
De toda forma, no final de 2007, estava entre os três finalistas. Viajou à
Inglaterra para apresentar uma aula na universidade, parte do processo de
seleção. Na sala em que falou, numa noite fria do outono inglês, alunos e
professores se apertavam, muitos sentados no chão, outros espremidos nos cantos,
junto às paredes.
Foi só quatro anos depois de concorrer à vaga na Inglaterra que Viveiros de
Castro pôde afinal se candidatar, em 2011, ao posto de professor titular do
Museu Nacional. O memorial que escreveu para o pleito foi redigido “num tom
quase insolente” de propósito, ele disse. Ali ele afirma que sua produção
intelectual “exerceu uma influência teórica muito significativa” na
antropologia, “talvez a influência mais significativa exercida até o presente
pelo trabalho de um antropólogo brasileiro”. No mesmo texto, voltou ao assunto
do cargo em Cambridge, revelando seu desfecho. “Fizeram-me saber (ou deixaram-me
saber, como se diz) que eu tinha todas as chances de ser o escolhido. Escrevi
rapidamente ao departamento e a Marilyn recusando o posto, just in
case. Eu realmente queria continuar sendo um jardineiro em Petrópolis.”
Considerava já ter alcançado, então, o objetivo de se fazer ouvir ao norte do
Equador. No memorial, um balanço de mais de três décadas de atividade
intelectual, Viveiros de Castro afirmou ter tido, desde o início de sua
carreira, o propósito explícito de “rebater para a matriz nossas lucubrações
periféricas” e de “meter a colher na sopa metropolitana”.
“Cuido que consegui”, ele conclui, sem modéstia.
07 de janeiro de 2014
RAFAEL CARIELLO