Arqueólogos não conseguem entrar em acordo sobre a ocupação da
América
O arqueólogo francês Antoine Lourdeau escavava um sítio na Serra da Capivara,
no sul do Piauí, quando se deparou com um seixo grande. Só conseguia ver uma
face da pedra. Tinha tamanho e formato ideais para ser empunhada pela mão de um
adulto. Suspeitou que tivesse sido transformada para ser usada como ferramenta,
talvez para produzir um gume. Pegou um pincel e uma colher de pedreiro para
desenterrar o objeto delicadamente. Pouco a pouco, revelou o outro lado do seixo
onde, de fato, havia várias lascas retiradas. Lourdeau não teve dúvida. “Era um
instrumento maravilhoso, um trabalho muito fino”, contou. “Ganhei o dia.”
No inverno passado, o arqueólogo desenterrou centenas de pedras lascadas que lhe pareceram ferramentas usadas por homens pré-históricos que habitaram a região milhares de anos atrás. Deviam servir para cortar, raspar, cavar, trabalhar o couro ou a madeira. Muitos seixos tinham pedaços removidos em apenas uma face. Como os artefatos aproveitam parte da forma natural da pedra, nem sempre sua aparência é a que se espera de uma ferramenta. Para o arqueólogo, a identificação não é problemática. “Quando você vê uma peça dessas não tem dúvida nenhuma”, disse Lourdeau.
Num restaurante próximo à praia de Boa Viagem, no Recife, o francês explicou que a fratura da pedra lascada pelo homem segue sempre o mesmo princípio físico. “A natureza quebra blocos, já o homem tem um objetivo em vista quando faz um lascamento. Quando você vê a sequência das retiradas, é fácil saber se respondem a um objetivo definido. Se houver uma lógica de retiradas, pode descartar a questão natural.”
Lourdeau é um homem magro de cabelos compridos que aparenta ter menos que seus 31 anos. Estudou na Universidade Paris X e se especializou no estudo das pedras lascadas na pré-história do Brasil. Foi treinado pelo francês Eric Boëda, especialista na matéria. Dez dias depois de defender sua tese de doutorado, prestava concurso para a Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE. Passou e em 2011 se fixou ali perto, no bairro de Boa Viagem. Lourdeau vem participando das escavações promovidas por uma missão arqueológica franco-brasileira, sob o comando de Boëda. O grupo está dando continuidade aos trabalhos conduzidos pela brasileira Niède Guidon na Serra da Capivara desde os anos 70.
Lourdeau conduziu as escavações do sítio da Toca da Tira Peia, uma área escavada de 25 metros quadrados e 2,5 metros de profundidade. A densidade de achados arqueológicos não foi grande: entre 2008 a 2011, saíram dali apenas 113 peças interpretadas como artefatos indiscutíveis. Os resultados começaram a ser publicados no ano passado no Journal of Archaeological Science, revista americana mais prestigiosa da área. O trabalho concluiu que alguns artefatos encontrados têm pelo menos 22 mil anos. Se o resultado for aceito pela comunidade de arqueólogos, será o mais antigo indício da presença humana no continente americano.
Somos todos forasteiros na América. Com exceção da Antártida, que permanece em grande medida uma terra inabitada, o continente americano foi o último a ser ocupado pelo Homo sapiens desde o surgimento da espécie na África, entre 200 mil e 150 mil anos atrás. Vestígios deixados pelos humanos antigos permitem rastrear seus movimentos à medida que se espalharam pelo Oriente Médio, e dali para a Europa e o sudeste da Ásia, de onde ganharam tanto a Oceania quanto a Sibéria e as Américas.
No momento em que os primeiros humanos conquistavam o mundo, o planeta atravessava um longo período glacial, durante o qual as temperaturas caíram e as geleiras avançaram nas regiões mais frias. O nível do mar estava mais de 100 metros abaixo do atual, o que fez surgir ilhas e mudou o contorno dos continentes. Não existia então o Estreito de Bering, a faixa de 90 quilômetros de mar que hoje separa o Alasca da Sibéria. A Eurásia e as Américas formavam então uma extensão contínua de terra. Um caçador-coletor pré-histórico longevo e bem-disposto que errasse pela Península Ibérica no final da última Era do Gelo poderia, se lhe conviesse, ir a pé até a Terra do Fogo.
Os cientistas estimam que a Beríngia, como foi chamada essa ponte terrestre entre América e Ásia, ficou emersa de 27 mil a 10 mil anos atrás. A maioria deles acredita que foi por ali que chegaram os primeiros americanos. Recentemente, a hipótese foi reforçada por estudos genéticos do DNA preservado em fósseis humanos. Essas pesquisas mostram parentesco entre as populações americanas nativas e os povos asiáticos. Pesquisadores que propõem outros modelos de povoamento – pelo Atlântico ou pelo Pacífico – geralmente são desacreditados pela comunidade. A hipótese mais aceita até alguns anos propunha que os primeiros grupos chegaram à América por volta de 15 mil anos atrás – o que é incompatível com humanos lascando pedra no Piauí há 22 mil anos.
A primeira autora do artigo publicado no Journal of Archaeological Science é a francesa Christelle Lahaye, uma física de 35 anos e cabelos curtos que se especializou na datação de sítios arqueológicos. O método mais comumente usado pelos pesquisadores é a datação por carbono-14, que determina a idade de uma amostra calculando a quantidade desse tipo de átomo nela contida. No entanto, o carbono-14 só se aplica a material orgânico, como restos de lenha queimada, couro ou ossos fossilizados com colágeno preservado. Nada disso foi encontrado na Toca da Tira Peia.
O grupo recorreu então à datação por luminescência, especialidade de Lahaye na Universidade de Bordeaux 3. A técnica permite determinar a data da última exposição de um determinado material à luz – posto de outra forma, a época em que ele submergiu na terra. Lahaye explicou que as datações por carbono-14 têm menor margem de erro, mas nem sempre podem ser feitas, além de só serem confiáveis para materiais de até 50 mil anos. “A luminescência permite chegar a eventos que não seriam datáveis por outros métodos”, disse. “Mas nos casos de controvérsia, é importante combinar os dois métodos.”
Lahaye foi ao Piauí comandar a coleta das amostras e entender o contexto em que foram retiradas. Colhe-se material com uma espécie de tubo de PVC enfiado na parede da escavação; só será datado o que estiver no interior do tubo, ao abrigo da luz. A análise determina a idade não dos artefatos propriamente ditos, mas das camadas de sedimentos em que eles estavam enterrados.
Não foram as datações, no entanto, que motivaram as críticas que o trabalho recebeu assim que foi publicado. Quando noticiou a publicação do artigo, a revista Science News deu voz a dois arqueólogos descrentes dos resultados. Um deles disse que as pedras lascadas poderiam ser fruto da queda natural dos seixos. O norte-americano Stuart Fiedel propôs outra possibilidade: macacos-prego ou outros primatas poderiam ter produzido as ferramentas.
No começo do século passado, uma violenta tempestade de verão provocou uma enchente na cidade de Folsom, no Novo México, sudoeste dos Estados Unidos. Ao revolver o solo, a chuva trouxe à superfície ossos de uma espécie extinta de bisão gigante, um dos grandes mamíferos abundantes nas Américas do Sul e do Norte até o fim da última glaciação. Em 1927, durante a escavação do local, surgiram duas costelas do animal ao lado de uma ponta de projétil de fina fabricação, tendo, na base, uma canaleta para possível encaixe numa lança.
O ferreiro que conduzia a escavação interrompeu o trabalho e telegrafou para arqueólogos de vários centros de pesquisa. Os especialistas, chegados dali a alguns dias, deram seu veredicto: o arranjo era um sinal inequívoco de que o bisão havia sido morto por caçadores. Aquele era o primeiro indício confiável de que havia humanos no continente americano em plena Era do Gelo.
Poucos anos depois, pontas de lança ainda maiores que as de Folsom, embora de manufatura menos sofisticada, apareceram na cidade de Clóvis, também no Novo México, desta vez junto a ossos de mamutes. Pontas de projéteis como aquelas começaram a ser encontradas em contexto parecido noutros sítios nos Estados Unidos. Aparentemente, as planícies centrais da América do Norte tinham sido ocupadas por grupos que caçavam animais de grande porte. Passaram a ser conhecidos como o povo de Clóvis.
Nos casos em que artefatos aparecem associados inequivocamente com fósseis, como as pontas de Folsom e Clóvis, sua idade pode ser determinada com a datação do material orgânico por carbono-14. Só em 1964, depois do estabelecimento do método, foi possível determinar com precisão a idade daquelas pontas: eram de 13 mil e 13 500 anos atrás.[1]
Os cientistas acreditavam que, pouco antes disso, um grande corredor havia sido oportunamente aberto em meio às imensas geleiras que tomavam conta do território onde hoje está o Canadá. Aquela tinha sido a grande avenida pela qual os grupos de caçadores-coletores vindos da Ásia adentraram o continente, quem sabe no encalço de grandes mamíferos. Pelo jeito tinham sido eles os primeiros americanos, e esse modelo de ocupação foi chamado de “Clovis First”.
Desenterradas em centenas de localidades, as pontas de Clóvis viraram objeto de admiração nos Estados Unidos, onde movimentam um mundo paralelo de revistas, excursões, mostras e oficinas de pedra lascada. As peças mais raras podem ser negociadas por dezenas de milhares de dólares. Elas se tornaram um mito fundador da cultura da inovação: a tecnologia das pontas de Clóvis teria sido a primeira invenção americana, propôs o arqueólogo David Meltzer no livro First Peoples in a New World, sem tradução para o português.
Havia, contudo, um problema a ser enfrentado pelos defensores desse modelo de ocupação da América. As pontas de Clóvis foram encontradas num intervalo restrito no tempo e no espaço – o Panamá é o ponto mais ao sul em que apareceram. No entanto, em todo o resto do continente, até a Terra do Fogo, há indícios de presença humana quase contemporâneos à cultura Clóvis. Se esse povo chegou mesmo primeiro, foi bem ligeiro para se espalhar pelo território.
Além disso, as ferramentas usadas pelos povos do sul pouco se pareciam com as da cultura do norte. O modelo não explicava tal diversidade tecnológica, nem a idade de sítios encontrados abaixo do Equador, mas isso não impediu que a teoria de Clóvis prosperasse.
A incredulidade com que alguns arqueólogos reagiram aos achados dos pesquisadores franco-brasileiros no Piauí ecoava uma forte resistência a resultados de escavações anteriores feitas na região. As supostas ferramentas de 22 mil anos da Toca da Tira Peia não eram os primeiros artefatos anteriores a Clóvis que apareciam na Serra da Capivara – nem os mais antigos.
O pivô da controvérsia é a arqueóloga paulista Niède Guidon, uma mulher de pouco mais de 1,50 metro e jeito de poucos amigos. Nascida em Jaú de pai francês e mãe brasileira, ela estudou história natural na Universidade de São Paulo e pré-história na Sorbonne, onde foi aluna de André Leroi-Gourhan e Annette Laming-Emperaire, figuras de proa da arqueologia francesa. Niède fará 81 anos em março. Está estabelecida desde os anos 90 em São Raimundo Nonato, cidade a 505 quilômetros de Teresina. Ela dirige ali a Fundação Museu do Homem Americano, responsável pela gestão do Parque Nacional Serra da Capivara. Mora numa casa construída junto à sede da fundação e trabalha numa varanda climatizada com paredes de vidro.
Numa entrevista em sua casa, Niède contou que soube da existência de um tesouro arqueológico no Piauí quando, em 1963, organizou uma exposição sobre pinturas rupestres no Museu Paulista, onde trabalhava. Foi abordada na ocasião por um visitante que queria falar com o responsável pela mostra. “Ele disse que perto da sua terra também havia umas pinturas de índios e me mostrou umas fotos”, disse a arqueóloga. “Vi que era algo completamente diferente.”
Demorou alguns anos até que Niède pudesse finalmente visitar as pinturas rupestres do Piauí. Nesse ínterim veio o golpe militar e ela decidiu partir para a França. Tornou-se pesquisadora do CNRS, o centro nacional de pesquisa da França, e mais tarde da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. De passagem pelo Brasil numa viagem de campo, deu um jeito de visitar o Piauí, fotografou alguns sítios com pinturas e, com isso, conseguiu financiamento para estudar o local, a partir de 1973.
As pinturas pré-históricas são abundantes nos paredões de arenito da Serra da Capivara. Passa de mil o número de sítios com arte rupestre identificados na região. Diferentemente da arte pré-histórica europeia, praticada em cavernas como Altamira, na Espanha, ou Lascaux, na França, as pinturas do Piauí estão expostas ao ar livre. Representam tatus, emas, macacos, lagartos, mas também uma infinidade de figuras humanas, raras na arte rupestre da Europa. Há pessoas caçando, brincando, dançando, lutando, parindo, transando.
Como os pigmentos usados na arte rupestre do Piauí não eram feitos com material orgânico, não podem ter sua idade diretamente determinada. Datações indiretas de lascas de pintura encontradas em sítios arqueológicos indicam que elas se tornaram abundantes por volta de 10 mil anos atrás, mas podem ter surgido bem antes disso – algumas foram datadas na casa dos 20 mil anos. A arte rupestre de Chauvet, a mais antiga de que se tem notícia, tem cerca de 30 mil anos de idade.
Em 1978, Niède Guidon convenceu o governo francês a criar uma missão arqueológica para o estudo da pré-história do Piauí. A França promove, desde os tempos de Napoleão, escavações arqueológicas em vários cantos do globo. Missões em dezenas de países são financiadas pelo Ministério das Relações Exteriores, que enxerga na arqueologia um instrumento da sua “diplomacia científica”.
Foi na primeira investida da missão que a pesquisadora descobriu o maior – e mais controverso – sítio arqueológico da Serra da Capivara: a Toca do Boqueirão da Pedra Furada, no sopé de um grande paredão de arenito de 70 metros de extensão, com quase 70 metros de altura, inclinado de forma a oferecer abrigo a quem estiver em sua base.
O paredão está coberto de pinturas rupestres de fora a fora – mais de mil figuras individuais foram catalogadas. Eram um bom indício de que o lugar havia sido muito visitado por grupos humanos no passado. Quando as escavações tiveram início, Niède encontrou pedras que aparentavam ter sido lascadas por humanos e carvões que pareciam provenientes de fogueiras intencionais. “Eram fogueiras estruturadas, eles colocavam pedras e dentro delas faziam o fogo”, descreveu.
No fim de uma temporada de escavação, Niède mandou carvões para que fossem datados por um laboratório francês. Não acreditou quando recebeu os resultados pelo correio: a amostra tinha 26 mil anos. Ligou imediatamente para a França com a intenção de passar um pito na pesquisadora responsável: “Vocês misturaram minhas amostras. Na América não tem nada dessa idade!” Do outro lado da linha, veio a resposta: “Pois retorne e amplie sua escavação, porque é carvão seu.” Niède voltou a campo e constatou que a colega tinha razão. O mundo ficou conhecendo o Boqueirão da Pedra Furada em 1986, por um artigo da revista Nature em que se sustentava que os humanos já estavam no Piauí há 32 mil anos.
Da passarela de madeira instalada para os turistas que vêm conhecer as pinturas rupestres, é possível ver o imenso volume escavado pelos pesquisadores no Boqueirão da Pedra Furada. Pelas contas de Niède, “são 60 metros por uns 15 de largura e 8 de profundidade”. O sítio foi escavado por dez anos, de 1978 a 1987. No final, o trabalho foi conduzido pelo italiano Fabio Parenti, aluno de doutorado de Niède na Sorbonne.
O objetivo de Parenti era provar que os artefatos não podiam ter sido produzidos pela ação da natureza. Seixos de quartzo – a matéria-prima das ferramentas – ocorrem naturalmente no topo da falésia que domina o boqueirão. Para os críticos, os gumes que lhes conferiam aspecto de artefatos não passavam de efeito fortuito produzido pela queda. Para descartar essa hipótese, o italiano fez uma análise de 2 mil seixos coletados na base da encosta e constatou que tinham um padrão diferente daquele verificado no material escavado no sítio arqueológico. Para ele, estes eram artefatos indiscutíveis.
Ao final das escavações, Parenti havia catalogado quase 600 objetos que teriam sido criados pela ação humana em épocas anteriores à cultura Clóvis. A sequência de datações do sítio, feita com restos de carvão, vai até o limite que pode ser medido por carbono-14, cerca de 50 mil anos atrás. Outras datações, além do horizonte possível de testar com esse método, fizeram Niède defender uma ocupação ainda mais antiga.
Caso os cientistas trabalhando no Piauí estivessem certos, havia humanos no Nordeste do Brasil dezenas de milhares de anos antes de os caçadores de grandes mamíferos se espalharem pela América do Norte. Nesse caso, a data de chegada dos primeiros americanos defendida pelo consenso da ciência arqueológica sofreria um profundo revés, e um modelo radicalmente diferente de povoamento das Américas teria que ser formulado. Niède sustenta a hipótese de uma ocupação vinda da África, pelo Atlântico Sul, aproveitando o mar mais baixo e uma corrente favorável. “Eles chegaram na altura do delta do Parnaíba”, afirmou. Por enquanto, poucos colegas dão crédito à hipótese.
Se a tese dos 50 mil anos é contestada por quase toda a comunidade arqueológica, o mesmo não é verdade para correntes que defendem uma presença humana nas Américas anterior a Clóvis. Evidências disso vinham surgindo desde o século XIX, mas sua frequência aumentou nos anos 1970.
No final daquela década, o norte-americano Tom Dillehay era professor da Universidade Austral de Chile, em Valdivia, quando chegaram às suas mãos um osso de mastodonte, artefatos de pedra e outros objetos. O material havia sido achado por lenhadores nas imediações de um riacho na região de Monte Verde, no sul do Chile, a 800 quilômetros de Santiago.
Quando iniciou as escavações no local, Dillehay se deparou com um sítio arqueológico com uma gama impressionante de restos preservados. Havia artefatos de madeira, pedra, osso e marfim, restos orgânicos de frutas, raízes, sementes e algas marinhas, tufos de pelo, fezes fossilizadas e três pegadas com 13 centímetros de comprimento. Uma camada de turfa – matéria vegetal parcialmente decomposta – formada sobre o depósito isolou o material orgânico do oxigênio e poupou-o da degradação por bactérias.
Tamanha diversidade de materiais parecia ter sido reunida pela ação humana. Algumas das espécies vegetais encontradas só ocorriam a dezenas de quilômetros dali. Muitas das plantas identificadas ainda são usadas por índios locais como alimento ou remédio. Na interpretação de Dillehay, o lugar era provavelmente um acampamento de povos pré-históricos abandonado às pressas devido a uma enchente.
A datação por carbono-14 mostrou que o material tinha em torno de 14 600 anos de idade.
Como não eram compatíveis com o modelo de Clóvis, os resultados do estudo, sintetizados num volume publicado em 1989, foram recebidos com ceticismo. Foi preciso aguardar quase uma década até que eles fossem aceitos de forma mais ampla pela comunidade.
O convencimento só veio em 1997, depois que o sítio foi inspecionado in loco – como nos tempos de Folsom – por uma comissão de doze arqueólogos que incluía antigos críticos do trabalho de Dillehay.
Todos concordaram que o material atestava de forma inequívoca a presença humana em Monte Verde mais de 14 mil anos atrás. Quando noticiou o consenso inédito, anunciado numa coletiva para a imprensa, o New York Times afirmou que era uma experiência libertadora para a arqueologia, similar à quebra da barreira do som para a aviação.
Para um achado arqueológico ser aceito sem controvérsia, alguns pré-requisitos precisam ser preenchidos. É necessário ter sido achado num sítio com boas condições de preservação, sem sinais de perturbação causada pela ação humana ou processos naturais. Deve também ter uma datação confiável, que mostre a sucessão de camadas superpostas, da mais recente à mais antiga. Nada disso era muito problemático no Boqueirão da Pedra Furada. Os resultados não passaram, porém, num terceiro teste essencial para sua aceitação: os vestígios precisam ter sido indiscutivelmente produzidos pela ação humana. As ferramentas do Piauí estavam longe de ser aceitas como tal pelos pares de Niède Guidon e Fabio Parenti.
Alegações extraordinárias requerem provas extraordinárias, reza um dito popular entre os cientistas. Por isso, arqueólogos que afirmavam ter indícios da presença humana nas Américas muito antiga sempre foram sistematicamente desacreditados.
Numa reportagem de 1990, a revista Science chamou de “polícia de Clóvis” os pesquisadores que defendiam o status quo sobre o povoamento do continente e refutavam em bloco os resultados que o contestassem.
No caso das disciplinas experimentais, um pesquisador que duvidar da alegação de um colega terá sempre a possibilidade de refazer o experimento em seu laboratório. Na arqueologia, porém, a replicação dos resultados é uma impossibilidade. As tabelas, fotos e desenhos dos artigos científicos nem sempre bastam para convencer os mais céticos, e em alguns casos a aceitação só vem depois que os colegas visitam o sítio contestado. Se eminentes arqueólogos não tivessem visto com os próprios olhos a ponta de lança encontrada entre as costelas do bisão em Folsom, talvez o achado fosse recebido com o mesmo ceticismo que agora se abatia sobre os defensores do novo modelo de ocupação do continente.
Foi com esse espírito que Niède Guidon organizou em 1993 um simpósio sobre o povoamento das Américas em São Raimundo Nonato e convidou colegas norte-americanos para conhecerem o Boqueirão da Pedra Furada. Dentre aqueles que aceitaram o convite estavam Tom Dillehay, David Meltzer e James Adovasio. Este último também tinha explorado um sítio pré-Clóvis – Meadowcroft, no nordeste dos Estados Unidos, com vestígios humanos de até 20 mil anos –, contestado por colegas.
A visita ao sítio e o exame dos artefatos não bastou para convencê-los. A inspeção foi relatada num artigo publicado na revista Antiquity, no qual duvidaram da origem antrópica dos carvões e afirmaram que não podiam aceitar a alegação de que os seixos lascados da Pedra Furada fossem artefatos.
Fabio Parenti assumiu um tom desgostoso quando comentou a visita numa conversa recente. Ele se decepcionou com o juízo ligeiro que colegas tarimbados emitiram sobre um trabalho de anos. “Eles foram superficiais”, disse, falando de Roma pelo Skype. “Não se pode julgar uma situação tão complicada com quatro ou cinco horas de observação.”
Niède Guidon, por sua vez, publicou na época uma réplica ao artigo de Meltzer, Adovasio e Dillehay, na qual taxou as críticas de falsas ou levianas. Mas nunca perdeu o sono por causa da reprovação dos colegas norte-americanos. Ela costuma dizer que sua prioridade não era desvendar quando o continente foi ocupado. “Vim ao Piauí por causa das pinturas rupestres. Não estava atrás do que é mais antigo.”
Quem procurá-la para se inteirar da história do povoamento das Américas concluirá que não há controvérsia; há apenas pesquisadores que teimam em não aceitar as evidências. Na sua leitura, mais do que um debate de interpretações, o que está em jogo é um choque entre a escola francesa de arqueologia, mais aberta a novas ideias, e a americana, incapaz de largar o osso de Clóvis – um modelo teórico que, para ela, sequer deveria ter sido levado a sério. Mais do que convencer os colegas do norte, a arqueóloga paulista está preocupada em consolidar o legado que vem construindo no sertão do Piauí nas últimas décadas.
Desde que se aposentou, Niède não é mais a coordenadora da missão arqueológica franco-brasileira no Piauí. Para assumir a condução dos trabalhos, ela convidou Eric Boëda, pesquisador do CNRS e professor da Universidade Paris X. Boëda organizou e escreveu livros sobre pedras lascadas. O último deles, lançado em setembro, é um tratado sobre a tecnologia dos objetos líticos cortantes na pré-história.
Boëda já dirigiu escavações na Europa, África e Ásia. Trabalhou na Síria por mais de vinte anos. No sítio de Umm el Tlel, numa estepe nas imediações do Eufrates, sua equipe fez uma escavação de 22 metros de profundidade, testemunha de mais de 1 milhão de anos de atividades do Homo sapiens e de seus ancestrais.
Nas escavações de que toma parte na China, desde 1997, investiga as ferramentas usadas pelos primeiros humanos que povoaram o leste da Ásia. Notou que as matérias-primas e soluções técnicas eram muito diferentes das adotadas na África na mesma época.
Assim que foi apresentado às pedras lascadas do Piauí, o francês percebeu que não tinham qualquer semelhança com aquelas encontradas no resto das Américas. Por outro lado, guardavam parentesco com o tipo de tecnologia que ele tinha visto no leste da Ásia. Para ele, só quem desconhece as ferramentas de outros cantos do globo é capaz de contestar o caráter antrópico dos seixos lascados da Serra da Capivara. “Se as pedras que eu tinha na China eram humanas, não podia dizer que as do Piauí não eram.”
Aos 59 anos, Boëda é um homem baixo de longos cabelos pretos anelados e barba branca cheia. Falando de Paris pelo Skype, ele disse que, assim como no Piauí, as ferramentas encontradas na China eram feitas de seixos apenas parcialmente trabalhados. A produção do artefato começava já na seleção. “Você escolhe o seixo que tem a forma, o volume e a superfície ideais para fazer sua ferramenta, e depois talha apenas a parte que será a zona ativa”, explicou. “É como fazer uma escultura num bloco onde já houvesse a cabeça e as orelhas: seria preciso esculpir só o rosto.” Na pré-história da China, como na do Piauí, os seixos talhados desse jeito são a norma. Nesse aspecto, diferem das ferramentas feitas pelo povo de Clóvis e outras culturas: quando estes escolhiam uma pedra para fabricar um artefato, usavam como matéria-prima os subprodutos do lascamento – as sobras, que em seguida eram trabalhadas.
Boëda acredita que muitos colegas se recusam a aceitar a origem humana desses artefatos por não conhecê-los. Para os críticos, as ferramentas são aquilo que o francês chama de “objetos sem memória”, ou seja, que não fazem parte do repertório conceitual de quem os vê e nem evocam qualquer associação. “Se você só funcionar por analogia, dirá que não são humanos, pois não se parecem com nada que já tenha visto.” Boëda, que também tem formação em medicina, comparou a negação do caráter antrópico dos artefatos à situação de um médico que não sabe fazer um diagnóstico. “Se você não conhece a doença, vai dizer o quê? Que o cara não está doente? É exatamente isso que está acontecendo.”
A Toca da Tira Peia, sítio analisado no último artigo da equipe franco-brasileira, foi batizada em homenagem a uma cobra encontrada durante a escavação – tirapeia é como a população local chama uma espécie de jararaca. Para chegar até lá, é preciso percorrer cerca de 10 quilômetros numa estrada de terra com trechos precários que sai do município de Coronel José Dias. Diferentemente de outros sítios da região, Tira Peia não fica no perímetro do Parque da Serra da Capivara.
A caminho do sítio, a geógrafa Gisele Daltrini Felice explicou que a região da Serra da Capivara fica no contato de duas estruturas geológicas distintas. A Toca da Tira Peia está localizada num maciço calcário, ambiente totalmente diferente das rochas areníticas do interior do parque.
A Toca da Tira Peia também fica na base de um paredão rochoso, mas a falésia não é coberta pelos seixos abundantes no topo do Boqueirão da Pedra Furada. “Estamos a 15 quilômetros de distância em linha reta do lugar onde eles ocorrem naturalmente”, disse Gisele. “Mas os críticos continuam dizendo levianamente que o material caiu lá do alto.”
Gisele nasceu em Bragança Paulista, estudou geografia no Rio Grande do Sul e se apaixonou pela diversidade ambiental da Serra da Capivara quando conheceu a região nos anos 80. Mudou-se para o Piauí em 1995 e desde 1999 mora em São Raimundo Nonato, onde é professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
No mestrado, sob orientação de Niède Guidon, ela investigou a hipótese de os carvões encontrados no Boqueirão da Pedra Furada serem provenientes de incêndios naturais. Se fosse o caso, explicou ela, os carvões deveriam ser encontrados por uma grande extensão. Para verificar essa hipótese, Gisele abriu várias trincheiras na região do sítio, fora das áreas escavadas. Não achou sinais de incêndio.
Achou, por outro lado, carvões de origem humana que revelaram outro sítio, algumas dezenas de metros à frente do paredão rochoso, a céu aberto – o Vale da Pedra Furada. As escavações feitas ali renderam centenas de artefatos em camadas com idade de quase 25 mil anos – os resultados serão apresentados num artigo a ser publicado na revista Antiquity. Assim como a Toca da Tira Peia, com 22 mil anos, o Vale da Pedra Furada é mais um novo sítio com indícios de ocupação anterior a Clóvis no Piauí. Nenhum deles, no entanto, confirmou até agora as datações mais antigas do Boqueirão da Pedra Furada.
De pé diante do buraco escavado na Toca da Tira Peia, vestindo um colete azul em que estava escrito ARQUEOLOGIA, Gisele disse que quem trabalha ali não tem a menor dúvida da antiguidade daqueles sítios. “A ocupação de 20 mil anos é muito tranquila”, disse ela. “Queira ou não queira, Clóvis não é a cultura mais antiga nem a referência para a ocupação da América.”
A descoberta de restos humanos com material orgânico datável poderia por fim à controvérsia sobre a antiguidade da presença humana no Piauí. No entanto, a acidez do solo arenítico, onde está a maioria dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara, é imprópria à preservação dos fósseis. São raros os esqueletos humanos antigos encontrados na região. Um deles, batizado de Zuzu, selou a conciliação de Niède Guidon com um antigo crítico de seu trabalho, o bioantropólogo Walter Neves, da USP.
Neves é conhecido pela descrição de Luzia, um esqueleto humano bem preservado de 11 mil anos escavado nos anos 70 em Lagoa Santa, Minas Gerais, por Annette Laming-Emperaire, madrinha acadêmica de Niède. O pesquisador da USP mostrou que traços do esqueleto lembravam mais os das populações da África e da Oceania que os da população do leste da Ásia, aparentados com os índios atuais. Neves propôs um modelo de duas ocupações separadas do continente por populações geneticamente distintas, ambas passando pela Beríngia. Os primeiros seriam o povo de Luzia, que não deixaram descendentes. Os ancestrais de Clóvis e dos índios de hoje teriam vindo na segunda leva.
Falando por telefone de seu gabinete, em São Paulo, Neves contou que era incrédulo quanto à antiguidade do Boqueirão da Pedra Furada. Mudou de ideia quando conheceu os sítios e o material escavado na Serra da Capivara, a convite de Niède Guidon. “Me surpreendi muito com o que vi”, admitiu. “Saí de lá 99% convencido de que se poderia mesmo ter uma datação muito antiga ali.”
Neves foi ao Piauí estudar Zuzu com o bioantropólogo Mark Hubbe, que tinha sido seu aluno de doutorado. Mostraram que é o mais velho esqueleto encontrado na região, com 11 mil anos. A análise reforçou a hipótese de Neves. “Os poucos esqueletos encontrados lá têm a mesma morfologia do povo de Luzia”, disse.
O número de sítios com idade alegada anterior a Clóvis se conta às centenas. Na América do Sul, a lista inclui Taima Taima, na Venezuela, a Cueva Pikimachay, no Peru, o Cerro Tres Tetas, na Argentina, ou Santa Elina, no Mato Grosso, com artefatos datados em 25 mil anos. A maioria desses sítios continua contestada por boa parte da comunidade.
Monte Verde ainda é o único sítio anterior a Clóvis amplamente aceito. Uma sondagem de 2012 com estudiosos do povoamento das Américas mostrou que só 10% deles contestam sua antiguidade. O consenso vale apenas para a data de 14 600 anos. Noutra área do sítio chileno, foram encontradas pedras lascadas e restos de fogueira com quase 40 mil anos de idade. Cioso da dificuldade para convencer os colegas de muito menos que isso, Tom Dillehay não se esforça para fazê-los aceitar essa data quase embaraçosa.
Se a questão da primazia de Clóvis parece superada, ainda falta encontrar um modelo para a ocupação do continente que se acomode aos novos fatos. O sítio reconhecido como o mais antigo das Américas agora fica no sul do continente, a 13 mil quilômetros do suposto ponto de entrada dos primeiros americanos.
Para estar em Monte Verde há 14 mil anos entrando pela Beríngia, os humanos precisariam ter chegado alguns milênios antes – já se falou em 16 mil ou 20 mil anos. Caso a presença humana no Piauí há mais de 20 mil anos seja amplamente aceita, será preciso recuar bem mais o momento da chegada.
Antoine Lourdeau, o professor francês de arqueologia da UFPE, torce para que a questão seja resolvida logo. Para ele, a fixação de muitos colegas com a data do povoamento acaba por desviá-los das questões que realmente interessam. “O grande lance é tentar entender quem estava aqui, como viviam, como se deslocavam e qual era a relação desses povos com as sociedades que vieram depois”, disse.
Em outubro último, estudiosos da ocupação das Américas se reuniram em Santa Fé, a capital do Novo México, a poucas centenas de quilômetros dos sítios históricos de Clóvis e Folsom. A conferência Odisseia Paleoamericana foi realizada no centro municipal de convenções, um prédio baixo de adobe, como a maior parte do centro histórico da cidade. Durante três dias, o evento reuniu centenas de pesquisadores e estudantes, mas também arqueólogos amadores e amantes da pré-história (de chapéu e colete, alguns pareciam prontos a sair dali para uma escavação). Além das palestras, realizadas num auditório de pé-direito alto, o evento abrigou uma exposição de pontas de lança, lâminas e outros artefatos arqueológicos.
Em 1999, realizara-se no mesmo local outra grande conferência sobre o povoamento do continente. A antiguidade de Monte Verde havia sido reconhecida
dois anos antes, mas o evento – intitulado “Clóvis e o que virá depois” – ainda foi realizado sob o signo do modelo teórico que prevalecera nas décadas anteriores. No intervalo de tempo que separa as duas conferências, contribuições importantes foram feitas ao entendimento do povoamento das Américas. Os arqueólogos sabem hoje mais do que sabiam há catorze anos.
No entanto, têm menos convicção sobre como a ocupação de fato ocorreu. Numa conversa de corredor durante a conferência, o paulistano Mark Hubbe, que hoje é professor da Universidade Estadual de Ohio, disse que são quatro as questões centrais para entender a ocupação do continente: quem eram os primeiros povos a viver aqui, de onde vieram, quando chegaram e como viviam. “Já gastamos milhões em pesquisa e ainda não sabemos responder a nenhuma delas”, disse.
Um dos organizadores da conferência de Santa Fé foi o geocientista Michael Waters, professor da Universidade do Texas A&M e diretor do Centro para o Estudo dos Primeiros Americanos. Recentemente, Waters liderou um grupo que encontrou uma ponta de projétil incrustada na costela de um mastodonte morto no estado de Washington há quase 14 mil anos, antes que o povo de Clóvis se espalhasse pela América do Norte. Waters é um homem alto que fala com forte sotaque texano. Numa entrevista no final do primeiro dia de conferência, disse que esta é uma época formidável para estudar a origem dos americanos. “Agora está tudo em aberto. Estamos livres do modelo Clovis Firste podemos explorar novas ideias. Estamos vendo o fim de um paradigma.”
Waters usava um termo consagrado por Thomas Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas, um livro influente de filosofia da ciência lançado em 1962. Nos termos propostos por Kuhn, estamos vivendo o momento em que o conjunto de pressupostos compartilhados pelos cientistas de uma disciplina – um paradigma – não dá mais conta de explicar o número cada vez maior de resultados discrepantes. “Um novo modelo tem que emergir”, continuou Waters.
O norte-americano estava impressionado com a palestra que vira havia pouco do paleogeneticista Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague. O dinamarquês antecipou um resultado que publicaria no mês seguinte na Nature: a análise do genoma de um menino que viveu na Sibéria há 24 mil anos – o mais antigo DNA humano já sequenciado.O menino tinha parentesco genético com índios americanos atuais, mas também com povos da Europa. Isso indica que as populações nativas da América não são só descendentes de povos vindos do leste da Ásia, como os dados genéticos indicavam até então, mas também de outro grupo que saiu da Europa.
Waters aposta que o paradigma que substituirá Clóvis terá contribuições importantes da biologia molecular. “Uma hora as evidências genéticas e as evidências arqueológicas que tiramos da terra vão convergir, e quando isso acontecer teremos uma nova história.” Na avaliação do americano, o roteiro dessa história não parece passar pela Serra da Capivara. Quando lhe perguntei se ele estava a par dos resultados da equipe franco-brasileira, ele respondeu que conhecia o material da Pedra Furada. “Os seixos parecem ter se lascado naturalmente e não têm a aparência de artefatos feitos por humanos. O sítio foi bem escavado, mas não acho que vá resistir ao escrutínio científico.”
Na exposição de objetos arqueológicos realizada em paralelo à conferência, as pontas de Clóvis eram os itens com maior destaque. Algumas vinham apresentadas sobre leito de feltro ou veludo. Emoldurada numa vitrine, estava uma peça escura de obsidiana com 25 centímetros de comprimento. Havia sido escavada no estado de Washington e era apresentada como a maior ponta acanalada já encontrada.
Estavam expostos também quinze artefatos de quartzo encontrados recentemente no Vale da Pedra Furada, em camadas com até 23 mil anos de idade. Tinham sido trazidas por Eric Boëda, convidado pela organização para fazer uma palestra. O francês circulou na sala de exposição durante a conferência, pronto a atender a dúvidas dos visitantes. Estava pouco à vontade naquele ambiente. Parecia-lhe que os artefatos em exposição estavam sendo julgados apenas por seu valor estético. “Isso aqui está com cara de concurso de beleza”, praguejou.
Os seixos da Pedra Furada de fato chamavam menos a atenção dos visitantes do que as abundantes pontas de projéteis. Talvez porque a forma não evocasse imediatamente a função. Como legítimos objetos sem memória, alguns artefatos trazidos por Boëda dificilmente seriam reconhecidos como ferramenta por um olho destreinado. Nos artefatos muito antigos, observou o francês, se prestarmos atenção nas lâminas, conseguiremos enxergar facas, garfos, colheres e outros objetos. Perguntei se ele identificava uma ferramenta só de bater o olho. “É como se visse uma caneta num prato de macarrão”, respondeu, olhando-me por cima dos óculos de armação oval. “Você reconhece imediatamente.”
A palestra de Boëda foi incluída numa sessão de “arqueologia pré-Clóvis”, que reuniu outros resultados controversos. Nela, apresentou resultados da retomada da missão franco-brasileira no Piauí. Evitou considerações de geopolítica científica e se ateve aos detalhes técnicos, mostrando os critérios usados para classificar os objetos escavados e determinar se eram ou não de origem humana. Falou num inglês com sotaque muito carregado, pelo qual se desculpou ao final.
A língua não era a única adversidade. Boëda enfrentava também o estigma do Boqueirão da Pedra Furada, o famigerado sítio dos artefatos de 50 mil anos, que joga um manto de dúvida sobre qualquer outra alegação que venha dali. Segundo ouvi de um participante da conferência, quando algum pesquisador vinha apresentar trabalhos feitos na Serra da Capivara, era recebido com ceticismo, independentemente do que dissesse. “A reação era a mesma: ‘Lá vêm aqueles malucos do Piauí de novo.’” O caráter isolado das descobertas também incomodava os críticos: se havia ocupação humana há tanto tempo no Nordeste brasileiro, por que os achados arqueológicos estão concentrados naquela região?
Quando assumiu a direção da equipe franco-brasileira, Boëda tentou guarnecer os flancos pelos quais poderia ser atacado. Privilegiou a pesquisa em novos sítios, como a Toca da Tira Peia e o Vale da Pedra Furada – já são sete sítios com ocupação antiga no Piauí, pelo seu cálculo. O grupo voltou a publicar em inglês, em revistas lidas pelos arqueólogos norte-americanos.
Boëda também cuidou de recrutar aliados estratégicos para montar uma equipe interdisciplinar. De Barcelona, trouxe Ignacio Clemente Conte, especialista na análise dos vestígios microscópicos deixados nas pedras lascadas. Sua análise confirmou que alguns artefatos foram usados para cortar carne e couro, trabalhar madeira, osso e outros materiais.
Enquanto tomava chope e comia hambúrguer ao final de um dia de congresso, Boëda contou que recrutou também o geólogo chileno Mario Pino, que havia trabalhado nas escavações de Monte Verde, para analisar a sedimentação dos novos sítios no Piauí. “Pino convenceu Tom Dillehay de que o material de fato tem origem humana”, contou.
Na manhã seguinte, Dillehay admitiu, num tom mais ponderado, que havia mudado de atitude em relação ao material do Piauí. “Olhando de novo para os sítios de Niède Guidon e do Eric, estou ficando mais convencido de que havia pessoas ali há 20 ou 25 mil anos”, disse ele. “A acumulação de dados através do tempo é bastante consistente.” Mas o americano ainda tem reticências com outros objetos de origem supostamente antrópica encontrados nas escavações. “Mais que os líticos, que são um foco importante da equipe franco-brasileira, o que me preocupa é a falta de detalhes sobre outras assinaturas da atividade humana, como fogueiras ou arranjos de pedras. Já disse isso a Eric e seus colegas.” Como não há restos de pinturas rupestres no material arqueológico escavado pelo grupo, elas não servem para atestar a presença humana antiga naqueles sítios.
Dillehay é professor da Universidade Vanderbilt, no Tennessee. Alto e de bigode ralo, num faroeste ele faria o papel do caubói insolente. Em Santa Fé, apresentou resultados das escavações que vem fazendo no sítio de Huaca Prieta, no litoral norte do Peru. Ali, encontrou ferramentas que chamam a atenção pela simplicidade da técnica de transformação – Dillehay assinalou a semelhança com os artefatos encontrados em Monte Verde, no Piauí e no Mato Grosso. As datações apontam a presença humana em Huaca Prieta por volta de 14 mil anos atrás.
O norte-americano Stuart Fiedel, general da brigada de Clóvis que havia criticado os resultados do grupo franco-brasileiro na reportagem da Science News, foi o último a falar no segundo dia da Odisseia Paleoamericana. Fiedel tem barba grisalha e calvície em progresso, e trabalha como arqueólogo numa empresa de consultoria ambiental. Está entre os 10% que rejeitam Monte Verde. Um colega o definiu como “um conservador puro – talvez o último –, que descarta completamente a possibilidade de Clóvis não corresponder ao primeiro povoamento americano”.
Fiedel criticou o que julga serem indícios precários de uma ocupação anterior a Clóvis, como fezes fossilizadas e pegadas de origem duvidosa. Notou que era o mesmo tipo de provas apresentadas por quem queria demonstrar a existência do mítico Pé Grande.
Contestou detalhadamente as pegadas de Monte Verde. As marcas encontradas, segundo ele, só poderiam ter sido feitas por uma criança de 1 ano, mas não têm características compatíveis com pés dessa idade. Fiedel concluiu sua fala refutando veementemente essas evidências. Alguém da plateia gritou Yeah!, dando ao encontro de cientistas certo ar de arena esportiva.
Ao final da apresentação, perguntei a Fiedel se os resultados recentes nos novos sítios do Piauí não lhe pareciam mais robustos que os do passado. Ele retomou o argumento que já havia apresentado antes: “Os objetos podem ter sido feitos por macacos-prego que fazem ferramentas de pedra e vivem exatamente naquela área”, disse. Ao fim da entrevista, uma mulher que havia ficado até o final entregou-lhe um par de sapatos de bebê e pediu-lhe que autografasse a sola.
Na visão de Thomas Kuhn, um novo paradigma se impõe gradualmente à medida que vai sendo adotado por cada vez mais cientistas de um campo. Mas o paradigma anterior mantém uma minoria residual de adeptos e não chega a desaparecer totalmente. Em última instância, constatou Kuhn, um paradigma só é superado de vez quando morre o último de seus praticantes.
Encerrando a fala em Santa Fé, Tom Dillehay, o descobridor de Monte Verde e algoz de Clóvis, pediu licença para uma digressão. Defendeu a descolonização do conhecimento científico e recomendou que seus colegas abrissem a cabeça para novas possibilidades. Cobrou dos críticos que dessem lastro às suas observações e projetou na tela a declaração que o colega Stuart Fiedel dera sobre o estudo franco-brasileiro. “Que tipo de macaco produz um sítio arqueológico?”, questionou. “Espero que os jovens estudiosos do povoamento antigo não precisem ouvir o mesmo tipo de bobajada. Eu saúdo a nova geração de pesquisadores.”
07 de janeiro de 2013
BERNARDO ESTEVES
No inverno passado, o arqueólogo desenterrou centenas de pedras lascadas que lhe pareceram ferramentas usadas por homens pré-históricos que habitaram a região milhares de anos atrás. Deviam servir para cortar, raspar, cavar, trabalhar o couro ou a madeira. Muitos seixos tinham pedaços removidos em apenas uma face. Como os artefatos aproveitam parte da forma natural da pedra, nem sempre sua aparência é a que se espera de uma ferramenta. Para o arqueólogo, a identificação não é problemática. “Quando você vê uma peça dessas não tem dúvida nenhuma”, disse Lourdeau.
Num restaurante próximo à praia de Boa Viagem, no Recife, o francês explicou que a fratura da pedra lascada pelo homem segue sempre o mesmo princípio físico. “A natureza quebra blocos, já o homem tem um objetivo em vista quando faz um lascamento. Quando você vê a sequência das retiradas, é fácil saber se respondem a um objetivo definido. Se houver uma lógica de retiradas, pode descartar a questão natural.”
Lourdeau é um homem magro de cabelos compridos que aparenta ter menos que seus 31 anos. Estudou na Universidade Paris X e se especializou no estudo das pedras lascadas na pré-história do Brasil. Foi treinado pelo francês Eric Boëda, especialista na matéria. Dez dias depois de defender sua tese de doutorado, prestava concurso para a Universidade Federal de Pernambuco, a UFPE. Passou e em 2011 se fixou ali perto, no bairro de Boa Viagem. Lourdeau vem participando das escavações promovidas por uma missão arqueológica franco-brasileira, sob o comando de Boëda. O grupo está dando continuidade aos trabalhos conduzidos pela brasileira Niède Guidon na Serra da Capivara desde os anos 70.
Lourdeau conduziu as escavações do sítio da Toca da Tira Peia, uma área escavada de 25 metros quadrados e 2,5 metros de profundidade. A densidade de achados arqueológicos não foi grande: entre 2008 a 2011, saíram dali apenas 113 peças interpretadas como artefatos indiscutíveis. Os resultados começaram a ser publicados no ano passado no Journal of Archaeological Science, revista americana mais prestigiosa da área. O trabalho concluiu que alguns artefatos encontrados têm pelo menos 22 mil anos. Se o resultado for aceito pela comunidade de arqueólogos, será o mais antigo indício da presença humana no continente americano.
Somos todos forasteiros na América. Com exceção da Antártida, que permanece em grande medida uma terra inabitada, o continente americano foi o último a ser ocupado pelo Homo sapiens desde o surgimento da espécie na África, entre 200 mil e 150 mil anos atrás. Vestígios deixados pelos humanos antigos permitem rastrear seus movimentos à medida que se espalharam pelo Oriente Médio, e dali para a Europa e o sudeste da Ásia, de onde ganharam tanto a Oceania quanto a Sibéria e as Américas.
No momento em que os primeiros humanos conquistavam o mundo, o planeta atravessava um longo período glacial, durante o qual as temperaturas caíram e as geleiras avançaram nas regiões mais frias. O nível do mar estava mais de 100 metros abaixo do atual, o que fez surgir ilhas e mudou o contorno dos continentes. Não existia então o Estreito de Bering, a faixa de 90 quilômetros de mar que hoje separa o Alasca da Sibéria. A Eurásia e as Américas formavam então uma extensão contínua de terra. Um caçador-coletor pré-histórico longevo e bem-disposto que errasse pela Península Ibérica no final da última Era do Gelo poderia, se lhe conviesse, ir a pé até a Terra do Fogo.
Os cientistas estimam que a Beríngia, como foi chamada essa ponte terrestre entre América e Ásia, ficou emersa de 27 mil a 10 mil anos atrás. A maioria deles acredita que foi por ali que chegaram os primeiros americanos. Recentemente, a hipótese foi reforçada por estudos genéticos do DNA preservado em fósseis humanos. Essas pesquisas mostram parentesco entre as populações americanas nativas e os povos asiáticos. Pesquisadores que propõem outros modelos de povoamento – pelo Atlântico ou pelo Pacífico – geralmente são desacreditados pela comunidade. A hipótese mais aceita até alguns anos propunha que os primeiros grupos chegaram à América por volta de 15 mil anos atrás – o que é incompatível com humanos lascando pedra no Piauí há 22 mil anos.
A primeira autora do artigo publicado no Journal of Archaeological Science é a francesa Christelle Lahaye, uma física de 35 anos e cabelos curtos que se especializou na datação de sítios arqueológicos. O método mais comumente usado pelos pesquisadores é a datação por carbono-14, que determina a idade de uma amostra calculando a quantidade desse tipo de átomo nela contida. No entanto, o carbono-14 só se aplica a material orgânico, como restos de lenha queimada, couro ou ossos fossilizados com colágeno preservado. Nada disso foi encontrado na Toca da Tira Peia.
O grupo recorreu então à datação por luminescência, especialidade de Lahaye na Universidade de Bordeaux 3. A técnica permite determinar a data da última exposição de um determinado material à luz – posto de outra forma, a época em que ele submergiu na terra. Lahaye explicou que as datações por carbono-14 têm menor margem de erro, mas nem sempre podem ser feitas, além de só serem confiáveis para materiais de até 50 mil anos. “A luminescência permite chegar a eventos que não seriam datáveis por outros métodos”, disse. “Mas nos casos de controvérsia, é importante combinar os dois métodos.”
Lahaye foi ao Piauí comandar a coleta das amostras e entender o contexto em que foram retiradas. Colhe-se material com uma espécie de tubo de PVC enfiado na parede da escavação; só será datado o que estiver no interior do tubo, ao abrigo da luz. A análise determina a idade não dos artefatos propriamente ditos, mas das camadas de sedimentos em que eles estavam enterrados.
Não foram as datações, no entanto, que motivaram as críticas que o trabalho recebeu assim que foi publicado. Quando noticiou a publicação do artigo, a revista Science News deu voz a dois arqueólogos descrentes dos resultados. Um deles disse que as pedras lascadas poderiam ser fruto da queda natural dos seixos. O norte-americano Stuart Fiedel propôs outra possibilidade: macacos-prego ou outros primatas poderiam ter produzido as ferramentas.
No começo do século passado, uma violenta tempestade de verão provocou uma enchente na cidade de Folsom, no Novo México, sudoeste dos Estados Unidos. Ao revolver o solo, a chuva trouxe à superfície ossos de uma espécie extinta de bisão gigante, um dos grandes mamíferos abundantes nas Américas do Sul e do Norte até o fim da última glaciação. Em 1927, durante a escavação do local, surgiram duas costelas do animal ao lado de uma ponta de projétil de fina fabricação, tendo, na base, uma canaleta para possível encaixe numa lança.
O ferreiro que conduzia a escavação interrompeu o trabalho e telegrafou para arqueólogos de vários centros de pesquisa. Os especialistas, chegados dali a alguns dias, deram seu veredicto: o arranjo era um sinal inequívoco de que o bisão havia sido morto por caçadores. Aquele era o primeiro indício confiável de que havia humanos no continente americano em plena Era do Gelo.
Poucos anos depois, pontas de lança ainda maiores que as de Folsom, embora de manufatura menos sofisticada, apareceram na cidade de Clóvis, também no Novo México, desta vez junto a ossos de mamutes. Pontas de projéteis como aquelas começaram a ser encontradas em contexto parecido noutros sítios nos Estados Unidos. Aparentemente, as planícies centrais da América do Norte tinham sido ocupadas por grupos que caçavam animais de grande porte. Passaram a ser conhecidos como o povo de Clóvis.
Nos casos em que artefatos aparecem associados inequivocamente com fósseis, como as pontas de Folsom e Clóvis, sua idade pode ser determinada com a datação do material orgânico por carbono-14. Só em 1964, depois do estabelecimento do método, foi possível determinar com precisão a idade daquelas pontas: eram de 13 mil e 13 500 anos atrás.[1]
Os cientistas acreditavam que, pouco antes disso, um grande corredor havia sido oportunamente aberto em meio às imensas geleiras que tomavam conta do território onde hoje está o Canadá. Aquela tinha sido a grande avenida pela qual os grupos de caçadores-coletores vindos da Ásia adentraram o continente, quem sabe no encalço de grandes mamíferos. Pelo jeito tinham sido eles os primeiros americanos, e esse modelo de ocupação foi chamado de “Clovis First”.
Desenterradas em centenas de localidades, as pontas de Clóvis viraram objeto de admiração nos Estados Unidos, onde movimentam um mundo paralelo de revistas, excursões, mostras e oficinas de pedra lascada. As peças mais raras podem ser negociadas por dezenas de milhares de dólares. Elas se tornaram um mito fundador da cultura da inovação: a tecnologia das pontas de Clóvis teria sido a primeira invenção americana, propôs o arqueólogo David Meltzer no livro First Peoples in a New World, sem tradução para o português.
Havia, contudo, um problema a ser enfrentado pelos defensores desse modelo de ocupação da América. As pontas de Clóvis foram encontradas num intervalo restrito no tempo e no espaço – o Panamá é o ponto mais ao sul em que apareceram. No entanto, em todo o resto do continente, até a Terra do Fogo, há indícios de presença humana quase contemporâneos à cultura Clóvis. Se esse povo chegou mesmo primeiro, foi bem ligeiro para se espalhar pelo território.
Além disso, as ferramentas usadas pelos povos do sul pouco se pareciam com as da cultura do norte. O modelo não explicava tal diversidade tecnológica, nem a idade de sítios encontrados abaixo do Equador, mas isso não impediu que a teoria de Clóvis prosperasse.
A incredulidade com que alguns arqueólogos reagiram aos achados dos pesquisadores franco-brasileiros no Piauí ecoava uma forte resistência a resultados de escavações anteriores feitas na região. As supostas ferramentas de 22 mil anos da Toca da Tira Peia não eram os primeiros artefatos anteriores a Clóvis que apareciam na Serra da Capivara – nem os mais antigos.
O pivô da controvérsia é a arqueóloga paulista Niède Guidon, uma mulher de pouco mais de 1,50 metro e jeito de poucos amigos. Nascida em Jaú de pai francês e mãe brasileira, ela estudou história natural na Universidade de São Paulo e pré-história na Sorbonne, onde foi aluna de André Leroi-Gourhan e Annette Laming-Emperaire, figuras de proa da arqueologia francesa. Niède fará 81 anos em março. Está estabelecida desde os anos 90 em São Raimundo Nonato, cidade a 505 quilômetros de Teresina. Ela dirige ali a Fundação Museu do Homem Americano, responsável pela gestão do Parque Nacional Serra da Capivara. Mora numa casa construída junto à sede da fundação e trabalha numa varanda climatizada com paredes de vidro.
Numa entrevista em sua casa, Niède contou que soube da existência de um tesouro arqueológico no Piauí quando, em 1963, organizou uma exposição sobre pinturas rupestres no Museu Paulista, onde trabalhava. Foi abordada na ocasião por um visitante que queria falar com o responsável pela mostra. “Ele disse que perto da sua terra também havia umas pinturas de índios e me mostrou umas fotos”, disse a arqueóloga. “Vi que era algo completamente diferente.”
Demorou alguns anos até que Niède pudesse finalmente visitar as pinturas rupestres do Piauí. Nesse ínterim veio o golpe militar e ela decidiu partir para a França. Tornou-se pesquisadora do CNRS, o centro nacional de pesquisa da França, e mais tarde da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. De passagem pelo Brasil numa viagem de campo, deu um jeito de visitar o Piauí, fotografou alguns sítios com pinturas e, com isso, conseguiu financiamento para estudar o local, a partir de 1973.
As pinturas pré-históricas são abundantes nos paredões de arenito da Serra da Capivara. Passa de mil o número de sítios com arte rupestre identificados na região. Diferentemente da arte pré-histórica europeia, praticada em cavernas como Altamira, na Espanha, ou Lascaux, na França, as pinturas do Piauí estão expostas ao ar livre. Representam tatus, emas, macacos, lagartos, mas também uma infinidade de figuras humanas, raras na arte rupestre da Europa. Há pessoas caçando, brincando, dançando, lutando, parindo, transando.
Como os pigmentos usados na arte rupestre do Piauí não eram feitos com material orgânico, não podem ter sua idade diretamente determinada. Datações indiretas de lascas de pintura encontradas em sítios arqueológicos indicam que elas se tornaram abundantes por volta de 10 mil anos atrás, mas podem ter surgido bem antes disso – algumas foram datadas na casa dos 20 mil anos. A arte rupestre de Chauvet, a mais antiga de que se tem notícia, tem cerca de 30 mil anos de idade.
Em 1978, Niède Guidon convenceu o governo francês a criar uma missão arqueológica para o estudo da pré-história do Piauí. A França promove, desde os tempos de Napoleão, escavações arqueológicas em vários cantos do globo. Missões em dezenas de países são financiadas pelo Ministério das Relações Exteriores, que enxerga na arqueologia um instrumento da sua “diplomacia científica”.
Foi na primeira investida da missão que a pesquisadora descobriu o maior – e mais controverso – sítio arqueológico da Serra da Capivara: a Toca do Boqueirão da Pedra Furada, no sopé de um grande paredão de arenito de 70 metros de extensão, com quase 70 metros de altura, inclinado de forma a oferecer abrigo a quem estiver em sua base.
O paredão está coberto de pinturas rupestres de fora a fora – mais de mil figuras individuais foram catalogadas. Eram um bom indício de que o lugar havia sido muito visitado por grupos humanos no passado. Quando as escavações tiveram início, Niède encontrou pedras que aparentavam ter sido lascadas por humanos e carvões que pareciam provenientes de fogueiras intencionais. “Eram fogueiras estruturadas, eles colocavam pedras e dentro delas faziam o fogo”, descreveu.
No fim de uma temporada de escavação, Niède mandou carvões para que fossem datados por um laboratório francês. Não acreditou quando recebeu os resultados pelo correio: a amostra tinha 26 mil anos. Ligou imediatamente para a França com a intenção de passar um pito na pesquisadora responsável: “Vocês misturaram minhas amostras. Na América não tem nada dessa idade!” Do outro lado da linha, veio a resposta: “Pois retorne e amplie sua escavação, porque é carvão seu.” Niède voltou a campo e constatou que a colega tinha razão. O mundo ficou conhecendo o Boqueirão da Pedra Furada em 1986, por um artigo da revista Nature em que se sustentava que os humanos já estavam no Piauí há 32 mil anos.
Da passarela de madeira instalada para os turistas que vêm conhecer as pinturas rupestres, é possível ver o imenso volume escavado pelos pesquisadores no Boqueirão da Pedra Furada. Pelas contas de Niède, “são 60 metros por uns 15 de largura e 8 de profundidade”. O sítio foi escavado por dez anos, de 1978 a 1987. No final, o trabalho foi conduzido pelo italiano Fabio Parenti, aluno de doutorado de Niède na Sorbonne.
O objetivo de Parenti era provar que os artefatos não podiam ter sido produzidos pela ação da natureza. Seixos de quartzo – a matéria-prima das ferramentas – ocorrem naturalmente no topo da falésia que domina o boqueirão. Para os críticos, os gumes que lhes conferiam aspecto de artefatos não passavam de efeito fortuito produzido pela queda. Para descartar essa hipótese, o italiano fez uma análise de 2 mil seixos coletados na base da encosta e constatou que tinham um padrão diferente daquele verificado no material escavado no sítio arqueológico. Para ele, estes eram artefatos indiscutíveis.
Ao final das escavações, Parenti havia catalogado quase 600 objetos que teriam sido criados pela ação humana em épocas anteriores à cultura Clóvis. A sequência de datações do sítio, feita com restos de carvão, vai até o limite que pode ser medido por carbono-14, cerca de 50 mil anos atrás. Outras datações, além do horizonte possível de testar com esse método, fizeram Niède defender uma ocupação ainda mais antiga.
Caso os cientistas trabalhando no Piauí estivessem certos, havia humanos no Nordeste do Brasil dezenas de milhares de anos antes de os caçadores de grandes mamíferos se espalharem pela América do Norte. Nesse caso, a data de chegada dos primeiros americanos defendida pelo consenso da ciência arqueológica sofreria um profundo revés, e um modelo radicalmente diferente de povoamento das Américas teria que ser formulado. Niède sustenta a hipótese de uma ocupação vinda da África, pelo Atlântico Sul, aproveitando o mar mais baixo e uma corrente favorável. “Eles chegaram na altura do delta do Parnaíba”, afirmou. Por enquanto, poucos colegas dão crédito à hipótese.
Se a tese dos 50 mil anos é contestada por quase toda a comunidade arqueológica, o mesmo não é verdade para correntes que defendem uma presença humana nas Américas anterior a Clóvis. Evidências disso vinham surgindo desde o século XIX, mas sua frequência aumentou nos anos 1970.
No final daquela década, o norte-americano Tom Dillehay era professor da Universidade Austral de Chile, em Valdivia, quando chegaram às suas mãos um osso de mastodonte, artefatos de pedra e outros objetos. O material havia sido achado por lenhadores nas imediações de um riacho na região de Monte Verde, no sul do Chile, a 800 quilômetros de Santiago.
Quando iniciou as escavações no local, Dillehay se deparou com um sítio arqueológico com uma gama impressionante de restos preservados. Havia artefatos de madeira, pedra, osso e marfim, restos orgânicos de frutas, raízes, sementes e algas marinhas, tufos de pelo, fezes fossilizadas e três pegadas com 13 centímetros de comprimento. Uma camada de turfa – matéria vegetal parcialmente decomposta – formada sobre o depósito isolou o material orgânico do oxigênio e poupou-o da degradação por bactérias.
Tamanha diversidade de materiais parecia ter sido reunida pela ação humana. Algumas das espécies vegetais encontradas só ocorriam a dezenas de quilômetros dali. Muitas das plantas identificadas ainda são usadas por índios locais como alimento ou remédio. Na interpretação de Dillehay, o lugar era provavelmente um acampamento de povos pré-históricos abandonado às pressas devido a uma enchente.
A datação por carbono-14 mostrou que o material tinha em torno de 14 600 anos de idade.
Como não eram compatíveis com o modelo de Clóvis, os resultados do estudo, sintetizados num volume publicado em 1989, foram recebidos com ceticismo. Foi preciso aguardar quase uma década até que eles fossem aceitos de forma mais ampla pela comunidade.
O convencimento só veio em 1997, depois que o sítio foi inspecionado in loco – como nos tempos de Folsom – por uma comissão de doze arqueólogos que incluía antigos críticos do trabalho de Dillehay.
Todos concordaram que o material atestava de forma inequívoca a presença humana em Monte Verde mais de 14 mil anos atrás. Quando noticiou o consenso inédito, anunciado numa coletiva para a imprensa, o New York Times afirmou que era uma experiência libertadora para a arqueologia, similar à quebra da barreira do som para a aviação.
Para um achado arqueológico ser aceito sem controvérsia, alguns pré-requisitos precisam ser preenchidos. É necessário ter sido achado num sítio com boas condições de preservação, sem sinais de perturbação causada pela ação humana ou processos naturais. Deve também ter uma datação confiável, que mostre a sucessão de camadas superpostas, da mais recente à mais antiga. Nada disso era muito problemático no Boqueirão da Pedra Furada. Os resultados não passaram, porém, num terceiro teste essencial para sua aceitação: os vestígios precisam ter sido indiscutivelmente produzidos pela ação humana. As ferramentas do Piauí estavam longe de ser aceitas como tal pelos pares de Niède Guidon e Fabio Parenti.
Alegações extraordinárias requerem provas extraordinárias, reza um dito popular entre os cientistas. Por isso, arqueólogos que afirmavam ter indícios da presença humana nas Américas muito antiga sempre foram sistematicamente desacreditados.
Numa reportagem de 1990, a revista Science chamou de “polícia de Clóvis” os pesquisadores que defendiam o status quo sobre o povoamento do continente e refutavam em bloco os resultados que o contestassem.
No caso das disciplinas experimentais, um pesquisador que duvidar da alegação de um colega terá sempre a possibilidade de refazer o experimento em seu laboratório. Na arqueologia, porém, a replicação dos resultados é uma impossibilidade. As tabelas, fotos e desenhos dos artigos científicos nem sempre bastam para convencer os mais céticos, e em alguns casos a aceitação só vem depois que os colegas visitam o sítio contestado. Se eminentes arqueólogos não tivessem visto com os próprios olhos a ponta de lança encontrada entre as costelas do bisão em Folsom, talvez o achado fosse recebido com o mesmo ceticismo que agora se abatia sobre os defensores do novo modelo de ocupação do continente.
Foi com esse espírito que Niède Guidon organizou em 1993 um simpósio sobre o povoamento das Américas em São Raimundo Nonato e convidou colegas norte-americanos para conhecerem o Boqueirão da Pedra Furada. Dentre aqueles que aceitaram o convite estavam Tom Dillehay, David Meltzer e James Adovasio. Este último também tinha explorado um sítio pré-Clóvis – Meadowcroft, no nordeste dos Estados Unidos, com vestígios humanos de até 20 mil anos –, contestado por colegas.
A visita ao sítio e o exame dos artefatos não bastou para convencê-los. A inspeção foi relatada num artigo publicado na revista Antiquity, no qual duvidaram da origem antrópica dos carvões e afirmaram que não podiam aceitar a alegação de que os seixos lascados da Pedra Furada fossem artefatos.
Fabio Parenti assumiu um tom desgostoso quando comentou a visita numa conversa recente. Ele se decepcionou com o juízo ligeiro que colegas tarimbados emitiram sobre um trabalho de anos. “Eles foram superficiais”, disse, falando de Roma pelo Skype. “Não se pode julgar uma situação tão complicada com quatro ou cinco horas de observação.”
Niède Guidon, por sua vez, publicou na época uma réplica ao artigo de Meltzer, Adovasio e Dillehay, na qual taxou as críticas de falsas ou levianas. Mas nunca perdeu o sono por causa da reprovação dos colegas norte-americanos. Ela costuma dizer que sua prioridade não era desvendar quando o continente foi ocupado. “Vim ao Piauí por causa das pinturas rupestres. Não estava atrás do que é mais antigo.”
Quem procurá-la para se inteirar da história do povoamento das Américas concluirá que não há controvérsia; há apenas pesquisadores que teimam em não aceitar as evidências. Na sua leitura, mais do que um debate de interpretações, o que está em jogo é um choque entre a escola francesa de arqueologia, mais aberta a novas ideias, e a americana, incapaz de largar o osso de Clóvis – um modelo teórico que, para ela, sequer deveria ter sido levado a sério. Mais do que convencer os colegas do norte, a arqueóloga paulista está preocupada em consolidar o legado que vem construindo no sertão do Piauí nas últimas décadas.
Desde que se aposentou, Niède não é mais a coordenadora da missão arqueológica franco-brasileira no Piauí. Para assumir a condução dos trabalhos, ela convidou Eric Boëda, pesquisador do CNRS e professor da Universidade Paris X. Boëda organizou e escreveu livros sobre pedras lascadas. O último deles, lançado em setembro, é um tratado sobre a tecnologia dos objetos líticos cortantes na pré-história.
Boëda já dirigiu escavações na Europa, África e Ásia. Trabalhou na Síria por mais de vinte anos. No sítio de Umm el Tlel, numa estepe nas imediações do Eufrates, sua equipe fez uma escavação de 22 metros de profundidade, testemunha de mais de 1 milhão de anos de atividades do Homo sapiens e de seus ancestrais.
Nas escavações de que toma parte na China, desde 1997, investiga as ferramentas usadas pelos primeiros humanos que povoaram o leste da Ásia. Notou que as matérias-primas e soluções técnicas eram muito diferentes das adotadas na África na mesma época.
Assim que foi apresentado às pedras lascadas do Piauí, o francês percebeu que não tinham qualquer semelhança com aquelas encontradas no resto das Américas. Por outro lado, guardavam parentesco com o tipo de tecnologia que ele tinha visto no leste da Ásia. Para ele, só quem desconhece as ferramentas de outros cantos do globo é capaz de contestar o caráter antrópico dos seixos lascados da Serra da Capivara. “Se as pedras que eu tinha na China eram humanas, não podia dizer que as do Piauí não eram.”
Aos 59 anos, Boëda é um homem baixo de longos cabelos pretos anelados e barba branca cheia. Falando de Paris pelo Skype, ele disse que, assim como no Piauí, as ferramentas encontradas na China eram feitas de seixos apenas parcialmente trabalhados. A produção do artefato começava já na seleção. “Você escolhe o seixo que tem a forma, o volume e a superfície ideais para fazer sua ferramenta, e depois talha apenas a parte que será a zona ativa”, explicou. “É como fazer uma escultura num bloco onde já houvesse a cabeça e as orelhas: seria preciso esculpir só o rosto.” Na pré-história da China, como na do Piauí, os seixos talhados desse jeito são a norma. Nesse aspecto, diferem das ferramentas feitas pelo povo de Clóvis e outras culturas: quando estes escolhiam uma pedra para fabricar um artefato, usavam como matéria-prima os subprodutos do lascamento – as sobras, que em seguida eram trabalhadas.
Boëda acredita que muitos colegas se recusam a aceitar a origem humana desses artefatos por não conhecê-los. Para os críticos, as ferramentas são aquilo que o francês chama de “objetos sem memória”, ou seja, que não fazem parte do repertório conceitual de quem os vê e nem evocam qualquer associação. “Se você só funcionar por analogia, dirá que não são humanos, pois não se parecem com nada que já tenha visto.” Boëda, que também tem formação em medicina, comparou a negação do caráter antrópico dos artefatos à situação de um médico que não sabe fazer um diagnóstico. “Se você não conhece a doença, vai dizer o quê? Que o cara não está doente? É exatamente isso que está acontecendo.”
A Toca da Tira Peia, sítio analisado no último artigo da equipe franco-brasileira, foi batizada em homenagem a uma cobra encontrada durante a escavação – tirapeia é como a população local chama uma espécie de jararaca. Para chegar até lá, é preciso percorrer cerca de 10 quilômetros numa estrada de terra com trechos precários que sai do município de Coronel José Dias. Diferentemente de outros sítios da região, Tira Peia não fica no perímetro do Parque da Serra da Capivara.
A caminho do sítio, a geógrafa Gisele Daltrini Felice explicou que a região da Serra da Capivara fica no contato de duas estruturas geológicas distintas. A Toca da Tira Peia está localizada num maciço calcário, ambiente totalmente diferente das rochas areníticas do interior do parque.
A Toca da Tira Peia também fica na base de um paredão rochoso, mas a falésia não é coberta pelos seixos abundantes no topo do Boqueirão da Pedra Furada. “Estamos a 15 quilômetros de distância em linha reta do lugar onde eles ocorrem naturalmente”, disse Gisele. “Mas os críticos continuam dizendo levianamente que o material caiu lá do alto.”
Gisele nasceu em Bragança Paulista, estudou geografia no Rio Grande do Sul e se apaixonou pela diversidade ambiental da Serra da Capivara quando conheceu a região nos anos 80. Mudou-se para o Piauí em 1995 e desde 1999 mora em São Raimundo Nonato, onde é professora da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
No mestrado, sob orientação de Niède Guidon, ela investigou a hipótese de os carvões encontrados no Boqueirão da Pedra Furada serem provenientes de incêndios naturais. Se fosse o caso, explicou ela, os carvões deveriam ser encontrados por uma grande extensão. Para verificar essa hipótese, Gisele abriu várias trincheiras na região do sítio, fora das áreas escavadas. Não achou sinais de incêndio.
Achou, por outro lado, carvões de origem humana que revelaram outro sítio, algumas dezenas de metros à frente do paredão rochoso, a céu aberto – o Vale da Pedra Furada. As escavações feitas ali renderam centenas de artefatos em camadas com idade de quase 25 mil anos – os resultados serão apresentados num artigo a ser publicado na revista Antiquity. Assim como a Toca da Tira Peia, com 22 mil anos, o Vale da Pedra Furada é mais um novo sítio com indícios de ocupação anterior a Clóvis no Piauí. Nenhum deles, no entanto, confirmou até agora as datações mais antigas do Boqueirão da Pedra Furada.
De pé diante do buraco escavado na Toca da Tira Peia, vestindo um colete azul em que estava escrito ARQUEOLOGIA, Gisele disse que quem trabalha ali não tem a menor dúvida da antiguidade daqueles sítios. “A ocupação de 20 mil anos é muito tranquila”, disse ela. “Queira ou não queira, Clóvis não é a cultura mais antiga nem a referência para a ocupação da América.”
A descoberta de restos humanos com material orgânico datável poderia por fim à controvérsia sobre a antiguidade da presença humana no Piauí. No entanto, a acidez do solo arenítico, onde está a maioria dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara, é imprópria à preservação dos fósseis. São raros os esqueletos humanos antigos encontrados na região. Um deles, batizado de Zuzu, selou a conciliação de Niède Guidon com um antigo crítico de seu trabalho, o bioantropólogo Walter Neves, da USP.
Neves é conhecido pela descrição de Luzia, um esqueleto humano bem preservado de 11 mil anos escavado nos anos 70 em Lagoa Santa, Minas Gerais, por Annette Laming-Emperaire, madrinha acadêmica de Niède. O pesquisador da USP mostrou que traços do esqueleto lembravam mais os das populações da África e da Oceania que os da população do leste da Ásia, aparentados com os índios atuais. Neves propôs um modelo de duas ocupações separadas do continente por populações geneticamente distintas, ambas passando pela Beríngia. Os primeiros seriam o povo de Luzia, que não deixaram descendentes. Os ancestrais de Clóvis e dos índios de hoje teriam vindo na segunda leva.
Falando por telefone de seu gabinete, em São Paulo, Neves contou que era incrédulo quanto à antiguidade do Boqueirão da Pedra Furada. Mudou de ideia quando conheceu os sítios e o material escavado na Serra da Capivara, a convite de Niède Guidon. “Me surpreendi muito com o que vi”, admitiu. “Saí de lá 99% convencido de que se poderia mesmo ter uma datação muito antiga ali.”
Neves foi ao Piauí estudar Zuzu com o bioantropólogo Mark Hubbe, que tinha sido seu aluno de doutorado. Mostraram que é o mais velho esqueleto encontrado na região, com 11 mil anos. A análise reforçou a hipótese de Neves. “Os poucos esqueletos encontrados lá têm a mesma morfologia do povo de Luzia”, disse.
O número de sítios com idade alegada anterior a Clóvis se conta às centenas. Na América do Sul, a lista inclui Taima Taima, na Venezuela, a Cueva Pikimachay, no Peru, o Cerro Tres Tetas, na Argentina, ou Santa Elina, no Mato Grosso, com artefatos datados em 25 mil anos. A maioria desses sítios continua contestada por boa parte da comunidade.
Monte Verde ainda é o único sítio anterior a Clóvis amplamente aceito. Uma sondagem de 2012 com estudiosos do povoamento das Américas mostrou que só 10% deles contestam sua antiguidade. O consenso vale apenas para a data de 14 600 anos. Noutra área do sítio chileno, foram encontradas pedras lascadas e restos de fogueira com quase 40 mil anos de idade. Cioso da dificuldade para convencer os colegas de muito menos que isso, Tom Dillehay não se esforça para fazê-los aceitar essa data quase embaraçosa.
Se a questão da primazia de Clóvis parece superada, ainda falta encontrar um modelo para a ocupação do continente que se acomode aos novos fatos. O sítio reconhecido como o mais antigo das Américas agora fica no sul do continente, a 13 mil quilômetros do suposto ponto de entrada dos primeiros americanos.
Para estar em Monte Verde há 14 mil anos entrando pela Beríngia, os humanos precisariam ter chegado alguns milênios antes – já se falou em 16 mil ou 20 mil anos. Caso a presença humana no Piauí há mais de 20 mil anos seja amplamente aceita, será preciso recuar bem mais o momento da chegada.
Antoine Lourdeau, o professor francês de arqueologia da UFPE, torce para que a questão seja resolvida logo. Para ele, a fixação de muitos colegas com a data do povoamento acaba por desviá-los das questões que realmente interessam. “O grande lance é tentar entender quem estava aqui, como viviam, como se deslocavam e qual era a relação desses povos com as sociedades que vieram depois”, disse.
Em outubro último, estudiosos da ocupação das Américas se reuniram em Santa Fé, a capital do Novo México, a poucas centenas de quilômetros dos sítios históricos de Clóvis e Folsom. A conferência Odisseia Paleoamericana foi realizada no centro municipal de convenções, um prédio baixo de adobe, como a maior parte do centro histórico da cidade. Durante três dias, o evento reuniu centenas de pesquisadores e estudantes, mas também arqueólogos amadores e amantes da pré-história (de chapéu e colete, alguns pareciam prontos a sair dali para uma escavação). Além das palestras, realizadas num auditório de pé-direito alto, o evento abrigou uma exposição de pontas de lança, lâminas e outros artefatos arqueológicos.
Em 1999, realizara-se no mesmo local outra grande conferência sobre o povoamento do continente. A antiguidade de Monte Verde havia sido reconhecida
dois anos antes, mas o evento – intitulado “Clóvis e o que virá depois” – ainda foi realizado sob o signo do modelo teórico que prevalecera nas décadas anteriores. No intervalo de tempo que separa as duas conferências, contribuições importantes foram feitas ao entendimento do povoamento das Américas. Os arqueólogos sabem hoje mais do que sabiam há catorze anos.
No entanto, têm menos convicção sobre como a ocupação de fato ocorreu. Numa conversa de corredor durante a conferência, o paulistano Mark Hubbe, que hoje é professor da Universidade Estadual de Ohio, disse que são quatro as questões centrais para entender a ocupação do continente: quem eram os primeiros povos a viver aqui, de onde vieram, quando chegaram e como viviam. “Já gastamos milhões em pesquisa e ainda não sabemos responder a nenhuma delas”, disse.
Um dos organizadores da conferência de Santa Fé foi o geocientista Michael Waters, professor da Universidade do Texas A&M e diretor do Centro para o Estudo dos Primeiros Americanos. Recentemente, Waters liderou um grupo que encontrou uma ponta de projétil incrustada na costela de um mastodonte morto no estado de Washington há quase 14 mil anos, antes que o povo de Clóvis se espalhasse pela América do Norte. Waters é um homem alto que fala com forte sotaque texano. Numa entrevista no final do primeiro dia de conferência, disse que esta é uma época formidável para estudar a origem dos americanos. “Agora está tudo em aberto. Estamos livres do modelo Clovis Firste podemos explorar novas ideias. Estamos vendo o fim de um paradigma.”
Waters usava um termo consagrado por Thomas Kuhn em A Estrutura das Revoluções Científicas, um livro influente de filosofia da ciência lançado em 1962. Nos termos propostos por Kuhn, estamos vivendo o momento em que o conjunto de pressupostos compartilhados pelos cientistas de uma disciplina – um paradigma – não dá mais conta de explicar o número cada vez maior de resultados discrepantes. “Um novo modelo tem que emergir”, continuou Waters.
O norte-americano estava impressionado com a palestra que vira havia pouco do paleogeneticista Eske Willerslev, da Universidade de Copenhague. O dinamarquês antecipou um resultado que publicaria no mês seguinte na Nature: a análise do genoma de um menino que viveu na Sibéria há 24 mil anos – o mais antigo DNA humano já sequenciado.O menino tinha parentesco genético com índios americanos atuais, mas também com povos da Europa. Isso indica que as populações nativas da América não são só descendentes de povos vindos do leste da Ásia, como os dados genéticos indicavam até então, mas também de outro grupo que saiu da Europa.
Waters aposta que o paradigma que substituirá Clóvis terá contribuições importantes da biologia molecular. “Uma hora as evidências genéticas e as evidências arqueológicas que tiramos da terra vão convergir, e quando isso acontecer teremos uma nova história.” Na avaliação do americano, o roteiro dessa história não parece passar pela Serra da Capivara. Quando lhe perguntei se ele estava a par dos resultados da equipe franco-brasileira, ele respondeu que conhecia o material da Pedra Furada. “Os seixos parecem ter se lascado naturalmente e não têm a aparência de artefatos feitos por humanos. O sítio foi bem escavado, mas não acho que vá resistir ao escrutínio científico.”
Na exposição de objetos arqueológicos realizada em paralelo à conferência, as pontas de Clóvis eram os itens com maior destaque. Algumas vinham apresentadas sobre leito de feltro ou veludo. Emoldurada numa vitrine, estava uma peça escura de obsidiana com 25 centímetros de comprimento. Havia sido escavada no estado de Washington e era apresentada como a maior ponta acanalada já encontrada.
Estavam expostos também quinze artefatos de quartzo encontrados recentemente no Vale da Pedra Furada, em camadas com até 23 mil anos de idade. Tinham sido trazidas por Eric Boëda, convidado pela organização para fazer uma palestra. O francês circulou na sala de exposição durante a conferência, pronto a atender a dúvidas dos visitantes. Estava pouco à vontade naquele ambiente. Parecia-lhe que os artefatos em exposição estavam sendo julgados apenas por seu valor estético. “Isso aqui está com cara de concurso de beleza”, praguejou.
Os seixos da Pedra Furada de fato chamavam menos a atenção dos visitantes do que as abundantes pontas de projéteis. Talvez porque a forma não evocasse imediatamente a função. Como legítimos objetos sem memória, alguns artefatos trazidos por Boëda dificilmente seriam reconhecidos como ferramenta por um olho destreinado. Nos artefatos muito antigos, observou o francês, se prestarmos atenção nas lâminas, conseguiremos enxergar facas, garfos, colheres e outros objetos. Perguntei se ele identificava uma ferramenta só de bater o olho. “É como se visse uma caneta num prato de macarrão”, respondeu, olhando-me por cima dos óculos de armação oval. “Você reconhece imediatamente.”
A palestra de Boëda foi incluída numa sessão de “arqueologia pré-Clóvis”, que reuniu outros resultados controversos. Nela, apresentou resultados da retomada da missão franco-brasileira no Piauí. Evitou considerações de geopolítica científica e se ateve aos detalhes técnicos, mostrando os critérios usados para classificar os objetos escavados e determinar se eram ou não de origem humana. Falou num inglês com sotaque muito carregado, pelo qual se desculpou ao final.
A língua não era a única adversidade. Boëda enfrentava também o estigma do Boqueirão da Pedra Furada, o famigerado sítio dos artefatos de 50 mil anos, que joga um manto de dúvida sobre qualquer outra alegação que venha dali. Segundo ouvi de um participante da conferência, quando algum pesquisador vinha apresentar trabalhos feitos na Serra da Capivara, era recebido com ceticismo, independentemente do que dissesse. “A reação era a mesma: ‘Lá vêm aqueles malucos do Piauí de novo.’” O caráter isolado das descobertas também incomodava os críticos: se havia ocupação humana há tanto tempo no Nordeste brasileiro, por que os achados arqueológicos estão concentrados naquela região?
Quando assumiu a direção da equipe franco-brasileira, Boëda tentou guarnecer os flancos pelos quais poderia ser atacado. Privilegiou a pesquisa em novos sítios, como a Toca da Tira Peia e o Vale da Pedra Furada – já são sete sítios com ocupação antiga no Piauí, pelo seu cálculo. O grupo voltou a publicar em inglês, em revistas lidas pelos arqueólogos norte-americanos.
Boëda também cuidou de recrutar aliados estratégicos para montar uma equipe interdisciplinar. De Barcelona, trouxe Ignacio Clemente Conte, especialista na análise dos vestígios microscópicos deixados nas pedras lascadas. Sua análise confirmou que alguns artefatos foram usados para cortar carne e couro, trabalhar madeira, osso e outros materiais.
Enquanto tomava chope e comia hambúrguer ao final de um dia de congresso, Boëda contou que recrutou também o geólogo chileno Mario Pino, que havia trabalhado nas escavações de Monte Verde, para analisar a sedimentação dos novos sítios no Piauí. “Pino convenceu Tom Dillehay de que o material de fato tem origem humana”, contou.
Na manhã seguinte, Dillehay admitiu, num tom mais ponderado, que havia mudado de atitude em relação ao material do Piauí. “Olhando de novo para os sítios de Niède Guidon e do Eric, estou ficando mais convencido de que havia pessoas ali há 20 ou 25 mil anos”, disse ele. “A acumulação de dados através do tempo é bastante consistente.” Mas o americano ainda tem reticências com outros objetos de origem supostamente antrópica encontrados nas escavações. “Mais que os líticos, que são um foco importante da equipe franco-brasileira, o que me preocupa é a falta de detalhes sobre outras assinaturas da atividade humana, como fogueiras ou arranjos de pedras. Já disse isso a Eric e seus colegas.” Como não há restos de pinturas rupestres no material arqueológico escavado pelo grupo, elas não servem para atestar a presença humana antiga naqueles sítios.
Dillehay é professor da Universidade Vanderbilt, no Tennessee. Alto e de bigode ralo, num faroeste ele faria o papel do caubói insolente. Em Santa Fé, apresentou resultados das escavações que vem fazendo no sítio de Huaca Prieta, no litoral norte do Peru. Ali, encontrou ferramentas que chamam a atenção pela simplicidade da técnica de transformação – Dillehay assinalou a semelhança com os artefatos encontrados em Monte Verde, no Piauí e no Mato Grosso. As datações apontam a presença humana em Huaca Prieta por volta de 14 mil anos atrás.
O norte-americano Stuart Fiedel, general da brigada de Clóvis que havia criticado os resultados do grupo franco-brasileiro na reportagem da Science News, foi o último a falar no segundo dia da Odisseia Paleoamericana. Fiedel tem barba grisalha e calvície em progresso, e trabalha como arqueólogo numa empresa de consultoria ambiental. Está entre os 10% que rejeitam Monte Verde. Um colega o definiu como “um conservador puro – talvez o último –, que descarta completamente a possibilidade de Clóvis não corresponder ao primeiro povoamento americano”.
Fiedel criticou o que julga serem indícios precários de uma ocupação anterior a Clóvis, como fezes fossilizadas e pegadas de origem duvidosa. Notou que era o mesmo tipo de provas apresentadas por quem queria demonstrar a existência do mítico Pé Grande.
Contestou detalhadamente as pegadas de Monte Verde. As marcas encontradas, segundo ele, só poderiam ter sido feitas por uma criança de 1 ano, mas não têm características compatíveis com pés dessa idade. Fiedel concluiu sua fala refutando veementemente essas evidências. Alguém da plateia gritou Yeah!, dando ao encontro de cientistas certo ar de arena esportiva.
Ao final da apresentação, perguntei a Fiedel se os resultados recentes nos novos sítios do Piauí não lhe pareciam mais robustos que os do passado. Ele retomou o argumento que já havia apresentado antes: “Os objetos podem ter sido feitos por macacos-prego que fazem ferramentas de pedra e vivem exatamente naquela área”, disse. Ao fim da entrevista, uma mulher que havia ficado até o final entregou-lhe um par de sapatos de bebê e pediu-lhe que autografasse a sola.
Na visão de Thomas Kuhn, um novo paradigma se impõe gradualmente à medida que vai sendo adotado por cada vez mais cientistas de um campo. Mas o paradigma anterior mantém uma minoria residual de adeptos e não chega a desaparecer totalmente. Em última instância, constatou Kuhn, um paradigma só é superado de vez quando morre o último de seus praticantes.
Encerrando a fala em Santa Fé, Tom Dillehay, o descobridor de Monte Verde e algoz de Clóvis, pediu licença para uma digressão. Defendeu a descolonização do conhecimento científico e recomendou que seus colegas abrissem a cabeça para novas possibilidades. Cobrou dos críticos que dessem lastro às suas observações e projetou na tela a declaração que o colega Stuart Fiedel dera sobre o estudo franco-brasileiro. “Que tipo de macaco produz um sítio arqueológico?”, questionou. “Espero que os jovens estudiosos do povoamento antigo não precisem ouvir o mesmo tipo de bobajada. Eu saúdo a nova geração de pesquisadores.”
07 de janeiro de 2013
BERNARDO ESTEVES
[1]O resultado das datações
por carbono-14 é um número que precisa ser ajustado para corresponder à idade
real do material. As datas mencionadas no texto já aparecem corrigidas.
Ótimo texto!
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