O programa Canal Livre, da Rede Bandeirantes, de domingo passado apresentou um dos personagens mais interessantes da História do Brasil de que tomei conhecimento ultimamente.
Luis Gama, hoje quase esquecido como quase todos os personagens mais interessantes da História do Brasil, era negro, foi escravo, autodidata, jornalista e poeta e teve um papel brilhante no Movimento Abolicionista, outra história que é muito mal contada como quase toda a história do Brasil que se conta nas escolas deste país.
Esse momento é, seguramente, um dos mais brilhantes da nacionalidade. Foi um movimento de raiz, vindo de baixo para cima e, por essa qualidade quase único em nossa trajetória como Nação, bem ao contrário do que diz a versão mais conhecida de que a libertação dos escravos foi uma benesse outorgada magnanimamente pela Princesa Isabel.
O Movimento Abolicionista foi um subproduto da Guerra do Paraguai que, pela primeira vez em nossa história, mobilizou brasileiros de todos os cantos de um país que, naquele tempo, mal conhecia a si mesmo e não se pensava como um país, e que envolveu todas as raças e camadas sociais espargidas pelo seu vasto território.
Foi a primeira vez na História do Brasil que brancos, negros e mestiços de diferentes classes sociais viram-se postos, ombro a ombro, na perseguição de um objetivo comum.
E o efeito que isso produziu foi em tudo semelhante ao produzido nos Estados Unidos do norte pela Guerra da Secessão, não apenas em termos de consolidação de um sentido de nacionalidade mas, sobretudo, pela experiência da convivência concreta com a diversidade em situações extremas onde todos dependem de todos e peles de todas as cores e tonalidades rompem-se a toda hora para mostrar o quanto somos iguais por dentro.
A convivência com a diversidade, num mundo em que uns viviam na Casa Grande e outros na senzala e em que a todos, do palácio real à sarjeta, eram impostas as mesmas crenças e as mesmas "verdades" e vedado qualquer desvio dessa linha estreita "por pensamentos, palavras ou obras", é a matéria prima da ideia de tolerância que se consubstancia institucionalmente na ideia de democracia.
Foi exatamente assim e foi exatamente por isso que ela começou a nascer na Inglaterra de Henrique VIII quando ele baniu a intolerância católica e abriu o país a todas as crenças perseguidas da Europa; foi exatamente assim e foi exatamente por isso que ela saltou das teorias dos fundadores para o real governo do povo, pelo povo e para o povo que só se estabeleceu com as reformas da Progressive Era que começaram a se esboçar a partir do final da Guerra de Secessão.
Assim também foi praticamente aí que a ideia de Nação saiu dos textos dos teóricos e dos idealistas e se materializou nas ruas e nas selvas da vastidão brasileira.
Luis Gama, que mais de uma vez usou as páginas do jornal A Província de S. Paulo, precursor de O Estado de S. Paulo, como sua tribuna, ao lado de Julio Mesquita, filho de pai analfabeto ha pouco chegado ao Brasil quase tão pobre quanto aquele ex-escravo, e outros brasileiros que, como esses dois, se tinham "feito" sozinhos longe dos latifúndios escravocratas e das benesses do imperador, representando a esmagadora maioria dos brasileiros de sua época e os meios dos quais tiravam a sua subsistência, ao contrário do quadro falso pintado pela historiografia marxista da dicotomia senhor-escravo que ainda é a única vendida em nossas escolas, foi uma figura de proa desse momento brilhante da consolidação da nacionalidade brasileira numa campanha que mobilizou o país inteiro. (Leia mais sobre esse Brasil dos empreendedores neste link).
A entrevistada do Canal Livre, Ligia Fonseca Pereira, autora de Com a Palavra Luis Gama (), uma coletânea de seus textos sem interferências da curadora "pois que ninguém pode explicar melhor o que ele foi do que ele próprio", como ela ressaltou sabiamente, mostrou-se mais uma da grei dos intelectuais sérios que este país, apesar de tudo, tem produzido, especialmente no campo da pesquisa histórica onde se vem colhendo uma safra cada vez melhor de produtos.
É essa revisão da verdadeira História do Brasil que, pouco a pouco, vai desintoxicar o inconsciente coletivo nacional fazendo o país passar pela necessária seção de psicanálise que fará com que a nacionalidade entenda, finalmente, como foi que se tornou aquilo que é, passo sem o qual nunca conseguirá tomar as rédeas do seu próprio destino.
É este o processo que, no final, vai nos redimir do estado patológico e da crise de identidade em que nos precipitou um século inteiro da empulhação interpretativa pseudo científica vendida em nossas escolas à guisa de História do Brasil, mas que não passa de manipulação ideológica barata, esta mesma que saltando das universidades para as ruas, chegou ao paroxismo com a vulgata lulista que já não se contenta com manipular apenas os fatos do passado, sente-se à vontade para fazer isso também com os do presente bem diante dos olhos de quem acabou de vive-los.
Luis Gama, como a nata dos abolicionistas de São Paulo e de outros estados brasileiros (as revoluções pernambucanas são fruto do mesmo fenômeno) pertenceu à Loja Maçônica América, fundada por brasileiros que estiveram nos Estados Unidos, frequentaram a mesma loja maçônica de George Washington e outros dos grandes fundadores da democracia americana, e se encantaram com as promessas encerradas no movimento revolucionário que nascia ali com o propósito de fundar uma sociedade de iguais onde o esforço individual e o merecimento substituiriam a cumplicidade com o último criminoso a conquistar a coroa pela força que tinha prevalecido nos últimos dois milênios e na qual continuamos chafurdando até hoje, como única fonte de legitimação da conquista de poder e de dinheiro.
A Loja Maçônica América expressava desde o nome com que foi batizada a esperança do melhor material humano que o Brasil tinha produzido até então, de chegar um dia ao mesmo sucesso a que já tinham chegado os revolucionários do norte.
Como Ligia Fonseca explicou de forma brilhante, Luis Gama e os outros abolicionistas que se congregavam nas lojas maçônicas brasileiras ligadas às suas congêneres espalhadas por todo o mundo de então eram “homens de rede” no sentido moderno da palavra, pois que trocavam ideias e conspiravam através do primeiro protótipo de “rede mundial” criada com o propósito explícito de facilitar a livre troca de ideias e informações que a humanidade constituiu: exatamente as lojas maçônicas.
Sua admiração pela revolução americana era tanta que foi de Luis Gama que saiu a sugestão de batizar o país que surgiria da nossa revolução republicana de Republica dos Estados Unidos do Brasil, nome que o Brasil de fato adotou dos albores da República até o início do regime militar.
Foi a esta altura da entrevista, porém, que um dos jornalistas presentes fez a seguinte intervenção:
“É curioso que um negro como Luis Gama não tenha reagido ao (ou “percebido o”, não me lembro quais foram as palavras exatas) fundamento racista que marcava e seguiu marcando a sociedade norte-americana”.
Lígia Fonseca Pereira, negra ela também, ficou tão desconcertada e perplexa quanto eu ao ouvi-la.
Superadas a surpresa e a dúvida ela gentilmente tartamudeou algumas palavras hesitantes enquanto na minha cabeça bombava a pergunta: "E precisava um negro ex-escravo no último país ainda escravocrata das Américas, olhar para os Estados Unidos para encontrar racismo?!!! Seria necessário esse turismo intelectual para experimentá-lo ainda hoje?"
Eis aí nu, pelado, com a mão no bolso o drama brasileiro!
O jornalista autor desse comentário -- ninguém me disse, eu mesmo sou testemunha -- é das pessoas intelectualmente mais íntegras e cultivadas que conheci na profissão.
O que teria sido aquilo, então?
Não é possível viver no ambiente contaminado do debate intelectual brasileiro, do primeiro ano de escola ao último ano de vida, impunemente, é a resposta. Esse antiamericanismo resiliente, quase orgânico, subliminar, involuntário até, como suspeito que tenha sido o caso desta vez, é uma das manifestações da força que isto tem.
A própria Lígia Fonseca Pereira, cabe registrar, viveu os últimos anos de sua atividade acadêmica no exterior e foi a partir de lá, respirando ares mais livres dos eflúvios do Segundo Milênio que ainda predominam por aqui, que ela encontrou a paz necessária para fazer a sua pesquisa.
Luis Gama – foi o que ela passou o programa inteiro explicando – viu nos Estados Unidos aquilo para o que a imprensa brasileira insiste em fechar os olhos até hoje: a superioridade moral da utopia e, mais especialmente, o conjunto genial de meios para realizá-la desenhados pelo que de melhor a humanidade produziu no seu melhor momento, que foi o Iluminismo, pelos quais a metade boa daquele país lutou até a morte contra a metade ruim, ombro a ombro com os escravos desta – e cinco milhões de pessoas perderam a vida nessa luta fratricida! – coisa que a metade boa da população brasileira não consegue encontrar motivos suficientes para fazer exatamente porque tem-lhe sido sonegada uma referência pela qual valha a pena lutar.
É exatamente isto que continua pendurado no ar nesta eleição.
É disso que estão à procura os 70% de eleitores que "querem mudanças profundas" mas não encontram quem as formule e proponha. Era exatamente isto que perambulava pelas ruas de todo o país às cegas em junho de 2013: a ausência de uma referência decente pela qual valha a pena lutar que, entretanto, está onde sempre esteve mas a inteligentsia e a imprensa brasileiras ainda se recusam a por onde nós estamos.
30 de maio de 2014
vespeir