Reinaldo Azevedo fez a mesma opção de Maquiavel e preferiu prostituir a verdade a se ver ao lado dos feios, sujos e malvados, tornando-se a figura patética que conhecemos hoje: um sujeito prostrado perante as convenções sociais que julga mais nobres, eternamente empenhado a demonstrar o quanto é limpinho e cheiroso.
Maquiavel, aquela alma atormentada e mal formada que muitos analistas políticos tomam como modelo, deixou em seus registros o relato de um sonho que o perturbou no fim de sua vida.
Segundo seu relato, ele viu em seu sonho uma turba de pobres andrajosos, macilentos e esquálidos que o deixou curioso para saber quem eram as pessoas que a compunham; ao expressar sua curiosidade à turba, ouviu que estava diante dos abençoados acerca de quem as Escrituras dizem "bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus".
Obtida a resposta, viu os maltrapilhos desaparecerem e darem lugar a um grupo de nobres, ricamente trajados, e que discutiam política nos termos mais polidos conhecidos à época; tomado mais uma vez pela curiosidade, fez saber a sua dúvida e como resposta ouviu que estava diante dos condenados ao inferno acerca de quem as Escrituras dizem "a sabedoria deste mundo é inimiga de Deus".
Desaparecido este segundo grupo, uma voz perguntou a ele a qual dos grupos ele desejaria pertencer e, sem rodeio, Maquiavel respondeu que preferia ir para o inferno com os nobres a ser mandado para os céus com o miserável grupo que havia lhe surgido primeiro.
A compreensão do significado desse sonho não exige nenhum conhecimento psicológico aprofundado e pode ser alcançada por qualquer sujeito feio, sujo e malvado como eu ou qualquer outro aluno do professor Olavo de Carvalho.
Trata-se claramente da exposição da mentalidade e da alma de Maquiavel, que aqui serve como arquétipo de todos aqueles que se revestem de um verniz de polidez e se apoiam em uma posição existencial artificiosa e falsa, baseada inteiramente no respeito humano e nas aparências externas; refiro-me àquele sujeito cuja sensibilidade, amortecida para a realidade, responde apenas e tão somente aos apelos estéticos de seu grupo de referência, pelo qual está disposto a tudo ceder, tudo prostituir, tudo sacrificar – até mesmo sua alma e seu amor pela verdade.
Maquiavel era um carreirista seduzido pelos símbolos externos da sabedoria e da nobreza, disposto a submeter sua alma aos tormentos do inferno em troca de uma boa imagem perante a opinião pública de sua época e, por isso mesmo, inclinado a nivelar por baixo todo sentimento moral e estético, tomando como normais e indiferentes atitudes as mais desprezíveis desde que estas fossem ocultadas pela dissimulação e pela atitude de superioridade imperturbável que revestiam sua personalidade perante os nobres por quem ansiava ser aceito – como diz Santo Agostinho, “todos os vícios se apegam ao mal, para que este se realize; apenas a soberba se apega ao bem, para que este pereça”.
Maquiavel aqui nada mais é do que um arquétipo, mas não deixa de ser significativo que o florentino seja adotado, pelas toscas almas contemporâneas que ele representa, como um símbolo do apreço pela realidade.
Esse é o caso de Reinaldo Azevedo, um desses sujeitos que, inebriado por sua capacidade de escrever com alguma correção gramatical e embevecido com um conjunto de ideais, passa a atribuir a si próprio as perfeições que enxerga em seus ideais, a ponto de rotular qualquer um que diga algo contra sua pessoa de “inimigos da democracia” e “autoritários” sem dar nenhum sinal de enxergar o ridículo de tal atitude.
Dono de uma consciência infinitamente mais estreita do que a de Maquiavel, que afinal era algo mais do que um blogueiro, Reinaldo sintetiza em sua personalidade a condição ainda mais miserável daqueles que, após perderem de vista os princípios universais e se fecharem para a realidade, emaranham-se numa busca obsessiva pela construção de uma imagem positiva que possa refletir artificialmente os valores estéticos que cultuam.
Condição que é agravada, no caso do blogueiro tucano, pelo seu ofício, pois, ao se dedicar demasiada e exclusivamente à busca pelo conhecimento de informações e acontecimentos imediatos, tem sua alma invadida pelas miudezas do noticiário, eliminando todo o espaço que poderia ser reservado a alimentos filosóficos e espirituais mais substanciais e nutritivos.
Talvez seja essa a melhor explicação para a estreiteza de visão do blogueiro, que, embora enxergue um emaranhado de acontecimentos cotidianos difusos e rasteiros, é incapaz de se erguer acima das aparências mais superficiais e, indo além da síntese confusa que formou em sua mente, enxergar os movimentos da ação humana na esfera cultural, muito mais lentos e sutis e por isso mesmo muito mais frutíferos e duradouros.
Refiro-me evidentemente à incapacidade, demonstrada por Reinaldo, de traçar as origens intelectuais de uma ação política demonstrada pela sugestão de que a influência de um filósofo deva ser medida pela “quantidade de pessoas que o reconhecem como inspiração”.
É com essa mentalidade de quem tomaria como excêntrica a tese de Northrop Frye (de que a Bíblia está presente em todos os enredos literários ocidentais desenvolvidos após a ascensão da cristandade), ou de quem riria da afirmação de Otto Maria Carpeaux sobre a influência inescapável de Benedetto Croce sobre toda a cultura italiana, que Reinaldo rejeita a atividade pedagógica e filosófica de Olavo de Carvalho como raiz intelectual da ascensão do anti-petismo dentro do qual nasceram movimentos como o MBL e o VPR – na cabeça do blogueiro tucano é muito mais plausível explicar tudo o que o Brasil vive como resultado mágico e encantador do discurso de um menino que sequer havia nascido quando já estavam concluídos os estudos que dariam unidade ao discurso que mais tarde ele viria a macaquear.
Estamos diante de um sujeito que provavelmente riria se ouvisse que todos aqueles que hoje defendem a separação dos poderes devem algo a Montesquieu, aos artífices da república romana e a Aristóteles. Mas isso não deve causar espanto ao leitor pois a ausência de discernimento é próprio àqueles que substituem o amor à verdade pelo amor às aparências e rejeitam a vida do espírito para perseguir a sabedoria deste mundo.
Se aceitasse a companhia dos feios e sujos, Reinaldo Azevedo teria extraído do monumental Jardim das Aflições algo mais do que a capacidade de ostentar independência intelectual. Ele teria apreendido a técnica filosófica utilizada para demonstrar que a paternidade do espírito petista – o qual ele pensa combater e do qual a cada dia dá sinais mais claros de estar impregnado – poderia ser traçada até Epicuro; o que, de quebra, o livraria da miséria de chamar de malvados todos os que, como Olavo e Bolsonaro, não se deixam pautar pelos cânones da mídia chique que o Reinaldo tem por regra de conduta.
Como, no entanto, fez a mesma opção de Maquiavel e preferiu prostituir a verdade a se ver ao lado dos feios, sujos e malvados, Reinaldo se tornou essa figura patética que conhecemos hoje: um sujeito prostrado perante as convenções sociais que julga mais nobres, eternamente empenhado a demonstrar o quanto é limpinho e cheiroso; um admirável bom moço imbuído do mais espantoso fetiche pelos símbolos externos e formais da democracia, da tolerância e da moderação, coisas que como ex-trotskista ele jamais tenha de fato conhecido.
É essa opção de Reinaldo que explica seu desprezo pela realidade da vida popular e por todos aqueles que ousem falar em seu nome na esfera pública tal como o Olavo, o Bolsonaro ou mesmo um grupo como Revoltados Online, que, devido à sua expressão mais indiferente às convenções da gente bela, limpa e boazinha, é sempre excluído da narrativa do blogueiro da Veja sobre as manifestações anti-petistas realizadas de 2014 para cá.
Mesmo sendo católico e, diz ele, conservador, Reinaldo prefere a companhia do beautiful people, sempre adornando sua religião ou seu posicionamento político de modo a torná-los mais aceitáveis para a elite falante – "sou católico, mas, vejam só, sou favorável ao casamento gay, contrário ao celibato e ao que mais for necessário para você gostar de mim", "também sou conservador, mas não se assuste, sou democrático, voto no PSDB e no PPS, falo mal do Sérgio Moro e defendo o Odebrecht".
Tal como Maquiavel, Reinaldo rejeitou a companhia dos feios, sujos e malvados para se integrar à elite falante que odeia tudo o que o povo ama, que despreza tudo o que o povo venera, que reduz a objeto de chacota todos os que ousam dar ao povo alguma voz, na esperança de conseguir com isso a ilusão de relevância e aceitação.
Mas àqueles que fazem essa opção e diante dela sacrificam o amor pela verdade está reservada a revelação de que até o pouco que possuem lhes será tirado, e, no caso do blogueiro tucano, não será diferente: seu nome terá sido há muito esquecido quando as próximas gerações estiverem ensinando aos seus filhos aspectos que, consciente ou inconscientemente, lhes serão legados pela obra de Olavo de Carvalho.
Diz-se que Deus ocultou dos sábios e entendidos coisas que foram reveladas apenas aos pequeninos – aos feios, aos sujos e aos que são tidos como malvados nesse mundo de violência simbólica e pensamentos politicamente corretos. Talvez isso explique por que aos que fizeram a escolha de Maquiavel nada tenha restado além de uma popularidade residual, informações jornalísticas cotidianas e algumas referências ornamentais a produções menores do cinema das quais possam se socorrer sempre que forem incapazes de reconhecer que estão diante de uma tirada humorística ou de uma piadinha de internet.
Sugere o blogueiro que os alunos do Olavo confundem citações com grama. Poderia ser pior: eles poderiam confundir referências cinematográficas com cultura e tomar como literais as palavras de alguém que está a debochar de suas caras.
Bem-aventurados os feios, sujos e malvados, pois ridendo castigat stultorum.
19 de maio de 2016
Felipe G. Martins, in mídia sem máscara