Sou leitor dos artigos assinados pelo Senador José Serra. Travei conhecimento com S. Exa. em 1982, durante a campanha de Franco Montoro ao governo de São Paulo. Na composição da equipe de secretários, Montoro convidou José Serra para chefiar a Secretaria do Planejamento, e me chamou para assumir a Secretaria do Trabalho. Estivemos próximos durante dois anos, pois em fevereiro de 1985 fui convocado pelo presidente Tancredo Neves para ser o Ministro do Trabalho da Nova República, posto no qual permaneci até setembro de 1988.
José Serra é exemplo de inequívoca vocação política. Dedica-se à vida pública 365 dias por ano, sem emitir sinais de desânimo ou cansaço. Foi deputado constituinte em 1986, prefeito, governador de São Paulo, várias vezes ministro de Estado. Não se elegeu presidente da República, mas deverá insistir na candidatura em 2018.
Li o texto de 5.800 caracteres publicado pelo Senador Serra na página A2 da edição de 23 deste mês, no jornal “O Estado de S. Paulo”. Leitura difícil, que cobra concentração, pois trata do sistema eleitoral vigente no Brasil para compará-lo com outros adotados em democracias avançadas, como faz questão de ressaltar o ilustre parlamentar do PSDB. Sugere “a adoção do voto distrital misto nos moldes da Alemanha, em que se preserva a sistemática proporcional”, para acabar com o descolamento entre os eleitores e os eleitos provocado pelo sistema adotado no País, como acredita S. Exa.
O artigo me soa como uma espécie de ato de contrição. Membro atuante da Assembléia Nacional Constituinte (1986/1988), José Serra contribuiu com inteligência e dinamismo para construção dos capítulos IV e V da Constituição, que tratam dos Direitos Políticos e dos Partidos Políticos. A leviana facilidade com que são fundadas legendas partidárias se deve ao art. 17, cuja parte inicial diz: “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados o regime democrático, o pluripartidarismo,os direitos fundamentais da pessoa humana....”. O parágrafo 3º do dispositivo consagra o imoral direito “a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e a televisão”, mantidos com dinheiro dos contribuintes.
Ao eleger o modelo alemão, S. Exa. deveria ter em conta as profundas diferenças existentes entre Brasil e Alemanha. Oliveira Vianna, na clássica obra “Instituições Políticas Brasileiras” adverte para o fato de os nossos legisladores e constitucionalistas julgarem ser possível, por uma lei, uma Constituição, ou um golpe, abolir as nossas realidades sociais, para decretar que os brasileiros passem, por exemplo, a praticar o parlamentarismo inglês, o regime federativo americano, o comunismo da extinta União Soviética.
A imposição do modelo partidário-eleitoral alemão exigiria que 200 milhões de brasileiros de súbito adquirissem, por mera alteração do texto constitucional e da legislação, os hábitos, a racionalidade, a cultura, a educação, o idioma, a determinação, os partidos, os salários, o Produto Interno Bruto da Alemanha. Em passe de mágica, a Praça dos Três Poderes resgataria o Brasil do terceiro mundo para colocá-lo ao lado dos países desenvolvidos.
Em parágrafo quase oculto no final do artigo, o Senador Serra propõe a eliminação do caciquismo “por meio de listas partidárias que, a exemplo do que ocorre no sistema atual, reflitam as preferências dos eleitores – e não das direções”.
Quem militou no velho MDB e no antigo PMDB (nada semelhante ao atual) sabe que o sistema de listas irá acentuar a ditadura dos caciques, dos donos dos partidos, dos presidentes escolhidos pelas cúpulas, daqueles que manobram diretórios estaduais, municipais e distritais. Quanto custará um bom lugar na lista?
O atual Congresso Nacional carece de autoridade moral para empreender reformas políticas e partidárias. Está desacreditado. Com manobras urdidas na vigésima quinta hora luta pela sobrevivência de deputados e senadores desprestigiados, atingidos pelas delações da operação Lava Jato.
O Senador José Serra tem extensa folha de bons serviços, iniciada como lider estudantil como presidente da União Nacional dos Estudantes. Como seu admirador e eleitor tomo a liberdade de pedir que, por ora, dedique-se mais ao combate à corrupção, resistente vírus HIV que tomou conta do organismo público.
Como disse alguém, se a legislação fosse dotada de poderes sobrenaturais, há muito tempo teriam sido abolidos a pobreza, o desemprego, a corrupção, o crime. Na política brasileira estamos perto do estilo mafioso da velha Itália, e longe do sistema racional alemão.
26 de março de 2017
Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.