“Enfrentaremos essa ameaça agora, com nosso Exército, Força Aérea, Marinha, Guarda Costeira e Fuzileiros Navais, para que não tenhamos que enfrentá-la depois, com exércitos de bombeiros, polícia e médicos nas ruas de nossas cidades” (George W. Bush)
Em 12 de setembro de 2002 o presidente George W. Bush, em discurso pronunciado na Organização das Nações Unidas, declarou que a ONU precisava resolver o problema de Saddam ou ele o faria. Foi o prenúncio da guerra ao Iraque, iniciada seis meses depois, em 19 de março de 2003, muito embora os preparativos para essa guerra tenham levado 16 meses, conforme nos dá conta o livro “Plano de Ataque”, do jornalista Bob Woodward, lançado no Brasil em 2004 pela editora Globo.
“O livro é uma narrativa magistral dos preparativos da equipe de Bush para a guerra contra o Iraque” (Financial Times, de Londres). São dele os trechos abaixo.
Dick Cheney, vice-presidente, que havia sido Secretário de Defesa durante a administração de George Bush pai, abrigava uma profunda sensação de um negócio inacabado quanto ao Iraque e, mesmo antes da posse, passou a mobilizar o então Secretário de Defesa de Clinton a uma “séria discussão sobre o Iraque e diferentes opções”. Cheney exercia grande influência sobre Bush, que o escolheu como companheiro de chapa com estas palavras: “Se os tempos forem bons vou precisar de seus conselhos, mas isso não será nada perto do que vou precisar se os tempos forem ruins”. Nesse sentido, com pleno conhecimento e o encorajamento do presidente, Cheney tornou-se o autonomeado analista dos piores cenários possíveis.
Ele sentia que deveriam estar preparados para pensar o impensável.
Depois do ataque de 11 de setembro, ficou claro para Cheney que a ameaça do terrorismo havia mudado e se tornado enorme. Assim, duas coisas teriam que mudar. Primeiro, o padrão da prova teria de ser reduzido – a arma fumegante, prova irrefutável, não teria de ser exigida para que os EUA agissem para se defender. Segundo, não bastava apenas a defesa. Era preciso um ataque.
O padrinho intelectual e mais ferrenho defensor da derrubada de Saddam era Paul Wolfowitz, Secretário-Adjunto de Defesa, Donald Rumsfeld, Secretário de Defesa, como ativista linha-dura e desde o primeiro momento favorável à deposição de Saddam, e Collin Powell, do Departamento de Estado, um negociador moderado, refletiam as divisões e tensões no gabinete de Bush quanto ao assunto.
Bush, por sua vez, achava que Clinton havia sido avesso ao risco, usando mísseis de longo alcance para atacar Bin Laden, no Afeganistão em 1998, depois da Al-Qaeda ter bombardeado duas embaixadas norte-americanas na África Oriental, talvez ainda assombrado pela missão desastrosa na Somália, em 1993, quando 18 soldados norte-americanos foram mortos em um combate urbano.
Quatro meses após o 11 de setembro, em uma entrevista à imprensa, Rumsfeld disse: “O raciocínio-chave é que não se tem defesa contra o terrorismo. Você não pode se defender em todos os lugares e em todos os momentos contra todas as técnicas. Simplesmente não dá para fazer isso porque eles continuam a mudar as técnicas e os momentos. E você tem que aceitar que eles são assim, e isso significa que você precisa se antecipar a eles”. Rumsfeld já considerava um futuro em que os EUA estivessem prontos para atacar primeiro.
A missão numa guerra contra o Iraque era clara: mudar o regime, derrubar Saddam, eliminar as ameaças a ele associadas – as armas de destruição em massa, os laços terroristas, o perigo que ele representava para os vizinhos, especialmente para Israel -. E normalmente se levava dois e até três anos para se elaborar um plano de guerra. Bush teria perguntado a George Tenet, diretor da CIA desde o governo Clinton: “Poderíamos fazer isso (derrubar Saddam) por meios encobertos?”. Resposta de Tenet: “Não”. E deixou claro que para recrutar fontes no Iraque teriam de dizer que os EUA falavam sério e estavam chegando com seu Exército. Em suma: não havia modo de pegar Saddam, a menos que houvesse uma operação militar.
Tommy Franks, subordinado a Rumsfeld como chefe do Comando Central (CENTCOM), que abrangia o Oriente Médio, o Centro-Sul da Ásia e o extremo nordeste da África – conhecido como o chifre da África -, incorporando as conclusões da CIA sobre a impossibilidade prática de uma ação secreta para depor Saddam, disse que o Exército americano teria que ser envolvido caso quisessem tirar Saddam do poder e que as forças necessárias chegariam a 245 mil soldados. Tommy Franks foi o responsável pela formulação do Plano de Ataque.
Em dezembro de 2001, quando do pronunciamento do presidente no discurso Estado da União, perante uma sessão conjunta do Congresso e transmitido em cadeia nacional de televisão, cerca de 52 milhões de americanos viram e ouviram uma referência ao “eixo do mal” – referência de Bush ao Iraque, Irã e Coréia do Norte -: “Estados como esses e seus aliados terroristas, constituem um eixo do mal. Não esperarei pelos acontecimentos enquanto os perigos se acumulam”. A mídia logo se aferrou à expressão “eixo do mal”, um conceito novo, sujeito a interpretações.
Em 1 de junho de 2002, num discurso de formatura aos cadetes na Academia Militar de West Point, o presidente Bush foi claro: “A guerra ao terrorismo não será ganha na defensiva. Precisamos levar a batalha ao inimigo, destruir seus planos e confrontar as piores ameaças antes que elas surjam”.
Collin Powell, do Departamento de Estado, era de opinião de que mesmo se alguém achasse que a guerra era a única solução, não poderiam ir à guerra sem primeiro tentar uma ação diplomática. Esse era o primeiro passo, absolutamente necessário. Sem ele, ninguém ficaria com os EUA. Nem os aliados europeus e nem o Oriente Médio. Dick Cheney, contrário à via diplomática, que suscitaria um processo interminável de debates, compromissos, demoras, hesitações, coçar de cabeças, aconselhou o presidente a pronunciar um discurso na ONU: “Vá lá dizer a eles: não se trata de nós. Trata-se de vocês. Vocês não são importantes”. “As Nações Unidas corriam o risco de se tornar irrelevantes e uma piada”, completou. Todos os secretários concordaram em que o presidente falasse sobre o Iraque nas Nações Unidas. Em suma, Bush iria dizer à ONU que resolvessem o problema Saddam pois, do contrário, os EUA o fariam.
No pódio do plenário da Assembléia Geral, em 12 de setembro de 2002, Bush declarou: “Meu país trabalhará com o Conselho de Segurança das Nações Unidas para enfrentar nosso desafio comum (...) Nós trabalharemos com o Conselho de Segurança das Nações Unidas para as Resoluções necessárias”.
Bush acreditava que a ameaça militar era uma condição necessária para tornar a diplomacia possível e que diante da evidência clara do perigo “não podemos esperar pela prova final, a definitiva, que poderia vir na forma de uma nuvem com formato de cogumelo”. Os moderados gostaram porque o presidente estava buscando o apoio internacional e das Nações Unidas. Os de linha dura gostaram porque ele manifestava firmeza. Essa era a versão Rice (Condoleezza Rice, Secretária de Estado) de diplomacia coercitiva.
Entrementes, Cheney dava uma nova versão à definição da guerra ao terrorismo: “Agora estamos definindo um Estado terrorista como os Estados que poderiam dispor da capacidade de fornecer armas de destruição em massa, mesmo que não estejam engajados em atividades terroristas ou fornecendo esconderijo”.
Observe-se que as Estimativas Nacionais de Inteligência da CIA nunca declararam categoricamente acreditar que Saddam possuísse armas de destruição em massa. Além do que, uma Estimativa Nacional de Inteligência é apenas isso, uma Estimativa. Em certos casos as Estimativas parecem um boletim meteorológico: “existe a possibilidade de ...”, além dos verbos no futuro do pretérito. Ainda assim, em 6 de fevereiro de 2002, perante uma Comissão no Congresso, Tenet disse que “o Iraque continua a construir e ampliar uma infra-estrutura capaz de produzir armas de destruição em massa”, o que é muito diferente de possuir.
A verdade é que a CIA julgava ter bons motivos para crer que Saddam possuía armas de destruição em massa, mas não tinha amostras disponíveis de antraz nem de armas químicas, caso outros exigissem uma prova mais direta. Mas todo o mundo sabia que Saddam utilizara armas de destruição em massa na guerra Irã-Iraque. Isso era uma prova de que ele as tinha.
Em 10 de outubro de 2002, a Câmara dos Representantes aprovou uma Resolução autorizando o presidente a usar as Forças Armadas norte-americanas no Iraque, “conforme ele julgar necessário e apropriado”. Essa votação foi por 296 a 133 votos, 46 a mais do que Bush pai obtivera em 1991. E no dia 11 de outubro, a votação no Senado em apoio à Resolução foi de 77 a 23.
O senador John Kerry, democrata de Massachusetts, que logo se candidataria a presidente posicionando-se contra a guerra, declarou, em um discurso no plenário do Senado, que votaria na Resolução para o uso da força para desarmar Saddam porque “um arsenal mortífero de armas de destruição em massa em suas mãos é uma ameaça, e uma ameaça séria, à nossa segurança”.
Após o discurso de Bush nas Nações Unidas em 11 de setembro, as negociações para a redação de uma Resolução foram tão tensas e rígidas que chegaram ao desacordo final ao uso de uma simples palavra. Powell e o Ministro das Relações Exteriores da França, Dominique de Villepin – um poeta diplomata que abrigava os mais fortes sentimentos contra a guerra – discutiram durante cinco dias.
A posição francesa era de que uma declaração falsa “e” um fracasso total em cooperar poderiam constituir uma infração material de Saddam. O “e” significava que Saddam teria que fracassar em duas provas. A redação de Powell dizia que uma declaração falsa “ou” um fracasso geral em cooperar poderiam constituir uma infração material. Uma “infração material” era a senha para a declaração de guerra.
Finalmente, no dia 8 de novembro de 2002, a Resolução 1441 do Conselho de Segurança da ONU entrou em votação pelos 15 representantes sentados ao redor da dramática mesa redonda. A resolução dizia que, caso Saddam continuasse a violar suas obrigações de desarmamento, enfrentaria “sérias conseqüências”, expressão de autoria de Collin Powell. Todas as quinze mãos se levantaram, aprovando. Afinal, Powell havia tornado a diplomacia relevante.
Em 14 de fevereiro de 2003, Hans Blix – advogado e diplomata sueco de 74 anos – chefe das equipes de inspeção de armas das Nações Unidas, fez uma apresentação perante o Conselho de Segurança da ONU que foi uma lista equilibrada de prós e contras. Um relatório insípido e vago: “Nenhuma arma ou substância proibida foram encontradas (...). Não posso saltar para a conclusão de que elas existam. Entretanto, essa possibilidade não pode ser excluída”.
Em 27 de fevereiro, Elie Wiesel, escritor, sobrevivente de Auschwitz e Prêmio Nobel da Paz, esteve no escritório de Rice e o presidente foi ao seu encontro. No livro de Michael Beschloss, “Conquerors”, Wiesel é mencionado dizendo que desejava que os Aliados tivessem bombardeado os campos de concentração nazistas mesmo que o ataque matasse os judeus, pois “já não tínhamos medo da morte – pelo menos, não dessa morte”. Bush disse a Wiesel: “Se não desarmarmos Saddam, ele usará uma arma de destruição em massa em Israel e eles farão o que acham que precisam fazer, e precisamos evitar isso”.
Entrementes, uma equipe da CIA, já em território iraquiano conseguia grandes progressos, graças a infiltrações no exército de Saddam, pagas a peso de ouro, obtendo informações decisivas, como a obtenção dos nomes de agentes da Inteligência iraquiana que, em meia dúzia de países eram membros de equipes de “dois a quatro homens” que haviam recebido ordens para promover ataques terroristas contra bases norte-americanas nesses países quando a guerra começasse.
Os nomes e detalhes eram específicos. A CIA localizou os agentes e deu fim às equipes. Outra ação velada da CIA foi conseguir que alguns países congelassem contas bancárias iraquianas no exterior. A Inteligência iraquiana freqüentemente pagava recrutas não com dinheiro, mas oferecendo um contrato para o Programa Petróleo por Alimentos, da ONU. Os recrutas poderiam ganhar um milhão de dólares com tais contratos, e tentativas foram feitas para que o dinheiro fosse congelado no Líbano, na Jordânia e na Suíça.
Dia 16 de março de 2003, um domingo, na Base Aérea do Campo de Lajes, ilha portuguesa de Lajes, o presidente Bush acompanhado pelo Primeiro Ministro de Portugal, José Manuel Durão Barroso, Tony Blair e José Maria Aznar, em uma entrevista coletiva, declarou: “Concluímos que amanhã é um momento de verdade para o mundo. O regime iraquiano se desarmará ou o regime iraquiano será desarmado pela força”.
No dia seguinte, 17 de março, Bush chamou o porta-voz Ari Fleischer e disse: “Vá lá fora às 09:45 e diga que não haverá votação para uma segunda Resolução nas Nações Unidas, pois nós retiramos a Resolução”. Assim, às 09:45 Fleischer apareceu na sala de imprensa e disse: “As Nações Unidas não conseguiram o cumprimento de suas próprias exigências no sentido de que o Iraque se desarmasse imediatamente. Dessa maneira, a janela diplomática foi agora fechada. O presidente fará um pronunciamento hoje à Nação, às oito da noite. Ele dirá que, para evitar o conflito militar, Saddam Hussein deve sair do país”.
Nesse mesmo dia, por volta das 18 horas, em reunião convocada por Bush com as lideranças no Congresso, disse: “A parte mais difícil é tomar a decisão de que pode ser necessário empregar a força”. Isso ocorrera seis meses antes, quando ele foi às Nações Unidas, no dia 12 de setembro de 2002, declarando que a ONU precisava resolver o problema de Saddam ou ele o faria.
Em 19 de março, em uma conexão de vídeo segura, Bush trouxe ao monitor o general Tomy Franks – em sua base no Katar – e nove integrantes de seu alto comando. Provavelmente era a primeira vez que um presidente falaria diretamente com todos os seus comandantes de campo à espera de uma guerra. Todos os comandantes, perguntados por Bush, se disseram prontos.
Em um pequeno discurso, o presidente disse: “Pela paz do mundo e pelo benefício e liberdade do povo iraquiano, por este meio dou a ordem para executar a Operação Liberdade Iraquiana. Que Deus abençoe as tropas”. Eram 17 horas no Iraque. Ele ergueu a mão em uma saudação aos seus comandantes, levantou-se abruptamente e virou-se antes que os demais pudessem acompanhá-lo. Lágrimas lhe escorriam dos olhos.
Bob Woodward, entrevistando o presidente Bush em busca de dados para o livro que escreveu, perguntou-lhe: “O senhor perguntou a seu pai: “Pai, como eu faço isso direito? Em que devo pensar?”
Resposta: “Não acho que tenha perguntado. Ele é o pai errado para recorrer em termos de força. Há um Pai superior ao qual eu recorro”.
21 de dezembro de 2014
Carlos I.S. Azambuja é historiador