A elite branca, a maioria negra e a cidade falida
Em uma noite gelada de fevereiro, o salão estava lotado. Emoldurados pelos murais do mexicano, um casal de cantores entoava trechos do musical O Fantasma da Ópera. Mulheres de vestidos brilhosos se equilibravam em saltos agulha empunhando máscaras com adereços reluzentes e penas coloridas. Homens de smoking, também mascarados, trançavam pelo ambiente – uma das mãos no bolso, a outra segurando um copo –, em meio a malabaristas que jogavam bolinhas para o alto.
Os convivas eram brancos, bem de vida, moradores dos abastados subúrbios do entorno. A maioria, profissionais liberais e empreendedores. Com convites a 100 dólares, o baile pretendia levantar fundos para o museu, como parte do acordo com a prefeitura para salvar a coleção de arte. O assunto era tema recorrente nas rodinhas de conversa da festa, assim como o que se dizia ser o renascimento de Detroit.
“Os sindicatos e os políticos destruíram a cidade. Mas agora há luz no fim do túnel”, comentou um empresário do ramo imobiliário, cuja mulher estava fantasiada de colombina. “Detroit nunca mais será os carros, essa cena do Rivera ficou para trás”, disse, apontando para uma das paredes. “O caminho é tecnologia, criatividade e empreendedorismo.” A seu lado, um jovem advogado de gravata-borboleta e máscara do Zorro contava estar deixando o subúrbio depois de ter desembolsado a pechincha de 50 mil dólares por um loft no Centro. “Quase não se encontram mais imóveis disponíveis. Há filas de espera para comprar”, informou. Um xeque árabe – de fato, um arquiteto loiro – engrossou o coro. “Até a Vogue está vindo fazer uma matéria. Somos o novo Brooklyn”, falou, referindo-se ao badalado bairro nova-iorquino. Detroit parecia a terra das oportunidades.
“Quando ouço a palavra ‘Detroit’ ser pronunciada junto ao substantivo ‘oportunidade’, eu sempre me pergunto: ‘Oportunidade para quem?’”, comentou o professor George Galster, da Universidade Wayne State, autor do livro Driving Detroit, uma saga épica sobre o desmantelo local, durante um passeio de carro pela cidade. “Não vejo como reinventar um lugar ignorando as razões primordiais de como chegamos até aqui”, disse.
O “até aqui” era a distopia absoluta. Nenhuma outra cidade americana – com exceção de Nova Orleans, destroçada pelo furacão Katrina em 2005 – sofreu uma devastação do quilate de Detroit. Não só a ruína urbana, mas socioeconômica, financeira, fiscal. A rota do declínio levou cinquenta anos, mas foi cirúrgica. Em função da capacidade máxima de suas fábricas, Detroit já foi tida como a maior potência industrial do mundo no começo do século XX, protagonista por excelência da indústria automobilística mundial e quarta maior cidade americana. Hoje coleciona os piores indicadores de país desenvolvido: criminalidade descontrolada, decadência industrial, falta de serviços públicos, fuga em massa da população, descaso urbano.
Em um intervalo de duas gerações, 60% dos moradores abandonaram a cidade. Dos quase 2 milhões de habitantes, restaram 700 mil – 85% deles negros e pobres, metade dos quais é composta de analfabetos funcionais. A taxa real de desemprego é de 50%, sete vezes a média nacional; o sistema educacional é o pior da região; os índices de homicídio são os mais altos do país. Até pouco tempo, era frequente empresários de fora assinarem um documento assumindo os riscos sobre a própria integridade física quando visitavam a cidade a convite da prefeitura.
Não existe trem ou metrô, a maioria das linhas de ônibus foi cancelada. Uma das poucas opções de transporte público é um monotrilho que dá uma volta inútil ligando o nada a lugar nenhum. Táxis são raros. E sujos. A coleta de lixo é incerta, os postes de luz funcionam à meia-boca, a polícia é ineficaz. Centros comerciais ou lojas de rua são inexistentes. Cinemas, só dois. Há poucos meses, a cara rede de supermercado orgânico Whole Foods se instalou num imóvel reformado graças a um vultoso pacote de subsídios estaduais. Até então, atravessava-se a ponte para o Canadá ou rodava-se até os subúrbios para abastecer o carrinho.
Por todo lado, o visitante se depara com restos de casas, edifícios, fábricas, bancos, farmácias, livrarias, restaurantes, escolas, hospitais, igrejas, sinagogas – que, cobertos pela neve do inverno mais rigoroso dos últimos vinte anos, tornavam a paisagem ainda mais melancólica.
Em contraste com o cenário de apocalipse pós-industrial, resplende a Detroit das oportunidades. Ela se concentra em Downtown, no Centro, e Midtown, na parte leste, microrregiões que formam uma letra T invertida no mapa e correspondem a apenas 7% da área da cidade. Ali, entre uma ruína e outra, erguem-se os espigões em permanente reforma; os galpões convertidos em galerias de arte; os depósitos transformados em lofts residenciais disputados por gente que anda de terno; os restaurantes que servem cervejas artesanais e vinhos orgânicos; os hotéis apinhados de executivos correndo atrás de um bom negócio na terra arrasada; os escritórios de empresas de tecnologia. É também por onde circulam os hipsters – a palavra que mais ouvi ao longo de três semanas; a segunda foi “abandonado”. É uma turma que gosta de óculos de armação grossa, camisa xadrez e calça apertada, e exerce alguma profissão que demanda excelência no computador ou no mundo das artes e letras. Homens usam barba e mulheres não se importam de ser gordinhas. Em Detroit, costumam ser brancos.
Lançado com alarde há um ano, o Detroit Cidade do Futuro é um plano de metas encampado pela prefeitura para reinventar a cidade nos próximos cinquenta anos. Foi elaborado por um grupo de arquitetos, urbanistas, cientistas políticos e sociólogos, financiados por fundações privadas. O trabalho consumiu dois anos e, segundo a equipe, foram ouvidos 30 mil cidadãos em centenas de debates públicos. O secretário de Empregos e Desenvolvimento Econômico de Detroit, Tom Lewand, disse aos jornais que o plano era sua “bíblia”.
Pela proposta, Detroit vai se tornar um Vale do Silício meio hippie, meio boêmio, meio cabeça. Um polo de empresas de tecnologia, ateliês de artistas plásticos, reduto de promissores escritores rodeado por um paraíso ecológico e sustentável. “Será um novo paradigma da vida nas cidades”, comentou o diretor do projeto, Ken Cockrel – um gigante que lembrava um jogador da liga de basquete – na solenidade de inauguração da nova sede da organização, em fevereiro.
Downtown e Midtown abrigarão escritórios, comércio, boom imobiliário, praças, centros de lazer e entretenimento. E os hipsters. No resto da cidade, pretende-se eliminar as construções desocupadas e fazer da pradaria aniquilada uma máquina de produção agrícola. Assim, terrenos baldios vão dar lugar a hortas comunitárias, estufas, parques, lagos artificiais. Haverá florestas para combater a emissão de carbono das estradas e um sistema avançado de poços artesianos de captação de água da chuva. A ideia é que os atuais moradores – negros e pobres – sejam empregados nas fazendas urbanas, que produzirão em grande escala para abastecer toda a região. “Haverá uma cadeia produtiva em todos os níveis, que vai absorver a mão de obra local e incrementar a economia”, explicou Ken Cockrel.
Uma das conclusões do plano é que alguns bairros hoje inviáveis jamais serão recuperados. Por isso, a diretriz reza concentrar investimentos públicos em áreas de alta densidade populacional. No caso, na Detroit das oportunidades. Bairros com poucos ou nenhum morador terão reduzidos os serviços essenciais. “Ainda não fechamos como será luz, água e lixo em cada bairro”, comentou Cockrel. Os recursos para implantar o projeto, já que a cidade está quebrada, são outra incógnita. “Vamos esperar pelos termos da falência e ver do que a cidade irá dispor”, disse ele. “Mas, pela primeira vez em décadas, existe um plano prático para salvar Detroit. Isso já é um excelente motivo de comemoração.”
Vista do alto, Detroit tem o formato de um motor de carro. Capital do condado de Wayne, o mais importante do estado do Michigan, ela é um retângulo imenso, com uma ponta estreita na parte inferior. É espalhada, pouco densa e predominantemente horizontal. Com uma área equivalente a três vezes o tamanho de Paris, à direita é banhada pelo rio Detroit, que delimita a fronteira de menos de 4 quilômetros com o Canadá. Pela esquerda e ao norte, está rodeada de gente branca. Ali se espraiam os suntuosos condados de Oakland e Macomb, em cujos subúrbios moram 2 milhões de pessoas – descendentes da segunda ou terceira geração de ex-moradores de Detroit.
A base da economia local continua sendo a indústria automobilística. Ainda é a sede das Três Irmãs: General Motors e Chrysler no Centro; Ford, em Dearborn, na região metropolitana. A cidade, que já teve mais de mil fábricas de carros e autopeças, hoje conta com apenas duas que, juntas, são responsáveis por menos de 4% da produção nacional. Por ano, Detroit recebe 15 milhões de turistas interessados nas ruínas urbanas, na herança da gravadora Motown – que já foi a líder no continente – e no Salão do Automóvel, considerado o maior evento do setor no mundo.
Não faltam argumentos para explicar o que aconteceu em Detroit: a falência da indústria automobilística americana, a desindustrialização, a fuga dos brancos para o subúrbio, a corrupção dos governantes, o inchaço da máquina pública, a ganância dos sindicatos de trabalhadores. “É um caso muito específico”, disse José Alexandre Scheinkman – um homem elegante, de forte sotaque carioca e olhos cor de piscina – em sua sala, na Universidade Columbia, em Nova York. “Na economia, como na queda de um avião, não há um só motivo para o desastre. É a combinação deles que torna a situação única. E só em Detroit poderia acontecer o que aconteceu.”
Um dos mais respeitados economistas do mundo, Scheinkman defende a tese de que a queda livre de Detroit tem origem, paradoxalmente, no ápice econômico atingido pela cidade. “A riqueza das montadoras produziu um fenômeno único junto à população: o desprezo pela educação e o enterro do empreendedorismo”, afirmou. Para que preciso estudar se meu rendimento me permite ter um bom nível de vida? Por que abrir um negócio arriscado se tenho um bom contracheque? Em 1970, por exemplo, os salários em Detroit e em Cleveland – que também tinha forte base industrial – eram muito maiores que os de Boston ou Minneapolis, onde o nível de escolaridade era superior. O resultado foi que, em menos de quatro décadas, o sistema educacional ruiu. Atualmente, menos de 40% das crianças em idade escolar estão matriculadas. A geração futura tem a cara do erro do passado. Detroit fez nascer uma horda de desempregados sem formação, nem qualificação ou perspectivas, fadada ao desemprego.
Aliado à falência educacional, o vazio de oportunidades de sustento econômico agravou o cenário. Só as Três Irmãs juntas chegaram a empregar 60% da população local. Quando desembarcaram as fábricas japonesas e europeias com carros mais modernos, baratos e econômicos, a concorrência roubou os empregos e a cidade estancou. Não havia outra fonte de trabalho. Chicago e Pittsburgh, que passaram por situação semelhante, agarraram-se na sólida estrutura bancária e educacional para se reinventar. Nova York, que já foi têxtil, sobreviveu por diversificar, atuando em áreas de tecnologia, medicina e educação.
E havia ainda um terceiro aspecto de ordem social: o desaparecimento da classe média negra, que também fugiu da cidade em busca de melhores condições de vida. Um dos maiores estudiosos da questão racial no país, o sociólogo americano William Julius Wilson, da Universidade Harvard, pregava: quando uma minoria perde a referência ou deixa de ser representada por uma elite intelectual, ela tende a desaparecer. “O Harlem sempre foi muito segregado, mas havia uma vibrante atividade intelectual, de artistas, escritores, que preservaram a identidade e reafirmavam a presença deles na sociedade”, comentou Scheinkman.
Em 1701, o oficial francês Antoine de la Mothe Cadillac desembarcou na região dos Grandes Lagos, no norte dos Estados Unidos, com a missão de impedir que os ingleses dominassem o valorizado comércio de peles na Nova França – a colônia que incluía o Canadá e se estendia até a Louisiana. Num ponto privilegiado e de fácil acesso marítimo, ele estabeleceu um forte e o batizou de Pontchartrain du Détroit, aludindo a um estreito (détroit em francês), inexistente, na baía.
A localização estratégica facilitava as trocas comerciais e, em pouco tempo, Cadillac passou a tocar os negócios da Coroa como se estivesse no quintal de casa. Cobrava propina de mercadores, obrigava-os a compartilhar os lucros, taxava todo tipo de atividade. Anos depois, foi preso por comércio ilegal de álcool e peles. O território se desenvolveu rapidamente e afinal foi conquistado pelos britânicos. Foi só tempos depois da Guerra da Independência, em 1796, que Detroit se tornou parte dos Estados Unidos. Logo depois, um incêndio de grandes proporções destruiu a cidade. Veio daí a divisa latina que estampa sua bandeira: Speramus meliora, resurget cineribus (Esperamos por coisas melhores, renascer das cinzas).
Quem a escolheu tinha o dom da presciência. De fato, a cidade renasceu e se tornou um importante centro manufatureiro. Produzia peças de ferro e cobre – minérios abundantes na região –, comercializava tabaco, trens, fornos e barcos. Perto da virada do século XIX para o XX dezenas de indústrias haviam se instalado na cidade e a população – majoritariamente branca – prosperava. Nessa mesma época, um jovem chamado Henry Ford, aprendiz de uma fábrica de vagões ferroviários dotado de notável habilidade para consertar motores a vapor, tentava construir em casa uma engrenagem a gás. Finalmente, em 1896, ele apresentou ao mundo seu primeiro automóvel: um quadriciclo movido a gasolina.
Nos dez anos seguintes, Ford inaugurou sua primeira fábrica e revolucionou o mundo fabril com a invenção da linha de montagem com tempo cronometrado. William Durant estabeleceu a General Motors – vieram os Dodge, os Chrysler, os Packard. A rápida industrialização requeria mão de obra, e foi esse o chamariz para a classe trabalhadora do sul oprimida pelo desemprego, a falta de perspectiva e o racismo. Da Europa, vieram levas de alemães, poloneses, irlandeses, italianos, escoceses, gregos e belgas.
Brancos e negros lotavam o chão das fábricas, a cidade se tornou uma potência. Nos anos 20, Detroit tinha pleno emprego e a renda per capita mais alta do país. Os espetaculares edifícios art déco, a maior loja de departamentos do mundo, a magnífica estação de trens. Uma reportagem do New York Times, de julho de 1927, dizia: “Os habitantes de Detroit compõem a mais próspera fatia da humanidade que existe ou jamais existiu.”
Com a Grande Depressão, metade dos empregados ficou ao deus-dará, mas a Segunda Guerra Mundial trouxe de volta a abastança. As fábricas quase inativas se tornaram as maiores produtoras de armas e veículos militares dos Estados Unidos. Nas palavras do então presidente Franklin Delano Roosevelt, Detroit era o “Arsenal da Democracia”. Novos postos de trabalho abrigaram mulheres, idosos, crianças e estimularam um novo fluxo migratório. Surgiu uma ascendente classe média negra, de médicos, advogados e professores. E é quando se tem notícia dos primeiros dos muitos ataques da Ku Klux Klan e da Black Legion em Detroit, organizações que defendiam a supremacia racial branca. Àquela altura, a cidade tinha 1,5 milhão de habitantes, sendo apenas 4% negros.
Criada em 1935, a UAW (United Automobile Workers) é a central sindical que representa os operários da indústria automotiva. Mas não só. A mais poderosa liga de trabalhadores do mundo hoje representa praticamente todo o mercado: professores, enfermeiros, servidores públicos, jornalistas de diversas cidades do país. Logo depois da guerra, liderando longevas greves e pressionando os patrões, conseguiu o que até hoje as montadoras entendem como a razão de seu endividamento e a perda da competitividade no mercado globalizado: o pagamento de benefícios como auxílio-moradia, plano de saúde e aposentadoria – o que, segundo as empresas, gera pesados encargos trabalhistas que tornam a concorrência inviável.
A UAW garantia a negros e brancos o mesmo salário, mas o trabalho era diferente. Os primeiros limpavam o chão ou lidavam com caldeiras e aço fervente; os outros estavam alocados em postos de comando ou na linha de montagem. Negros eram ensinados desde o berço que não deveriam confiar nos brancos. E vice-versa. Em 1943, a namorada de um marinheiro branco foi xingada por um operário negro numa pacata manhã de sol no Parque Belle Isle. Deu-se o primeiro confronto racial grave, que deixou 34 mortos. Três semanas antes, 25 mil operários da montadora Packard entraram em greve quando negros foram contratados para postos destinados aos brancos. Esses episódios constituíram uma prévia do maior de todos os conflitos, ocorrido em julho de 1967, que teve início com uma batida policial num bar clandestino onde trabalhadores negros davam uma festa. A notícia da prisão dos operários desencadeou um sangrento embate que durou cinco dias e teve um saldo de guerra: 43 mortos, 1 200 feridos, 7 mil presos e 2 mil prédios incendiados. Tropas federais ocuparam a cidade por meses. A tensão racial era evidente.
A população crescia e, com ela, a demanda por moradias. Negros tentavam morar em bairros brancos, em vão. É quando surge uma das mais perversas políticas públicas para manter os negros afastados da vizinhança caucasiana: o redlining. Assim que o sistema nacional de hipotecas para compra de moradias foi lançado, a Federal Housing Administration – uma espécie de Caixa Econômica Federal – dividiu a cidade em zonas de risco de inadimplência para investimentos imobiliários. Como os negros moravam em guetos, era fácil identificar seus bairros. No mapa, as áreas dos guetos foram marcadas em vermelho, daí o nome. A partir de então, bancos e instituições financeiras negavam empréstimos argumentando não haver linhas de crédito disponíveis
para moradores daquele setor. A cor da pele jamais era mencionada. “Era uma política pública, explícita e direcionada para excluir os negros”, comentou
o professor carioca Bruno Carvalho, especialista em urbanismo e cultura, da Universidade Princeton, em uma manhã em Nova York. “E ainda havia a iniciativa de entes privados que atuavam livremente baseados nas políticas institucionais de segregação”, disse.
Era o caso de uma associação chamada Waterworks Park Improvement, formada por corretores de imóveis que se recusavam a mostrar casas a determinados clientes. E mais: procuravam proprietários brancos dentro dos limites da cidade e os incentivavam a vender seus imóveis antes da chegada dos vizinhos “de cor”, o que, segundo eles, desvalorizaria a região. Na mesma conversa, ofereciam uma residência no subúrbio como alternativa. Um levantamento do jornal Detroit Free Press revelou que, entre 1940 e 1960, apenas 1% dos empréstimos bancários para a compra de casas foi destinado à população negra. Não importava que demonstrassem renda compatível com a linha de crédito. Sem alternativa, os moradores se espremiam em quarteirões com péssima infraestrutura no lado leste da cidade. Ironicamente, um dos guetos foi batizado de Paradise Valley.
Brightmoor é o bairro mais pobre e mais violento de Detroit. Com 12 mil moradores, de maioria negra, é o rincão que concentra problemas de uso de drogas, gravidez adolescente e obesidade. A principal avenida de acesso ao bairro congrega todos os lugares que foram largados à própria sorte: uma sucessão de igrejas evangélicas, lojas de bebida e fast-foods.
Fundado no começo dos anos 20 para abrigar operários de uma das fábricas da Ford, Brightmoor consiste num conglomerado de casas de madeira com dois dormitórios, uma pequena sala, banheiro e cozinha contígua. Cerca de 90% delas estão abandonadas. Portas escancaradas, janelas com os vidros quebrados, paredes pichadas. Em uma delas, uma árvore crescia no que um dia foi uma sala de jantar.
Das ruas residenciais emana um silêncio sepulcral. De vez em quando, avista-se uma figura saindo de uma casa abandonada – provavelmente um ponto de comércio de drogas. Foi a primeira vez que tive a ideia precisa do que era a decrepitude de Detroit. Perto dali, o resto da cidade parecia Las Vegas. No plano Detroit Cidade do Futuro, Brightmoor vai dar lugar a uma bucólica área verde com lagos, pontes, estufas de colheita orgânica.
Em um começo de tarde, encontrei-me com Joe Rashid, um barbudinho simpático de 32 anos, funcionário da Brightmoor Alliance, organização sem fins lucrativos que atua na região. “Nosso trabalho é engajar os moradores em atividades que gerem emprego, como a ideia de agricultura urbana”, comentou. “Mas, depois de tanto tempo de abandono, é difícil mobilizar gente.”
Logo após o anúncio do plano de reestruturação da cidade, o fantasma da realocação passou a assombrar os moradores. Há décadas, Detroit se vale de uma lei municipal para remover residentes que ocupem áreas destinadas a projetos de renovação urbana e desenvolvimento econômico. O conceito que anima o instrumento legal de remoção é o “propósito público”. No passado, foi usado a contento dos governantes, de maneira indiscriminada. “Eles estão garantindo que isso não vai acontecer, mas já vimos de tudo por aqui, então...”, disse Rashid. Segundo ele, o bairro ainda existia graças ao trabalho voluntário e à iniciativa de ONGs que cuidavam da destruição das casas abandonadas, da capacitação de moradores e da remoção dos entulhos (a prefeitura pouco coleta lixo). Quando perguntei se já tinham tido algum problema em derrubar uma casa sem autorização da prefeitura, ele riu. “Aqui você pede desculpa por ter feito, não licença para fazer”, disse.
Seguimos para um encontro no centro comunitário de Brightmoor. Na quadra de esportes, mesas compridas e bancos de ferro se alinhavam em frente a um balcão onde estavam dispostas travessas de alumínio com frango frito, angu de milho, salada, bolo de chocolate, suco de uva. O jantar foi servido em seguida, cerca de trinta pessoas se deram as mãos e formaram uma roda de oração. Havia mulheres obesas, homens sem dente, trabalhadores com casacos surrados, senhoras de meia-idade carregando sacolas, mendigos e crianças.
A funcionária de um banco popular tirava dúvidas sobre empréstimos, financiamentos educacionais e empregos. Em seguida, Riet Schumack, uma holandesa robusta que lembrava a missionária Dorothy Stang assassinada no Pará, contou ter recebido 50 mil dólares da Fundação Knight para seu projeto de hortas comunitárias. Por 20 dólares ao ano, os moradores levavam 600 pacotes de sementes e poderiam vender a produção no Eastern Market, uma feira livre frequentada pelos hipsters nas manhãs de sábado. “Conheci uma pessoa que só no ano passado teve uma renda de 12 mil dólares com essa atividade!”, anunciou. A plateia atenta não fez perguntas.
Foi a vez de Kirk Mayes, diretor da Brightmoor Alliance – um negro alto, bem vestido e de óculos de armação grossa. “Durante anos, Brightmoor era a terra dos fracassados. Nunca prestaram atenção em nós porque aqui não tem prédio bonito, de valor histórico”, trovejou. Da plateia vinham gritos de “Amém”, palmas, assobios. Ele disse que o plano Detroit Cidade do Futuro trazia “uma esperança” e que os moradores deviam se engajar. Depois, anunciou ter sido nomeado para um cargo na prefeitura. “Lá, eu irei lutar por Brightmoor! Essa é a NOSSA Detroit! Nós somos a maioria!”
Na saída, muitos levavam quentinhas com os restos do jantar. Entre eles, Twana Brookins, de 42 anos, que mora na vizinhança, tem duas filhas, vive com 200 dólares por mês de auxílio do governo e está desempregada. Perguntei o que ela havia achado da palestra. “Ótima, mas muita gente se incomoda com algumas dessas ideias. Saímos há pouco tempo da escravidão e eles nos sugerem plantar alface?”
Até meados dos anos 40, as fábricas eram prédios altos, de cinco ou seis andares. Então se teve a ideia de transformá-las em galpões no rés do chão. Para construí-las era preciso espaço livre, o que havia de sobra nos arrabaldes da cidade. A migração das fábricas foi o gatilho para a desindustrialização local e também o motivo da fuga para os subúrbios. Em meados dos anos 50, as montadoras haviam inaugurado 25 novas fábricas em Michigan. Nenhuma delas em Detroit. Só nessa década, 840 fábricas fecharam as portas na cidade, entre elas as icônicas Packard e Hudson.
Nos anos 50, Detroit atingiu o pico populacional de 1,9 milhão de habitantes, 83% brancos. Vivia-se o sonho americano: uma casa, um carro, um bom emprego. Mas, com o deslocamento das fábricas, o terror dos agentes imobiliários, o saco de bondade dos financiamentos bancários destinados aos brancos, o caminho para os subúrbios parecia sem volta. Era a promessa de vida encapsulada num capítulo do seriado Mad Men: moradia mais ampla, vizinhança branca. A população negra continuava impedida de comprar casas em bairros valorizados e ia ocupando as que os brancos deixavam. Nos guetos, as que ficavam para trás eram assumidas pelos imigrantes recém-chegados. Ali, a pobreza era endêmica.
O então prefeito Albert Cobo, a voz dos brancos conservadores, dispensava programas de ajuda financeira a bairros carentes, mas investia no projeto de construção de autoestradas, confortáveis conexões da cidade aos subúrbios. Bairros inteiros foram destruídos para abrir passagem às pistas de alta velocidade. Um deles foi o gueto Paradise Valley, de onde os moradores foram removidos à força pela lei do “propósito público”. Nas gestões seguintes, o padrão se repetiu.
Acreditando na bonança irrestrita e infinita, outro prefeito, Jerome Cavanagh, embarcou no plano federal de erguer cidades-modelo, proposto pelo então presidente Lyndon Johnson, com ações de combate à pobreza e modernização urbana. Assim, passou a financiar a construção de arranha-céus, prédios, casas, sem levar em conta o declínio da população, do comércio e dos serviços. Quanto às medidas a favor dos mais carentes, as benesses se deram numa área de imigrantes brancos. Mais uma vez, as veladas políticas de segregação fraturavam e endividavam a cidade.
Os serviços municipais também começam a acusar os primeiros sinais da decadência. A precariedade do transporte público foi atribuída a uma estratégia da General Motors: quando os bondes ainda eram os maiores concorrentes dos automóveis, a GM, a Standard Oil e a Firestone se aliaram e constituíram uma empresa que comprou todas as linhas de bonde de Detroit e de outras 44 cidades americanas. A ideia era substituir a frota por automóveis, caminhões e ônibus fabricados pela GM. A partir do momento em que o município entrou em decadência, já não interessava mais atualizar a frota.
A cidade se desindustrializava, o desemprego aumentava, mas a prefeitura gastava sem dó. Em 1959, Detroit já tinha uma dívida de 3 bilhões de dólares em caixa, em valores atualizados. Entre 1960 e 1970, 344 mil pessoas deixaram a cidade.
A Show me Detroit Tours é uma das mais conhecidas empresas de turismo da cidade. A proprietária, Kim Rusinow – uma loira, magra, de óculos de armação de tartaruga –, diz atender 1 200 pessoas por mês, 60% estrangeiros que pagam até 250 dólares por um passeio de três horas. Na semana anterior, ela havia acompanhado um casal de paulistanos. “As pessoas chegam aqui e baixam a voz para dizer: ‘Quero ver as ruínas’, como se estivessem falando um palavrão. Querer ver só isso é como querer ler meio livro”, comentou. “Eu mostro a Detroit que está dando certo porque é isso que vivemos hoje. Se quiserem ver escombros, procurem outras empresas que fazem isso”, disse.
Nascida em Detroit, Kim se mudou para os subúrbios ainda na infância. Durante quarenta anos, seu avô foi gerente da Fischer Body, uma fábrica de autopeças que hoje pertence a General Motors. Seu pai, o marido, os cunhados e os primos ainda conservam elos com a indústria automotiva. Ela me mostrou prédios reformados, uma fábrica de relógios que custam 3 mil dólares e um restaurante orgânico, além de mediar um encontro com um artista plástico que coloca esculturas em cima dos prédios. Quando estávamos no Ponyride – um coletivo que abriga ateliês de artistas e artesãos, que trabalham ouvindo música eletrônica, bebericando latte macchiato com uma permanente expressão de enfado –, quase me vi em Copenhagen. Mas foi olhar pela janela e avistei os destroços da Michigan Central Station, um monumento neoclássico com 900 janelas, todo pichado, de onde o último passageiro desembarcou em 1988.
Para Kim, Detroit é uma “sucessão de erros de gestão”, ocorrida sobretudo nos últimos quarenta anos. As mudanças benfazejas pelas quais a cidade vinha passando seriam, segundo ela, decorrência do mercado imobiliário, novo paraíso de especuladores e de jovens descapitalizados. “Onde você compra um prédio neoclássico de trinta andares por 3 milhões de dólares? Ou uma casa por mil?”, perguntou.
Para compreender Detroit, sustentou, era preciso entender o voluntariado e os grandes benfeitores da cidade. “Tudo mudou graças ao dinheiro deles, não foi o governo.” Como um Plano Marshall privado, os bolsões de revitalização urbana são financiados por corporações, empresas privadas, investidores bilionários, fundações e organizações não governamentais. Eles pagam a demolição de prédios, a limpeza das ruas, a compra de carros de polícia e ambulâncias. Bancam generosas bolsas de trabalho e premiam iniciativas de planejamento urbano, empresariais e artísticas. “Os empresários apostam que são essas pessoas que vão mudar a cara de Detroit e construir o que está sendo semeado aqui”, disse-me dias depois James Martinez, diretor de Comunicações da Câmara Regional de Detroit. “Todo mundo sai ganhando”, comentou.
Segundo Martinez, empresas e fundações investiram 12 bilhões de dólares na cidade nos últimos oito anos. Um terço bancado pelo empresário Dan Gilbert, dono da Quicken Loans, a maior empresa do país de concessão de crédito imobiliário pela internet. Nos últimos anos, Gilbert transferira seus negócios do subúrbio para o Centro, comprara e reformara 45 prédios abandonados –, movimento que serviu para povoar a região e foi seguido por outras noventa firmas, como Twitter e Google.
Havia uma grande simbiose entre os investimentos privados e os projetos públicos do Detroit Cidade do Futuro. Todos os investimentos de Gilbert estão exatamente na área em que o plano de revitalização propunha ser a prioridade de verbas públicas. Ainda que ele esteja investindo pesado no Centro, em todos os projetos – como a construção de um Veículo Leve sobre Trilhos, o M-1, que vai passar na porta das firmas do grupo –, o governo entra com a parte mais vultosa. O mesmo se passa com os outros investidores.
O caso mais rumoroso foi o do milionário Mike Ilitch, que arrematara 45 quarteirões em Midtown por 1 dólar. Ele planejava erguer um complexo com uma arena de hóquei no gelo (ele é dono do principal time da região), centros comerciais e residenciais. Com um detalhe: quase metade do projeto – cerca de 300 milhões de dólares – seria financiada pelo estado do Michigan.
Ao volante, Kim enumerava as virtudes locais e a capacidade criativa da população. Em um trecho ermo de Midtown, estacionamos em frente a uma casa com parte do telhado danificada, mas ainda habitada. Ao lado, havia um terreno livre coberto de neve. “Isso aqui era uma horta maravilhosa. Você precisava ver no verão!”, comentou. Falamos sobre a percepção das mudanças em Detroit pela população pobre. “Os afro-americanos veem que a cidade está mudando, mas não conseguem entender que não é dinheiro do governo, é investimento privado”, disse Kim, séria. “É difícil fazer com que eles percebam que, melhorando aqui, necessariamente vai melhorar para eles também.”
Em 1974, o pesadelo da elite branca se tornou real. Coleman Young, um ex-operário da Ford, foi eleito o primeiro prefeito negro de Detroit. Um de seus pilares de campanha era a questão racial, mas seu discurso de posse foi um choque. Ele culpou os brancos pela decadência da cidade e os estimulou a ir embora. A crise do petróleo havia provocado mais demissões nas fábricas, os índices de violência haviam disparado, o crack era epidêmico e o ocaso urbano já era visível. Foi o auge das Devil’s Night, os incêndios criminosos que varrem a cidade na véspera do Dia das Bruxas. Com a memória dos tremores sociais de 1967 ainda fresca, a população branca engrossou o êxodo urbano. Em um ano, 230 mil pessoas deixaram a cidade. Com uma novidade: a classe média negra também fugiu para os subúrbios atrás de melhor moradia e segurança. Coleman Young se manteve vinte anos no poder graças aos votos do crescente eleitorado negro.
No final dos anos 70, o valor dos imóveis em Detroit havia caído 70% – o que repercutiu diretamente na arrecadação de impostos. Quanto menor a arrecadação, piores os serviços públicos, e maior o êxodo de Detroit (de gente que passava a pagar os tributos alhures). E não era só a fuga dos moradores. Extinguiam-se lojas, restaurantes, farmácias, cinemas, escritórios. Apareciam os prédios-fantasmas, as estruturas ocas, as casas desabitadas. É nesse momento que se inverte a proporção racial na cidade.
Nas escolas públicas, dois terços dos estudantes eram negros. O então governador do Michigan, William Milliken, concluiu que a única maneira de se chegar a um equilíbrio racial era misturando os alunos. Pais dos subúrbios alegavam ser absurda a obrigação de colocar os filhos em escolas de pior qualidade. O caso foi parar na Suprema Corte dos Estados, que entendeu que as escolas não eram responsáveis pela segregação e limitou o intercâmbio das crianças dentro dos limites da cidade. Ou seja: negros iriam se misturar com negros.
Mesmo com as finanças no vermelho, a prefeitura continuava a contratar servidores e a inchar a máquina pública. A certa altura, passou a distribuir bônus em forma de 13º salário com vistas eleitorais. A cada vez que as verbas pareciam faltar, os prefeitos tinham uma ideia brilhante: aumentar ou criar novos impostos. Com a média de um novo imposto por década, Detroit foi a cidade com a maior carga tributária do Michigan. Se uma empresa ou um cidadão pudessem escapar dos tributos, eles o fariam sem pestanejar. E foi o que aconteceu.
Não bastasse, uma lei estadual proibira Detroit de anexar municípios vizinhos – o que poderia incrementar a arrecadação, já que os subúrbios prosperavam. Mas houve um forte lobby das montadoras – principalmente a Ford e a Dodge, que tinham fábricas na região metropolitana e não queriam se submeter à alta taxação da cidade.
Cada vez que as fábricas ameaçavam deixar Detroit, a cidade rebatia com subsídios e facilidades. Coleman Young autorizou a destruição de um bairro inteiro para acomodar uma fábrica da Cadillac. Anos depois, o prefeito Dennis Archer conseguiu um incentivo federal para a construção de uma unidade da Chrysler. Nos dois casos, os empregos prometidos não vieram, mas o prejuízo caiu na conta do município.
Era como se Detroit existisse para servir ao interesse das montadoras, sem que a recíproca fosse verdadeira. Como escreveu o jornalista americano Joseph Kraft, num artigo da New Yorker, em 1980, sobre a primeira crise na Chrysler: “As montadoras nunca foram conectadas com a cidade ou com seus moradores. Em Detroit, a indústria sempre falou com a indústria.”
O Painted Lady, em Hamtramck, a dez minutos do Centro de Detroit, é o ponto de encontro dos jovens artistas da cidade. O bar consiste numa caixa de madeira com um enorme balcão, fliperamas e uma iluminação que confere um tom avermelhado às pessoas e às paredes. Em uma noite de muita neve, a frequência era de barbudos, moças com acessórios bizarros na cabeça, motoqueiros, roqueiros mal-encarados, neoescritores e adictos. Era como estar numa tela de Edward Hopper em clima de filme de Tarantino.
Há três anos, o artista plástico Ryan C. Doyle, de 34 anos, trocou Minnesota por Detroit atraído pelas bolsas de apoio a artistas e pela facilidade de moradia. Em um ano, ele comprou três casas – uma delas transformada em um tipo de abrigo para artistas recém-chegados. “Aqui é a terra das oportunidades”, ouvi novamente. Dentre sua produção, destaca-se uma obra coletiva, um barco construído com lixo – com o qual desembarcou na Bienal de Veneza em 2009 – e, recentemente, um dragão de metal de 6 metros de altura que se movimenta soltando fogo pela boca. “Eu seria preso em qualquer outro lugar. Chamariam bombeiro, polícia. Mas aqui é Detroit. Tudo é permitido”, disse.
Com quase 2 metros de altura e cara de poucos amigos, Doyle – que tem uma filha chamada Dynamite – criticava o plano de reestruturação e os benfeitores privados da cidade. “Eles são equivocados em tudo. Só reformam loft porque acham que artista só mora em loft, e é para nós que eles querem vender”, comentou virando um copo de cerveja. “Essa cidade vai se transformar com o trabalho dos artistas, não com bilionários que estão comprando tudo a preço de banana e criando um novo feudalismo”, disse. No dia seguinte, ele viajaria para Nova York para organizar uma exposição de seu trabalho no Brooklyn.
Outros jovens se juntaram ao grupo, que ocupava todo o balcão do bar. Discorriam sobre as vantagens de viver com pouco dinheiro, de ter uma força policial frouxa e ruínas urbanas para intervenções artísticas. Alguém comentou que havia apenas dois negros no bar. “Não quer dizer nada. Na nossa geração, essa questão do racismo está superada. Isso é uma coisa dos nossos pais, que ainda têm problemas com esse assunto”, disse o escultor Steven McShane, que também tinha se tornado um latifundiário.
Falou-se sobre como seria a vida em Detroit em quinze anos. “Talvez, até lá, com filhos, tenhamos que nos mudar porque aqui não há escolas”, disse McShane. Ele foi interrompido pelo jornalista Michael Jackman, um sujeito grande, de cavanhaque cor de mel e tom de voz assertivo, editor do jornal alternativo Metro Times. “Estamos criando nossa própria maneira de viver aqui. Pode ser desde ensinar os filhos em casa, abolir as escolas, vai saber. Aqui temos uma autonomia temporária porque tudo é tão disfuncional que acabamos achando nossas próprias soluções”, disse. Se ele acreditava no renascimento de Detroit? “Acho que vivemos uma Woodstock que deu certo. Vamos aproveitar até ver no que vai dar.”
Em meados dos anos 90, a prefeitura aprovou a abertura de cassinos e de novos estádios de futebol americano e beisebol, que incrementaram a receita municipal. Foi a primeira vez em décadas que se teve esperança num renascimento financeiro. Mas, quando a cidade já tinha perdido 1 milhão de habitantes, Michigan deu uma rasteira. Reduziu em 50% os repasses de verbas estaduais para Detroit, como se fosse inútil gastar numa terra desolada. Com o declínio da receita tributária, a cidade passou a contrair empréstimos e vender títulos da dívida pública para pagar despesas operacionais.
Apesar das pantanosas finanças da cidade, a Standard & Poor’s conferiu um grau moderado de risco de investimento para Detroit. A saber: considerou a cidade tão arriscada a calotes como o Brasil de hoje. Em 2005, o então prefeito Kwame Kilpatrick pegou um empréstimo de 1,4 bilhão de dólares numa transação com derivativos de crédito para injetar nos fundos de pensão.
Quando a economia mundial derreteu, os bancos cobraram a conta. Só esse empréstimo corresponde a um quinto da dívida do processo de falência da cidade. No ano passado, Kilpatrick – que renunciou antes do fim do mandato – foi condenado a 28 anos de cadeia por um escândalo de sexo e corrupção.
Sem emprego, crédito ou casa própria, os moradores de Detroit também foram um dos alvos preferenciais dos empréstimos subprime, que deram origem à bolha imobiliária americana. Como não conseguiam honrar as hipotecas, mais de 150 mil pessoas perderam suas casas, e a opção foi deixar a cidade. De 2000 a 2010, a população caiu 25%. Cerca de 190 mil moradores negros deixaram Detroit. E, ainda que as estatísticas mostrem que os jovens, solteiros, brancos e de boa escolaridade estejam engrossando a população, essa conta não fecha: sai muito mais gente do que entra.
A prefeitura de Detroit ocupa o 11º andar do imponente edifício Coleman Young. À esquerda, fica o gabinete do prefeito, o democrata Mike Duggan, um advogado que recuperou as finanças do falido Detroit Medical Center e foi o primeiro branco eleito em quarenta anos. A informação sobre sua cor costuma introduzir as conversas sobre o futuro da cidade. À direita, concentra-se a equipe do gerente de emergência, Kevyn Orr – ex-advogado da Chrysler –, nomeado em março do ano passado pelo governador republicano Rick Snyder para intervir nas contas municipais durante o processo de falência. Desde que assumiu, Orr – que não tem cargo eletivo – é criticado pela prepotência e pela relação dúbia com o prefeito, que ficou sem qualquer poder sobre o orçamento municipal ou sobre a segurança pública. E também por ter contratado o mesmo escritório em que fez carreira para cuidar do caso da falência de Detroit, com honorários de 18 milhões de dólares.
Kevyn Orr privatizou a coleta de lixo, arrendou a terceiros o maior parque da cidade – a ilha de Belle Isle –, nomeou um interventor para cuidar da iluminação e trocou o chefe de polícia. Também prometeu acabar com os escombros urbanos e considerava vender o sistema de água e esgotos, mas os subúrbios resistiram sob o argumento de que teriam que herdar o enorme passivo de contas atrasadas. Recentemente, Orr anunciou um corte nas aposentadorias dos servidores públicos como forma de fazer caixa para a prefeitura sanar seus débitos. A aposentadoria média é de 1 200 dólares por mês, considerada uma das cinco piores dos Estados Unidos. O acordo com os bancos credores ainda era uma incógnita, mas as duas ofertas anteriores foram negadas pelo juiz que cuidava do caso, por achar que a proposta era muito favorável às instituições.
“Durante anos, a receita da cidade foi canibalizada para pagar a folha de pagamento em vez de providenciar serviços básicos para a população”, disse o porta-voz de Orr, o publicitário Bill Nowling, um sujeito boa-praça, eficiente, e uma versão compacta do ator James Gandolfini. “Era uma bomba-relógio. Até que demorou para explodir”, comentou. Muitas cidades americanas – como Stockton, na Califórnia, e o condado de Suffolk, em Nova York – foram abaladas pela crise mundial e pediram falência. Só em Michigan, doze cidades estavam sob a intervenção de um gerente de emergência. “Mas a diferença é que Detroit, além de simbólica, acumulou uma dívida inacreditável”, disse Nowling.
A dívida de Detroit é de 20 bilhões de dólares, metade dos quais consiste em obrigações com aposentados, que são duas vezes mais numerosos do que os servidores na ativa. “Temos de considerar que aqui há 700 mil pessoas e 22 mil aposentados.” Um dos maiores desafios, disse, era estabelecer padrões justos de cortes. “Um aposentado de 80 anos não pode sofrer o mesmo corte de um de 62, que ainda pode arrumar emprego”, comentou. “É uma complicação. Fora isso, são 100 mil credores, 52 bancos, uma centena de sindicatos. Tem sindicato que representa uma pessoa só!”
Nowling sacou o celular do bolso e me mostrou um marcador de tempo em ordem decrescente, que registrava dias, horas e minutos que faltavam para o fim do mandato de Orr. Sobre o futuro de Detroit, ele foi lacônico. “Funcionamos como um cirurgião que extirpa um câncer: depois cabe ao doente parar de fumar, fazer exercícios, comer direito. A partir de setembro, não temos mais controle sobre nada”, disse.
No salão do museu, os mascarados haviam ocupado a pista de dança. O empresário do ramo imobiliário seguia acusando os sindicatos das mazelas da cidade. “Até Viagra para os operários as empresas foram obrigadas a pagar!” A meu lado, um patologista com um traje paquistanês disse ter atendido um paciente de 72 anos cuja aposentadoria seria cortada quase pela metade pelos termos da falência municipal. “Como você explica que pode reduzir o salário de um sujeito que trabalhou a vida toda, mas não pode vender um quadro? Você fala que a arte é eterna e ele não?”, disse.
Há quinze anos, o inglês Graham W. J. Beal é o diretor do Instituto de Artes de Detroit. Quando os boatos sobre a venda das obras de arte – estimadas em mais de 1 bilhão de dólares – ganharam força, ele chegou a ter que dar explicações sobre o próprio salário. “Sou bem remunerado, mas ganho infinitamente menos do que meus pares em qualquer outro museu desse quilate”, comentou num café do átrio do museu, em Mid-town. “Botar meu salário em questão é fugir do debate”, comentou.
Aos 66 anos, Beal é cordato, fala baixo, usa gravata-borboleta sem pedantismo e tem o corte de cabelo dos anos 80. “O que eu acho curioso é que aqui no museu somos bem administrados e, de repente, temos que pagar pelo erro de outros”, comentou. Contou que o caso lhe havia sido apresentado como luta de classes. “O Kevyn Orr falou na minha cara que era uma luta entre o museu rico e os pensionistas pobres”, disse. “É fácil dizer que vai vender as obras de arte. Fica até bonito falar isso em público, mas essa situação é política e tem que ser resolvida como tal.”
Ele via com reservas os planos de reestruturação da cidade, ainda que notasse uma melhora substancial na área em torno do museu. “Há dois anos, eu não recomendaria uma pessoa andar a pé aqui. Hoje, durante o dia, dá.” Mas via com desconfiança a ideia de valorizar apenas alguns bairros. Ele citou o exemplo de São Francisco, onde os milionários do Vale do Silício ocuparam o Centro da cidade, fizeram o valor dos imóveis disparar e criaram uma sociedade à parte, até mesmo com linhas de ônibus particulares. “A população está jogando pedra nesses ônibus, sabia? As pessoas veem o que acontece e se sentem muito mal, excluídas.” Perguntei se ele acreditava no renascimento de Detroit. Fez-se um longo silêncio. “Não”, respondeu.
Em meados de 2009, a General Motors e a Chrysler pediram falência. Atribuíram a concordata ao pesado pacote salarial imposto pelos sindicatos. Argumentavam pagar mais salários em troca de cada vez menos trabalho. A GM, por exemplo, tinha o dobro de empregados aposentados do que na ativa. A hora trabalhada de um operário de uma fábrica sindicalizada chegava a custar o dobro de um mesmo trabalhador no México.
Com 82 bilhões de dólares, o governo americano salvou as empresas. As montadoras fecharam fábricas, demitiram funcionários e renegociaram contratos de trabalho. Desde então, novos operários podem ser contratados por vencimentos mais baixos e sem benefícios, como plano de saúde. O setor se recuperou e a expectativa é vender mais até o final do ano.
Há 25 anos, George McGregor – que é um clone do pai dos Jackson 5 – é o presidente da Local 22, o sindicato ligado a UAW que representa 2 500 trabalhadores, entre metalúrgicos e enfermeiros. Numa manhã recente, ele lia os jornais em sua sala, com as paredes enfeitadas com um sem-número de quadros, recortes de jornais emoldurados, fotos e bonequinhos. A manchete do Detroit Free Press dizia respeito ao salário da nova CEO da General Motors, Mary Barra. “Olha aqui, 14 milhões de dólares por ano! E as montadoras gritam porque o governo ameaça aumentar o salário mínimo para 10 dólares a hora”, disse, rodando o anel de brilhantes do dedo mínimo.
A adesão às centrais estava em queda em todo o país. Em trinta anos, o percentual de trabalhadores sindicalizados passou de 35% para 7%. Naqueles dias, a UAW sofria uma de suas maiores derrotas: depois de meses brigando para entrar numa fábrica da Volkswagen no Tennessee, os empregados haviam votado para continuar longe dos sindicatos. Um dos argumentos era o que havia acontecido a Detroit. “Eles estão conseguindo acabar com o sindicalismo e convencer a população que ter direito trabalhista é nocivo. Mas, sem eles, essa cidade nem sequer teria existido.”
No final de abril, descobriu-se que o governo do Tennessee havia oferecido 300 milhões de dólares em incentivos fiscais para que a Volkswagen abrisse mais uma fábrica no estado. A contrapartida era votar contra a UAW – o que ocorreu.
Para McGregor, atribuir a falência de Detroit às pensões e aos benefícios pagos aos trabalhadores é uma falácia. “Tanto para os operários das montadoras quanto para os servidores da prefeitura, os benefícios foram conseguidos com muito sacrifício e luta. Se dependesse das empresas, ainda estaríamos catando algodão”, disse. “Agora é fácil botar a culpa nos sindicatos. Bom é ser operário na China, não é?”, disse, às gargalhadas.
Quando perguntei se era verdade a história do Viagra para os operários, ele apenas riu. “Olha, as empresas não querem pagar nada, a prefeitura não quer pagar nada. Falar que não existe dinheiro para pagar as pensões dos aposentados é mentira. Se tem para pagar juros dos bancos credores, que paguem os salários”, disse em tom alterado. “Mas sabe qual é o problema? É que a merda sempre cai de cima para baixo”, disse. “E em Detroit isso sempre foi a regra.”
Dias depois do anúncio do plano da Detroit Cidade do Futuro, 300 pessoas esperavam o início da palestra do professor Peter Hammer, diretor do centro de direitos humanos Damon J. Keith Center, da Universidade Wayne State. Branco e ativista gay, ele é uma das vozes mais críticas contra as mudanças em curso na cidade. “Esse plano é péssimo para a população carente”, disse na abertura de seu discurso.
Segundo ele, o plano ignorava o que chamou de os três erres: raça, regionalismo e reconciliação. O racismo, segundo ele, era o ponto nevrálgico de qualquer discussão sobre Detroit. “São sessenta anos de preconceito explícito que dividiram e dividem essa cidade, e não há qualquer menção ou proposta para lidar com o assunto”, disse Hammer. “É como se o problema estivesse resolvido”, comentou.
Ele projetou slides de mapas coloridos mostrando os investimentos em cada parte da cidade. Em um deles, Detroit aparecia rodeada por um espaço em branco. “Onde estão os subúrbios? Onde está a integração regional? Não há nada que possa nos ajudar aqui?”, comentou. Segundo ele, a tendência a encarar a cidade como uma ilha independente reforça a segregação.
Em janeiro, a revista The New Yorker publicou um perfil de L. Brooks Patterson, um boquirroto republicano de 75 anos, que há vinte é o administrador de Oakland, o condado mais rico dos subúrbios de Detroit. Sob o título “Caia morta, Detroit!”, ele reclamava da proposta ventilada pelo gerente de emergência, Kevyn Orr, de ratear com os subúrbios o prejuízo do sistema de água e esgoto municipal. Segundo Patterson, os subúrbios “não tinham nada a ver com anos de corrupção em Detroit”.
Lá pelas tantas, orgulhoso, chegou a reproduzir para a repórter uma frase de sua lavra que julgava espirituosa. Anos antes, previra que a saída de Detroit era se transformar numa reserva indígena. “Daí a gente levanta uma cerca, joga por cima o milho e os cobertores...” A repercussão foi a pior possível, mas ele manteve a declaração. “O maior incômodo foi que, de fato, sabe-se que Patterson deu voz ao pensamento de boa parte da elite branca que orbita em volta da negra Detroit”, disse-me o colunista Bill McGraw, do jornal Deadline Detroit.
Do alto de um palanquezinho improvisado, Peter Hammer também salientou a ausência de propostas para integrar brancos e negros, ricos e pobres – o que poderia acabar com a divisão histórica da sociedade. Não havia, por exemplo, previsão de moradias acessíveis nas áreas que serão as mais valorizadas. Os empregos oferecidos eram para profissionais qualificados, de alto nível de escolaridade – sobrando para o grosso da população postos subqualificados nos projetos agrícolas.
Em sua opinião, emulavam-se velhas práticas de segregação e privilégio para uma minoria. “As linhas de transporte público não chegarão aos bairros mais distantes e carentes”, comentou. “E as estradas, mais uma vez, serão construídas cortando vizinhanças residenciais”, disse. A novidade, ele ironizou, era que, dessa vez, “os moradores dos subúrbios terão uma linda floresta para reduzir a emissão de carbono dos carros até chegarem à cidade”, afirmou. Segundo ele, era fácil identificar quem ganhava e quem perdia com o plano. “Eles falam que os moradores não serão realocados, mas ficar no meio do nada é uma opção aceitável?”, indagou.
Na saída da palestra, meu cicerone, o médico iraniano Ali Moiin – uma versão jovem do ator Yul Brynner, membro do conselho do museu e da ópera, uma locomotiva social de Detroit –, propôs um passeio. “Eu quero te mostrar uma coisa”, disse.
Entramos no carro. Vinte minutos depois estávamos no entroncamento da rua Alter com a avenida Jefferson, no lado leste, que assinala os limites da cidade
de Detroit com o subúrbio de Grosse Pointe, um bucólico conglomerado de casas vitorianas, onde mais de 90% dos moradores são brancos. O cruzamento é conhecido pelos locais como o “Muro invisível de Berlim”. “Você vai ver o que é segregação de verdade”, disse Moiin.
Avançamos na longa avenida com ruas transversais de ambos os lados. À esquerda, a calçada em frente aos charmosos sobrados estava limpa e a iluminação de rua era a de um shopping center. À direita, havia mais de meio metro de neve acumulada, restos de casas abandonadas e um breu de dar medo. Um lado era o rico; o outro, o da pobreza total. Ambos eram separados por uma única rua.
Seguimos em frente e ele se exaltou: “Rua Goethe, fechada! Mack, fechada! Maryland, fechada!” De sete ruas em menos de 1 quilômetro, quatro erguiam barreiras para impedir o acesso ao subúrbio de quem está do lado de Detroit. Em uma havia um muro, noutra uma cerca, duas depois, uma barricada de toras de cimento. “Enquanto você encontrar uma situação dessas em pleno século XXI, acho inútil falar em renascimento de Detroit”, afirmou.
Em 2010, a queda da população de Detroit atingiu o ápice. De quarta maior cidade do país, havia declinado para a 18ª posição. Três anos depois, Detroit se tornava a maior cidade dos Estados Unidos a declarar falência.
Por volta de uma da manhã, com a temperatura beirando os 20 graus negativos, um enorme engarrafamento de carros de luxo – que incluía três Aston Martins, duas Maseratis e dezenas de grandes utilitários – se formou em frente ao Instituto de Artes de Detroit. Dezenas de manobristas corriam de um lado para o outro, entregando as chaves aos proprietários. Descendo as escadarias com as máscaras nas mãos, eles entravam nos carros e deixavam a cidade rumo aos subúrbios.
13 de maio de 2014
DANIELA PINHEIRO
Piauí, 92