A Teodoro Sampaio é uma rua da Zona Oeste paulistana, com trânsito pesado e
comércio variado. À medida que se sobe em direção à avenida Dr. Arnaldo, as
cadeiras e os sofás das vitrines são substituídos por jalecos, sapatos brancos,
máscaras cirúrgicas e outros itens do vestuário médico. A área de confluência da
Teodoro com a Dr. Arnaldo – e desta com a avenida Rebouças – abriga o Hospital
das Clínicas, o Instituto Médico Legal, o Instituto do Coração e a Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo.
A “Casa de Arnaldo”, como é conhecida a FMUSP, foi presidida pelo médico
Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho de 1913 a 1920. Primeiro diretor da
faculdade, o dr. Arnaldo tornou-se o maior símbolo da instituição. Todo início
de ano, 175 novos estudantes ingressam em um dos mais concorridos e conceituados
cursos de medicina do país. No vestibular de 2015, foram 14 200 inscrições tendo
a FMUSP como primeira opção – 81 candidatos por vaga. O currículo exigente e a
necessidade de dedicação integral podem ser amortecidos se os alunos morarem nas
proximidades da faculdade.
No segundo semestre de 2014, dois anos depois de ter iniciado o curso, Ana
Luiza Cunha montou uma espécie de república estudantil. Divide um apartamento
com Augusto Ribeiro Silva, a poucos quarteirões da escola. No começo, Allan Brum
de Oliveira, hoje considerado residente honorário, chegou a morar com eles, mas
o dinheiro era curto e o rapaz voltou para a casa da mãe, na Penha – um trajeto
de 21 quilômetros que pode durar mais de duas horas, dependendo do trânsito.
Nenhum dos três se vê como “filho de Arnaldo”. Ainda que a poucos metros da
instituição, estão cada vez mais distantes da escola que frequentam.
No 5º andar de um prédio antigo, o apartamento em que vivem espelha o típico
caos estudantil – plantas esturricadas, livros espalhados por toda parte. Quando
cheguei lá numa manhã de janeiro, eles haviam acabado de despertar. Os rostos
estavam inchados e os cabelos desgrenhados. Augusto se prontificou a coar um
café.
Desde o final de 2014,
a imagem da tradicional instituição acadêmica vem sendo abalada por uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Assembleia Legislativa, com o
propósito de investigar violações de direitos humanos em universidades
paulistas. Ficou conhecida como “CPI do Trote”. Até o final de janeiro, 21
estudantes já haviam prestado depoimento. Só da FMUSP foram convocados a depor
47 alunos e ex-alunos. Relatos de agressões físicas em trotes misturam-se a
ocorrências de assédio moral e sexual, além de casos de estupro em festas de
recepção aos alunos. Meses antes, no final de agosto, uma estudante da Faculdade
de Medicina da USP denunciara ao Ministério Público de São Paulo ter sofrido um
estupro em 2013. Abriu-se um inquérito civil em seguida. “A partir daí, vários
alunos decidiram contar suas experiências pessoais”, explicou o promotor Lister
Caldas Braga Filho.
Os casos relatados são de violência sexual, homofobia, machismo e agressões
físicas e morais. O inquérito em curso na Promotoria de Direitos Humanos – Área
de Inclusão Social investiga até o momento apenas violações na Casa de Arnaldo.
Diante dos depoimentos à CPI, o promotor vê a possibilidade de ampliar a atuação
do MP: “Nada obsta a instauração de outros procedimentos para a apuração de
novas denúncias, relativas a outras faculdades.” O trabalho da promotoria poderá
levar a investigações policiais dos estudantes citados como agressores.
O estardalhaço criado pela atuação do Ministério Público já havia instado a
Assembleia a agir antes mesmo da instauração da CPI. Em novembro, a Comissão de
Direitos Humanos, presidida pelo deputado Adriano Diogo, do PT, organizou três
audiências públicas sobre o tema. Os abundantes relatos de poucos alunos
dispostos a contar o que veem e vivem nas universidades foram tão chocantes que
o deputado, derrotado na eleição, buscou apoio até mesmo entre adversários
políticos para criar a CPI em pleno recesso parlamentar.
Por acordo, antes de
saírem de férias os deputados aprovaram previamente requerimentos para
convocação de 83 estudantes, ex-alunos e dirigentes de instituições de ensino.
A CPI segue seu curso quase sem plateia política, sob o comando de Diogo. Ainda
que os depoimentos estejam sendo tomados em sessões sem quórum, com a presença
de no máximo quatro dos nove integrantes da CPI, ela tem tirado a tranquilidade
de reitores. As histórias de trotes no estado de São Paulo não diferem muito das
demais faculdades do país.
O descaso do Parlamento paulista pela CPI – que será concluída com o fim dos
atuais mandatos, em 14 de março – e a precariedade com que funciona nas férias
dos deputados põem em dúvida os efeitos práticos que poderá produzir. Ainda
assim, a romaria de docentes convocados a depor sobre o tema vem pondo uma
inatingível academia na mira de artilharia pesada. Maculadas, as universidades,
em especial a USP, anunciaram ações contra os trotes e abriram sindicâncias para
apurar as denúncias.
É nos coletivos de minorias (LGBT, feministas e negros) em construção nas
universidades que os estudantes têm encontrado amparo, sobretudo após a onda de
hostilidade que enfrentam ao tornarem públicas as denúncias. O coletivo
feminista Geni, que Ana Luiza ajudou a fundar, articulou-se na faculdade depois
que uma denúncia de violência sexual foi tratada com descaso pelas autoridades
acadêmicas. Esse grupo já ouviu relatos de nove estupros ocorridos entre 2006 e
2014 na FMUSP.
Imagens de jovens com o
corpo pintado e os cabelos raspados, historicamente associadas ao trote
universitário, revestem-se de uma candura quase angelical diante dos relatos de
depoentes na CPI. Muitos desses depoimentos foram colhidos em sessões secretas.
A piauí acompanhou três delas, com o consentimento das
vítimas.
À exceção de dois ou três termos, como bixo e pedágio, as
diferentes práticas do trote compõem um glossário cujo significado costuma ser
conhecido apenas de universitários e docentes:
* Bixo: estudante recém-chegado, do sexo masculino.
* Bixete: nome dado às mulheres calouras.
* Pascu ou pasta: ritual de passar pasta de dente no ânus
do novato; às vezes emprega-se pimenta.
* Rancho: mistura de comida estragada e vômito – prática muito comum
em Piracicaba, Sorocaba e cidades com repúblicas famosas e tradicionais – que os
recém-admitidos são obrigados a comer em festas de boas-vindas. A gororoba é
ingerida com bebidas da pior qualidade, de altíssimo teor alcoólico. Os novatos
comem até vomitar, e o vômito de cada um vai se somando ao rango infecto,
oferecido ao próximo da fila.
* Mastiguinha: comida que vai da boca do veterano para a do
calouro.
* Kossucos: misturas alcoólicas coloridas, de composição
misteriosa.
*Ice on the balls: prática de encher de gelo cuecas dos novos
estudantes.
* Funça: imposição de trabalhos diversos aos novatos, incluindo a
faxina das casas dos veteranos; ato compulsório no 1º ano.
* Pedágio: coação a pedir dinheiro nas ruas; diante dos veteranos,
os novatos, muitas vezes quase nus, se ajoelham e recebem cerveja na cara,
latinhas (vazias ou cheias), e por vezes até fezes e urina.
* Sequestro: ritual de colocar o estudante recém-chegado numa sala,
nu, e obrigá-lo a encenar posições sexuais, ou segurar frutas entre as
nádegas.
* Mocós: facilidades que o estudante novato poderá obter no futuro;
regalias concedidas a quem viveu anos sob um pacto silencioso.
Há ainda práticas recorrentes sem nomes consagrados. Um ex-estudante de
agronomia contou à CPI ter sido vítima de aplicação de agrotóxicos na pele, rito
que disse ser comum na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
(Esalq-USP).
É praxe dar apelidos pejorativos aos novatos e às turmas. A
estudante Ana Luiza contou à CPI que, na sua semana de recepção, as garotas
recém-chegadas, sentadas na entrada da faculdade, foram obrigadas a gritar a
sílaba “bu”. De pé, aos pulos, os veteranos as cercaram, berrando a mesma
sílaba: “Bu, bu, bu, bu, bu.” Entoavam então o refrão: “Buceta eu como a seco;
cu eu passo cuspe; medicina só na USP.”
Quando o assunto vem à tona, as universidades reagem protocolarmente, dizendo
que o trote foi abolido. Mas dos depoimentos dos estudantes emergem rituais
abjetos. O trote não é, necessariamente, aplicado na semana de recepção, quando
os olhares do corpo docente estão mais atentos. No caso da medicina, por
exemplo, os estudantes podem passar os primeiros meses na universidade
incólumes. No 2º ano, quando já são membros de algumas associações estudantis da
faculdade, os abusos acontecem. A repetição dessas práticas ao longo de anos
leva a crer que sejam rituais enraizados na cultura universitária.
Augusto trouxe quatro
xícaras desemparelhadas e uma garrafa térmica, dispondo-as na estante da sala
para que cada um se servisse. Além dos dois moradores, também estava presente
Allan, o ex-inquilino que tem passe livre para dormir no apartamento.
Conversamos no dia seguinte a seu depoimento à CPI. Ele havia passado duas
noites consecutivas em claro. Depois de falar aos deputados, seguiu para um bar
na esquina da república com um grupo de amigos – sobraram poucos, todos
igualmente envolvidos nas denúncias de abusos. Tomaram algumas cervejas e depois
subiram ao apartamento para continuar a conversa. O café vinha a calhar.
As histórias dos dois rapazes se cruzam. Ambos pertenceram ao Show Medicina,
tradicional espetáculo organizado por veteranos do curso, que existe desde 1944.
Também foram membros da Atlética (Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, a
AAAOC), clube esportivo gerido por estudantes mais velhos, localizado a poucas
quadras da faculdade. Essas duas instituições foram citadas em relatos de
violações aos direitos humanos.
No primeiro vestibular que prestou, Allan entrou em psicologia na USP. Largou
o curso depois de duas semanas. Paulista, morador da Zona Norte, batalhou para
ganhar bolsa integral num cursinho. Só passou para medicina no segundo
vestibular. A semana de recepção, em 2012, transcorreu sem traumas. “Depois da
morte do Edison não tem mais trote quando você entra. Fui bem tratado.”
A morte à qual Allan se referia é a de Edison Tsung Chi Hsueh, que se afogou
em 1999 na piscina da Atlética. Na época, o delegado responsável pelo caso
descartou morte acidental e suicídio. Estudantes fizeram denúncias anônimas
sobre o trote violento daquele dia.
A família contou que o rapaz não sabia
nadar. A ação penal contra quatro estudantes apontados como os responsáveis pela
morte de Edison foi trancada pelo Superior Tribunal de Justiça em 2006 por falta
de provas. O Ministério Público Federal recorreu, mas em junho de 2013 o Supremo
Tribunal Federal convalidou a decisão do STJ. Nenhum estudante foi punido.
A tragédia levou a USP a divulgar uma portaria em abril de 1999, dois meses
após o corpo de Edison ter sido encontrado: “Não será tolerado qualquer tipo de
manifestação estudantil que cause, a quem quer que seja, agressão física, moral
ou outras formas de constrangimento, dentro ou fora do âmbito da universidade.”
Tais atos podem ocasionar expulsão ou suspensão, reitera a norma.
Questionada sobre quantas sindicâncias para apurar violências abriu na última
década, a Faculdade de Medicina da USP forneceu a piauí dados a
partir de 2011. Nos últimos quatro anos a faculdade instaurou sete sindicâncias
– quatro sobre abusos sexuais –, sendo que cinco dessas investigações começaram
no ano passado, quando a imprensa passou a divulgar os casos que chegaram ao
Ministério Público. Não há registro na faculdade de nenhuma expulsão ou
suspensão por casos de violência.
O primeiro trote no Brasil data de 1831, com registro de morte de um
estudante de direito em Olinda, Pernambuco, a facadas. Filhos de oligarcas
reproduziam aqui práticas comuns em Coimbra e outros centros europeus. Trotes
foram denunciados já no século XV: em Heidelberg, na Alemanha, os calouros eram
obrigados a comer fezes. Mais de cinco séculos depois, a brincadeira parece
ainda não ter terminado. No ano passado, Barack Obama pediu ao Departamento de
Educação que estabelecesse uma vigilância permanente nas universidades. O
objetivo principal é acompanhar se denúncias de violências, sobretudo sexuais,
estão sendo apuradas. Há hoje mais de 80 instituições acadêmicas na mira do
governo americano.
Objetivo e autocentrado,
Augusto entrou na universidade aos 17 anos. Natural de Santos, passou a
adolescência vendo os pais se desdobrarem para garantir seu estudo em escolas
particulares. No primeiro vestibular, para engenharia mecânica e naval na USP,
em 2009, teve aprovação imediata. No entanto, preferiu o Instituto Militar de
Engenharia, no Rio de Janeiro, confiando que o soldo lhe daria independência
financeira. Lá, foi submetido a um “processo de adaptação” de humilhações
diárias, exercícios físicos extenuantes e privação de sono. Suportou por um ano.
Ao voltar para Santos, conseguiu bolsa num curso pré-vestibular. Em 2011, estava
na FMUSP.
Quando fala, Augusto tem o hábito de estalar os dedos e em geral dirige o
olhar para o chão. Disse que sempre relevou as violências que sofreu na academia
militar. “Não me afetavam, passei indiferente pelos trotes.” O primeiro trote na
medicina ocorreu no “Churrasco da Invasão”, promovido pela Atlética.
Todos os anos a diretoria do clube convida os calouros para um evento de
confraternização. O nome oficial é Churrasco da Diretoria. Os dirigentes da
Atlética entram na sala dos calouros durante as aulas e fazem o convite,
enfatizando que é tudo de graça e pedindo que os estudantes não falem sobre a
comemoração com seus pais.
Até a morte de Edison, o evento ocorria na Atlética,
mas a comoção nacional fez com que a USP impusesse restrições às festas. Os
estudantes transferiram as boas-vindas para locais clandestinos. Em ônibus
fretados, os calouros partem com destino ignorado. Em geral desembarcam em
chácaras próximas da capital, e lá ocorrem trotes mais pesados.
À meia-noite, veteranos da escola aparecem de surpresa no local, criando um
clima de tensão. Os novatos são jogados na piscina. Augusto lembrou: “Era uma
noite muito fria e eu não consegui ficar na piscina. Foi em Cotia. Tudo é feito
na surdina desde a morte do Edison. Saí da água e chegou um veterano, falando:
‘Cara, você é veado?’ Fiquei meio ofendido com isso.” O entrevero terminou num
bate-boca, sem agressão corporal.
O tipo físico de Augusto virou motivo de chacota. De pele morena, cabelos
lisos pretíssimos e nariz pronunciado, parece ter ascendência indígena. Parte de
sua família é de imigrantes portugueses, parte veio do Rio Grande do Norte.
Desde o Churrasco da Invasão, ele virou “Léo Moura”, referência ao jogador do
Flamengo, negro. Ele quis ir ao churrasco para se integrar à Atlética: “Na
escola, sempre fui um dos poucos não brancos, e isso se repetiu na USP.
Precisava me integrar.”
Augusto entrou para a Atlética no 1º ano, no atletismo. “É a parte boa. Não
te agridem, não dão apelidos. Só fazem a cobrança esportiva.” Depois migrou para
a equipe de handebol, na qual treinou outros dois anos. Tornou-se diretor de
modalidade (DM), e aí sim sentiu a violência de perto. DMs são estudantes que
ambicionam ocupar cargos de confiança na Atlética, e por isso têm a lealdade
testada no rito do pascu. “Esqueci de comprar uma Coca-Cola, para uma social do
time, e eu e dois DMs levamos pasta naquele dia. Quando você é DM está sujeito a
violências. Não é mais calouro, então não é mais considerado trote. Esse é o
problema da palavra trote. A violência não precisa ser num ritual de
recepção.”
No dia do pascu, o DM é
conduzido a uma sala da Atlética. Estão presentes os alunos do 5º e do 6º anos
que foram dirigentes do clube e os internos (estudantes do último ano da
graduação que estão no internato, estágio obrigatório) que fazem parte da
associação. Só aplica pasta quem já foi submetido ao mesmo rito. Novato na
turma, o DM abaixa as calças e se deita de bruços numa mesa. Os futuros médicos
simulam um procedimento cirúrgico. Há sessões em que usam lençóis cirúrgicos e
luvas, roubados do Hospital das Clínicas.
Para ilustrar a prática, Augusto mostrou um vídeo. Um DM que havia se
rebelado foi submetido a um ritual mais violento do que o usual, filmado com
o intuito de amplificar a humilhação. Em vez de dentifrício, esfregaram pedaços
de pizza em seu ânus. Antes, recebeu fortes tapas nas nádegas e nas costas,
enquanto todos os presentes gritavam, como se participassem de um rito
tribal.
Augusto disse que ficou “puto” após a primeira pasta. Porém, como de costume,
relevou. “Muita gente encara isso como um processo inclusivo, mas não é.” A
segunda sessão de pascu ocorreu meses depois. Alegaram que ele se atrasara para
um ensaio, e havia chegado com olheiras e as mãos sujas de tinta – na época ele
trabalhava como cenógrafo do Show Medicina. O segundo pascu foi difícil de
relevar: “Fiquei revoltado, achei que não teria que passar por isso de novo.” E
mais: ele se recusava a aplicar pasta nos colegas. “Comecei a reclamar muito e
deixei de ser considerado da equipe.” No 4º ano de curso, abandonou a
Atlética.
O rapaz tinha um histórico escolar exemplar. No 1º ano de medicina, tirou
boas notas. A partir do 3º, começou a beber compulsivamente, as notas pioraram.
Hoje, apático, sente-se “sem vontade de fazer as coisas”. Acredita que está
deprimido, mas diz ter “fobia de remédios psiquiátricos”. Pegou DP (dependência)
de propósito em algumas disciplinas para atrasar o curso. Seu objetivo é ter
aulas na mesma turma em que estarão alguns dos alunos que, como ele, denunciaram
abusos.
O primeiro trote de Allan
Brum de Oliveira também foi no Churrasco da Invasão, em 2012. Também foi jogado
na piscina. Os alunos já estavam dentro da água quando os veteranos começaram a
jogar lança-perfume, atingindo seus olhos. Sofreu uma queimadura na esclera,
tecido fibroso externo que reveste o globo ocular. Outro calouro teve queimadura
em torno do olho.
O jovem conseguiu sair da piscina e, tateando o chão, ajoelhado, encontrou
uma pia. A ardência era insuportável, ele começou a jogar água nos olhos. Foi só
então que um diretor da Atlética o acudiu e foi procurar soro fisiológico. Ele e
o outro calouro com queimadura nos olhos foram levados a São Paulo de madrugada,
mas não chegaram a ir para o hospital. Allan dormiu na casa de um diretor da
Atlética. “Acordei com os olhos cheios de pus e me encaminharam ao
oftalmologista.” Teve que tomar antibiótico por duas semanas.
Allan se integrou à Atlética logo no início do curso. Treinava três
modalidades esportivas. No segundo semestre, interessou-se pelo Show
Medicina.
O Show Medicina, criado na década de 40 pelo então estudante Flerts Nebó –
médico ainda vivo, hoje com 94 anos –,teve origem quando um estudante foi à
escola com um saxofone e fizeram troça sobre o instrumento. Divertiram-se tanto
que pediram autorização ao diretor para usar o teatro. Nos encontros, faziam
piadas sobre os professores. Foi então que surgiu o espetáculo, que aborda a
rotina médica de forma caricatural.
O show ocorre em outubro, mas os ensaios começam em agosto. Coordenado pelos
alunos do último ano, dele participam apenas estudantes do sexo masculino:
mulheres não entram. Como não podem encenar, elas ficam na “costura”,
responsáveis pela confecção das fantasias dos “estrelos”, como são chamados os
veteranos. É um espetáculo essencialmente masculino.
Allan foi um dos dez
calouros que, em 2012, passaram na seleção para participar do show. O exame de
admissão consiste numa simulação do vestibular, uma prova escrita com perguntas
sobre filmes e obras literárias. “É uma zoeira. Depois eles rasgam as provas, te
humilham, te fazem beber muito.” Terminada a prova escrita, os postulantes são
conduzidos ao teatro da universidade, no escuro, e lá são submetidos ao trote.
“Te mandam ficar pelado, jogam bebida em você. No meu ano teve uma simulação de
estupro.” Os veteranos que fazem parte do show encenam esquetes no meio da
baderna, um espetáculo improvisado.
Ao final, os holofotes se acendem e os admitidos recebem os parabéns. Agora
são do Show Medicina. No total, cerca de 120 estudantes de medicina do 1º ao 6º
anos fazem parte do show. No 1º ano, os calouros não participam do espetáculo,
cuidam apenas da limpeza. Logo no primeiro dia são avisados de que é segredo de
Estado o que se passa ali.
Quem romper o silêncio estará condenado ao “suicídio
social”, termo citado de forma recorrente. Para convencer os novatos a se
submeterem ao pacto de silêncio, os veteranos dizem que dedos-duros serão
condenados à exclusão na universidade. Terão dificuldades de convívio social,
não serão convidados para as festas, poderão ser vetados em residências médicas
e estarão sob risco de forte hostilidade na época do internato, o estágio
obrigatório em hospitais e postos de saúde, no último ano do curso.
A partir do 2º ano em que participa do Show Medicina, o estudante deixa de
ser calouro. É autorizado a abandonar as tarefas de faxina e pode entrar em
outros grupos. Allan se integrou ao coral e ao balé. Vieram outros trotes. O do
coral ocorre sempre no 4º andar da faculdade. O aluno é “sequestrado”, colocado
numa cadeira e obrigado a ingerir bebida alcoólica em grande quantidade, o dia
inteiro, sem trégua.
Alguns relatos mencionam episódios em que os veteranos
introduzem a bebida goela abaixo de calouros já tão embriagados que não
conseguem erguer a mão. Esses trotes terminam frequentemente em quedas,
acidentes e desmaios. Allan teve traumatismo cranioencefálico e quebrou um dente
molar. Acordou no Hospital das Clínicas quando fazia uma tomografia. Viu colegas
quebrarem costelas, dentes, cóccix e romperem ligamentos dos joelhos.
Augusto também passou pelo mesmo ritual. Foi amarrado na cadeira. “Disseram
que eu estava violento.” Com as mãos atadas, teve sorte de não estatelar o rosto
no chão. Em outro sequestro, do grupo de balé, Allan e outros dois jovens
ficaram nus e foram obrigados a simular posições sexuais. “Era performático,
encarei como brincadeira.” Hoje, quando pensa no fato, acha “uma bosta”. “Eu
sempre ficava com raiva por dentro. Eram uns filhos da puta.”
No 1º ano em que integrou o show, Allan foi apresentado ao SS Black-Tie, o
grupo incumbido do Social do Show, daí o sugestivo SS. Na terceira semana de
ensaio, os veteranos dizem aos calouros que eles irão jantar no Restaurante
Fasano com os “sapos”, renomados médicos que já passaram pelo show. Allan se
empolgou. Quebrou o silêncio e revelou à mãe que naquele dia iria a um
restaurante muito chique. “Eu era um idiota.”
Os dez calouros embarcaram em carros de um grupo seleto de veteranos e foram
levados a um motel na rodovia Raposo Tavares. Chegando lá, prostitutas os
esperavam. Os veteranos protagonizaram relações sexuais em público. Aos
calouros, a participação na suruba é facultativa. Allan se recusou. Augusto
passou pela mesma situação – e, envergonhado, confessou que não resistiu: como
questionavam sua masculinidade na escola, viu na ocasião uma oportunidade de
exibi-la.
Allan acredita estar com depressão. Seu desempenho acadêmico foi afetado nos
últimos anos. “Pensei que quando eu estivesse no 6º ano eu poderia abolir o SS,
ou abolir uma prática de trote, que quando eu fosse veterano eu poderia mudar
aquilo. Hoje me dou conta de que sofri sérios abusos. Na época, não
percebi.”
O Show Medicina é uma
pessoa jurídica, responsável por suas próprias ações. Suas atividades,
financiadas por médicos que já integraram o espetáculo, são de responsabilidade
de seus membros. “A diretoria [da FMUSP] não tem conhecimento do
conteúdo dos espetáculos, não assiste aos shows, tampouco os docentes
participam”, esclareceu a direção da faculdade quando questionada sobre as
violências sofridas por alunos.
A piauí fez contato por telefone com o estudante Erikson Augusto Eckert Hoff,
do 4º ano, eleito para coordenar o show de 2015. Recebi dele um torpedo após ter
deixado uma mensagem na secretária de seu celular. Em resposta a dez questões
que lhe enviei por e-mail, perguntando sobre as práticas relatadas por Allan e
Augusto, ele foi lacônico:
“No que diz respeito à minha gestão, assumo o
compromisso de coibir qualquer excesso ou violação aos direitos humanos.
Mudanças estão sendo debatidas internamente entre todos os participantes do show
(mulheres e homens) e também junto à direção da faculdade.”
A diretoria da Atlética se pronunciou por intermédio de seu vice-presidente,
Lucas Severo Pecorino. Num telefonema, depois de informar que o presidente Diego
Vinicius Santinelli Pestana estava fora do país, ele concordou em responder por
e-mail, em nome da associação. Pecorino afirmou que nunca foi submetido ao
pascu, tampouco o aplicou em algum colega. “A AAAOC, como instituição, nunca
compactuou com essa prática, mas assume a limitação de poder da diretoria no
controle das ações de todos os seus participantes.” Sobre o Churrasco da
Invasão, explicou que “não passa da chegada inesperada dos veteranos à
confraternização”.
Pecorino admitiu que episódios de trote ocorriam com mais frequência antes da
trágica morte de Edison Hsueh. “Desde que entrei na universidade, nunca sofri
nenhum tipo de trote.” Insistiu que a faculdade e suas instituições lutam “há
anos por um ambiente acolhedor e livre de abusos e violência”. Admitiu que a
direção do clube soube de um caso de estupro, em 2011, e tomou “todas as
providências cabíveis”. As atuais denúncias seriam sinal de que “há algo errado
e isso precisa ser investigado”. Mas fez um desabafo: os meios de comunicação
generalizam os fatos e a imagem da Atlética é atingida indevidamente, pois há
uma diferença entre “condutas individuais e práticas institucionais”. “A AAAOC
repudia todo e qualquer tipo de trote ou violação dos direitos humanos e nunca
adotou qualquer conduta institucional nesse sentido.” Pecorino finalizou dizendo
que a apuração dos fatos é de interesse comum, tanto da Atlética como das
vítimas que fizeram as denúncias.
“Me conte o que você sabe”,
pediu o médico Drauzio Varella quando cheguei a seu consultório numa tarde de
janeiro. O termômetro próximo ao Hospital Sírio-Libanês marcava 38 graus
centígrados. Apesar do calor extenuante, ele vestia camisa social amarela de
mangas compridas, combinando com o tom da gravata. Educadíssimo, pediu desculpa
por uma leve tosse, provocada pelo ar-condicionado.
Um vídeo gravado por Drauzio em 2014 já havia sido exibido em três sessões da
CPI do Trote. Nele, o médico formado pela USP em 1967 dizia que se sentira
envergonhado ao tomar conhecimento de estupros e violências na faculdade. “O
trote está por trás de tudo. É no trote que os veteranos se impõem e colocam os
calouros numa situação de inferioridade. Isso acaba perdendo o limite e vai até
onde for parar a imaginação do imbecil que está aplicando”, me disse em seu
consultório.
Drauzio Varella foi presidente do Show Medicina em 1964, ano do golpe
militar. Lembra-se com detalhes da tensão do espetáculo, quando os estudantes
estavam sob ameaça de prisão caso fizessem piadas com “autoridades militares
constituídas”. Irreverentes, os jovens ignoraram o risco. Ninguém foi preso.
Foram aplaudidos de pé.
O doutor participou do Show Medicina do 1º ao 6º anos de
faculdade. Considerava o grupo uma “fraternidade de amizades duradouras, que de
alguma forma se protegia”. Não havia “vestibulares” no show e os calouros, se
quisessem, poderiam ser “estrelos”. Ele reconhece que “havia um machismo
evidente”, mas diz que naquela época “nos ensaios se falavam palavrões, se
faziam as piadas mais abjetas, e aí a presença de mulheres poderia inibir”.
Considera a interdição feminina no século atual “absurda”.
Drauzio contribuiu até 2014 para a realização do show. Há mais de vinte anos
não assiste a nenhum, depois de perceber que haviam se transformado numa “coisa
horrível, bagunça de moleques”. “Mas continuei assinando o Livro de Ouro do
Show, porque fazia parte da tradição. A última vez foi no ano passado.” O médico
afirmou que do seu bolso “nunca mais” sairá um tostão. O tesoureiro do show
passa todo mês de agosto por consultórios de conceituados doutores para recolher
doações. Geralmente os médicos dão 500 ou mil reais. Quantos médicos? “Nossa,
são muitos.” A reação mais indignada de Drauzio Varella surgiu quando lhe
perguntei sobre o SS Black-Tie. “E isso, o que é?” Ao saber da participação de
prostitutas no evento, não se conteve: “São um bando de boçais. E o dinheiro vem
de idiotas como eu.”
O médico afirma que não sofreu trote. Só passou pela ameaça inocente de ter
que pagar uma conta de calouros no bar, o que não se concretizou. Ele diz ouvir
de colegas que as denúncias de violências ganharam repercussão ampla apenas por
terem ocorrido na USP. “Lógico que a repercussão é maior. E daí? Se eu cometo um
erro médico no Sírio e morre um doente, a repercussão vai ser maior do que se
for num hospital de Caieiras.” Ponderou que algo estranho se passa com parte da
elite estudantil do país. “É essa coisa de entrar na Faculdade de Medicina e
achar que pode qualquer coisa, que está acima da lei – não é porque o cara
estudou nas melhores escolas e entrou para a USP que ele pode cometer um crime.”
Diante dos casos de estupro, foi categórico: “Se alguém foi estuprado, tem que
chamar a polícia e prender o agressor.”
A estudante de medicina
Marina Pickman, de 24 anos, prestou depoimento à CPI numa sessão secreta. Quando
a abordei na Assembleia Legislativa, ela acabara de relatar aos deputados dois
estupros que sofreu em 2011, ano em que entrou na USP. Marina também é fundadora
do Geni, o coletivo feminista. O grupo se fortaleceu em 2014 depois de
questionar abertamente o resultado de uma sindicância que apontou como “sexo
consensual” uma denúncia de estupro feita em 2013. O caso foi reaberto na USP
após a CPI.
A conclusão, agora, foi de que houve violência sexual. O diretor da
FMUSP, José Otávio Costa Auler Júnior, disse à CPI que haverá punição exemplar
para esse caso. A expectativa é que a faculdade expulse alunos pela primeira vez
na história.
Com a visibilidade política do Geni em ascensão, a hostilidade crescia.
Marina não aguentou a pressão e trancou o curso no início do segundo semestre de
2014. Começou a pensar em suicídio.
Na Assembleia, Marina me disse que poderíamos conversar dias depois, na sua
casa. Ela mora num bairro de elite, cuja rua é fechada e a entrada
supervisionada por seguranças. Quando cheguei, quem abriu a porta foi Felipe
Scalisa, um dos estudantes mais atuantes no movimento que resolveu mostrar a
cara e contar o que ocorria. Homossexual, ele se tornou ativista contra a
homofobia no campus e é um dos idealizadores do coletivo Construção, hoje com 36
membros, criado no início de 2014 para debater políticas públicas de saúde e
educação.
Scalisa foi alvo de escárnio no último Show Medicina – um “estrelo” encenou
um caricato homossexual no show e todos sabiam que era referência a ele. Já
tomou tapa na cara em festa universitária e é um dos mais dispostos a denunciar
as violências. O custo é alto: diagnosticado com depressão, está sendo medicado
e vê seu rendimento universitário em declínio. Naquele dia, disse que estava
pensando em trancar a matrícula. Em 2011, a maior alegria de sua vida foi ter
passado em primeiro lugar no vestibular para medicina na Unifesp e em quinto no
vestibular da USP.
Esguia, de traços delicados e voz meiga, Marina apareceu na sala sem sapatos,
vestindo uma bata colorida. Estudou no Colégio Santa Cruz, um dos mais
conceituados de São Paulo, e na segunda tentativa passou em medicina em várias
universidades. Optou pela USP. Na semana de recepção, sabedora do trote, ela
ficou tensa. No terceiro dia em que pisou no campus, sofreu um abuso sexual.
Houve um happy hour na Atlética e ela bebeu muito. À noite, quis
voltar ao Centro Acadêmico e um diretor social da Atlética se ofereceu para
acompanhá-la. (Marina me pediu que os nomes dos agressores não fossem citados
nesta reportagem. Na sessão secreta da CPI, seus nomes foram ditos e todos serão
convocados a depor.) “Antes de sairmos da Atlética, ele me puxou para uma
salinha escura. Começou a me agarrar, a gente caiu no chão, e ele passando a mão
em mim. Eu ofereci resistência, mas com bastante dificuldade, porque estava
embriagada. Foi mais ou menos isso.” Ela guardou segredo sobre o fato por mais
de um ano.
Em abril, dois meses depois do primeiro trauma, Marina foi vítima de estupro
na festa “Carecas do Bosque”, nas dependências da Atlética. Por volta das cinco
da madrugada, já bêbada, foi ao banheiro. Na volta, passou na “barraca do judô”
– as bebidas são vendidas em diferentes tendas, que alojam os cafofos,
quartinhos com colchões que alguns dos diretores da Atlética usam para encontros
sexuais.
Marina disse que tomou mais duas doses de tequila, e depois apagou.
Recorda-se apenas do atendimento médico no pronto-socorro do Hospital das
Clínicas, por volta das oito da manhã do dia seguinte, e de uma diretora da
Atlética que lhe dizia: “Achamos que você foi abusada.” Até hoje Marina vive sob
a angústia de tentar reconstruir detalhes do que aconteceu naquela noite. Ela
denunciou o estupro à 1ª Delegacia da Mulher e foi aberto inquérito policial
ainda em 2011.
“A porra do trote deixa
marcas profundas na alma das pessoas”, desabafou Marco Akerman, hoje professor
titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, quando conversamos em sua sala de
docente. Em 2010, ao assumir a vice-diretoria da Faculdade de Medicina do ABC,
em São Paulo, Akerman tomou pé da dimensão do problema. Em sua caixa postal
começaram a pipocar e-mails anônimos de pais denunciando violências, entre elas
a prática do pascu num local chamado “educandário”. Atendeu a vários telefonemas
anônimos de mães, algumas desesperadas.
Desde 1986, quando entrou para a Faculdade de Medicina do ABC como titular de
saúde coletiva, as queixas de alunos sobre trotes eram uma sangria desatada. Mas
o médico só teve respaldo para entrar de cabeça na luta contra as práticas
quando chegou à diretoria. Depois das denúncias anônimas, entrou numa sala com
mais de 100 alunos, no Diretório Acadêmico, e perguntou se o pascu existia.
Silêncio absoluto, até que um estudante não se conteve e gritou: “Não aguento
mais a covardia dos meus colegas.” E, em seguida, os rapazes disseram ao
professor: “Não vamos dar nomes de quem fez, mas se você descobrir vai mesmo
fazer alguma coisa com eles?” Akerman endureceu: comprometeu-se a renunciar ao
cargo caso não aparecessem os nomes de agressores.
No dia seguinte, os alunos receberam um questionário com duas perguntas: “1)
Você foi vítima de pascu?; 2) Você já foi humilhado na universidade?” Foram
identificados catorze agressores. Feitas as sindicâncias, dois alunos foram
expulsos e quatro suspensos. Os expulsos conseguiram, na Justiça, o direito de
reintegração à universidade sob alegação de cerceamento de defesa.
A partir de 2011, a Faculdade de Medicina do ABC estabeleceu mudanças
radicais. Alunos do 6º ano foram impedidos de entrar na sala dos calouros,
aplicaram-se normas de controle rigoroso de festas e ensaios de bateria, foram
instaladas câmeras de segurança por todo o campus. O caso do ABC virou livro,
organizado por Akerman e pelas docentes Silmara Conchão e Roberta
Boaretto: Bulindo com a Universidade: Um Estudo sobre o Trote na
Medicina, disponível na internet. No dia em que prestou depoimento à CPI, o
professor provocou colegas docentes: “Não façam do trote um escudo para as
mazelas de suas instituições.”
Nos primeiros oito minutos
de seu depoimento à CPI, no dia 15 de janeiro, o diretor da FMUSP, José Otávio
Costa Auler Júnior, discorreu sobre as “proporções endêmicas” da violência
sexual no mundo. Citou artigos sobre estupros e vulnerabilidade feminina
publicados no New York Times e na mais conceituada revista científica
do Reino Unido na área médica, The Lancet. Só então o professor Auler,
mineiro formado em medicina pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro,
falou de seu quintal: “É estarrecedor o que temos ouvido. Ficamos até
envergonhados. Nunca nos omitimos em relação a nenhum dos fatos que nos chegam
oficialmente.”
O professor enumerou medidas tomadas
recentemente, que incluem a reformulação
curricular do curso. Citou a incorporação de disciplinas sobre “humanidades,
respeito ao próximo e tolerância”. Ressaltou que o consumo de álcool dentro da
faculdade e na Atlética foi vetado, e as festas, suspensas desde dezembro.
Haverá alterações na semana de boas-vindas, com palestras sobre o trote e suas
consequências. Serão distribuídos folhetos no ato da matrícula na USP, com
orientações sobre denúncias a atos violentos. Foi criado um novo portal do
estudante, com informações claras, diretas e acessíveis, bem como uma ouvidoria
específica na medicina. O médico admitiu que a instituição precisa “aperfeiçoar”
o processo para que alunos dispostos a fazer denúncias se sintam acolhidos e
protegidos.
Seis dias depois da presença de Auler na Assembleia, foi a vez de Marco
Antonio Zago, o reitor da USP, sentar-se na cadeira da CPI. Chegou acompanhado
de nove docentes em cargos de direção na universidade. Enalteceu a “história
respeitável da USP em defesa dos direitos humanos” e afirmou que as medidas
tomadas até o momento são adequadas e suficientes para reagir às denúncias. A
mais importante iniciativa, ressaltou Zago, foi a criação, em dezembro, de uma
“nova Comissão de Direitos Humanos” da USP, com especialistas “renomados e
independentes”. Curiosamente, a USP instalou tal comissão pela primeira vez em
1998.
O ex-ministro José Gregori, nomeado em dezembro passado por Zago para
presidi-la, ocupa o mesmo posto desde 2010 – também foi escolhido pelo reitor
anterior, João Grandino Rodas. À CPI Zago a definiu como a “agência reguladora”
que supervisionará comissões de sindicâncias, ações de dirigentes diante de
denúncias, assegurando assistência ao denunciante e amplo direito de defesa aos
apontados como agressores. Os alunos e os funcionários terão representantes na
“nova comissão”, cujo escopo de atuação, segundo a USP, foi ampliado.
O reitor lembrou a portaria de 1999, que proíbe o trote: “Todos sabemos que
há leis que funcionam plenamente e outras não.” Zago demonstrou indignação ao
ver manchado o nome da USP e pediu aos deputados que não fizessem
generalizações. “Não tenho dúvidas de que devem existir estudantes de medicina
que são criminosos, assim como existem estudantes de engenharia que são
criminosos, como existem políticos que são criminosos, e banqueiros que são
criminosos.”
O inquérito policial em
curso aponta que Marina foi estuprada. Mas, além de um ex-funcionário
terceirizado da USP que foi encontrado em cima dela, a estudante não sabe ao
certo quantos a violentaram, se algum estudante também o fez e em que
circunstâncias. A jovem suspeita que tenha sido drogada. Lembra que horas depois
de perder a consciência, já no Hospital das Clínicas da USP, foi convencida por
um veterano a tomar a medicação retroviral, “por via das dúvidas”. “Esse
veterano começou a falar ao infectologista que me encontraram desacordada, e
havia um cara em cima de mim, com a calça abaixada. Ele foi reticente. Aí que eu
entendi.”
Ao chegar em casa, ela contou à mãe que havia sido estuprada. Levada à
ginecologista, foram constatadas lacerações na vagina e no ânus. Sem validade
jurídica, o exame não foi anexado ao inquérito. O presidente da Atlética à época
disse a Marina que não havia testemunhado nada e recomendou que ela buscasse
informações com um outro estudante que estivera no clube, na barraca do judô.
Hoje formado, esse estudante lhe disse que na ocasião ela estava muito bêbada
e que os dois fizeram sexo consensual. Para deixar a moça tranquila, garantiu
que usara camisinha. Ela nem sequer se lembrava da fisionomia do sujeito. À CPI,
Marina disse hoje ter “certeza” de que ele também a estuprou. Uma estudante de
enfermagem a procurou e contou ter sido estuprada pelo mesmo veterano. O
ex-funcionário terceirizado da USP encontrado em cima da garota relatou, no
inquérito policial, que pagou a seguranças e estudantes para entrar no cafofo
onde a jovem estava desacordada.
Marina voltou à USP no mês passado. Uma semana antes de conversarmos, ela
tinha ido à faculdade para acertar trâmites burocráticos. Teve crises de
ansiedade, taquicardia e falta de ar. Não consegue andar sozinha pelo campus.
Desde o semestre passado está tomando o antidepressivo Prozac. Depois que ela
compareceu à audiência pública na Assembleia e relatou os abusos sexuais, a
diretoria da faculdade lhe telefonou e abriu sindicâncias sobre os dois casos.
Antes de depor em novembro passado, ela e alguns estudantes haviam procurado
Auler, o diretor da faculdade. “Eu falei que tinha sofrido duas violências
sexuais. Ficou por isso mesmo.”
Augusto Ribeiro Silva apareceu na casa de Marina quando já finalizávamos
nossa conversa. Os estudantes trocam mensagens pelo WhatsApp de maneira
frenética. Protegem-se, acompanham os passos uns dos outros. Dias depois de
nosso encontro em sua casa, Marina me enviou uma mensagem. Tinha ido à comissão
de sindicância da USP. “Foi bem tranquilo. Parece que agora eles estão
empenhados de fato em mudar as coisas.”
A reitoria da USP designou
o pró-reitor de Graduação, Antonio Carlos Hernandes, para falar com piauí.
Físico, com mestrado e doutorado feitos na USP, ele repetiu o mantra em sua sala
no prédio novo da reitoria: “Na USP não tem trote desde 1999; há uma portaria
dizendo que a instituição não tolera nenhum tipo de agressão.” Infelizmente,
continuou, há uma cultura, introduzida há séculos, “do tal rito de passagem”
quando se ingressa no ensino superior.
Hernandes contou ter sido vítima de trote violento: jogaram óleo queimado em
seu corpo, ele teve que pedir dinheiro na rua e foi obrigado a ingerir bebida
alcoólica. Ficou três dias internado num hospital. “Até hoje tenho problema com
cheiro de óleo, com gás, co2.” Ele acredita que não faltam canais
aptos a receber denúncias de abusos na USP.
A falha estaria na sensação de
impunidade. “Para cada denúncia que aparecer queremos saber a consequência
tomada. [...] A ideia é que não haja essa sensação de impunidade. Isso é que não
pode. Toda e qualquer denúncia tem que ser apurada. Se não fizer isso não vai
mudar nunca.” O ciclo é vicioso: o estudante não denuncia porque acha que a
faculdade vai colocar panos quentes, e a faculdade não age porque não há
denúncia formal. Quando lhe questionei sobre a possibilidade de expulsão de um
aluno, medida disciplinar extrema, ele foi taxativo: “Se demos amplo direito de
defesa ao acusado e se houve desvio e erro, fora!”
Professor doutor associado à Esalq da USP, o engenheiro agrônomo Antonio
Ribeiro de Almeida Júnior estuda o trote desde 2001. O primeiro questionário que
aplicou na Esalq pedia que os alunos citassem três práticas que achavam ser
“brincadeira” (no trote) e três que consideravam “violência”. Conclusão
imediata: “O que é brincadeira para uns é violência para outros.” A sala do
professor, que é doutor em sociologia, se transformou em delegacia de polícia e
consultório psicanalítico. Formavam-se filas na entrada. “Os alunos iam à
prefeitura da escola, à psicóloga, ao reitor, e, quando nada funcionava,
apareciam na minha sala. Lá era o fundo do poço.”
O envolvimento científico com o tema convenceu o professor a rejeitar a tese
adotada pela antropologia cultural, que aponta o trote como ritual de passagem.
Segundo ele, um ritual de passagem pressupõe a integração e a inclusão do
indivíduo ao grupo, como um igual. Mas a essência do trote, pontuou, é a
subjugação, e na hierarquia acadêmica o calouro não passará a ter o mesmo status
do veterano após ter se submetido a esse ritual. Almeida Júnior sustenta que há
dois grandes grupos de escolas: num deles, o trote é uma relação apenas entre
alunos, sem envolvimento institucional; no outro, o trote é antigo,
institucionalizado – “normalmente escolas mais masculinas, mais tradicionais,
com status social maior atribuído a seus alunos [engenharia, medicina e
direito]”. Nessas escolas, disse ele, parte do corpo docente participa da
cultura do trote, seja acobertando, seja estimulando.
O preconceito e a cultura da masculinidade agressiva – “o que muitos na
sociologia chamam de hipermasculinidade” – também favorecem o trote, afirmou o
professor. Mas ele cita como conclusão mais perturbadora de suas pesquisas a
tese de que há, no mercado, segmentos profissionais interessados em propagar a
cultura do trote. “O trote é a formação do opressor. Tem duas fases: no 1º ano
você recebe, fica quieto e obedece. E no 2º ano você passa a ser obrigado a
aplicar o trote. Os grupos adeptos do trote são minoritários, no máximo 15% dos
alunos, mesmo em escolas onde o problema é muito sério. Só que são organizados e
bem agressivos”, sintetizou.
Hoje ele classifica o trote como um teste de silêncio, “a porta aberta a
processos de corrupção” – dentro da universidade, com a prática e o
acobertamento de abusos e ilegalidades; e fora dela, quando os estudantes
adeptos do trote, já formados, concordam com ilícitos e atuam no mercado de
trabalho. Sobre a escola em que leciona, fala abertamente, sem medo de
represálias: “Há na Esalq departamentos e áreas de estágio onde dificilmente o
aluno entrará se não pertencer a esse grupo do trote; há empresas [ligadas
ao setor do agronegócio] que só contratam pessoas desse grupo.”
Almeida Júnior fez ao longo dos últimos dez anos inúmeras denúncias de
trotes. Deparou-se com universidades apáticas e condescendentes, e medidas
paliativas sendo ressuscitadas ano após ano. “Sempre dizem que o trote está
acabando. Pesquisei artigos de 1950, 1960, em que diretores já diziam que o
trote estava acabando.”
Mais de 400 alunos da
medicina da USP se inscreveram neste ano para a disciplina antropologia e
gênero, ministrada pela antropóloga Heloísa Buarque de Almeida. São apenas 180
vagas. A docente coordena o programa USP Diversidade e em junho do ano passado
foi procurada pelos alunos da Casa de Arnaldo. Durante um almoço num restaurante
da Vila Madalena, em São Paulo, horas antes de prestar depoimento à CPI, a
professora disse que os relatos que ouviu são dignos de roteiro de filme sobre
fraternidades secretas americanas. “Você forma grupos de elite dentro da elite.”
A naturalização da violência e a constituição de “comunidades de segredo”
dificultam tanto sua compreensão como sua apuração.
Quem toma trote geralmente o reproduz. “O aluno é ao mesmo tempo vítima e
algoz. Por isso eles não querem denunciar”, disse a antropóloga. Diferentemente
de Almeida Júnior, ela enxerga no trote um ritual de passagem. Pondera que só em
sociedades igualitárias os ritos de passagem geram equanimidade entre
indivíduos, como nas tribos indígenas. Em sociedades divididas, como a nossa,
rituais de passagem fortalecem a hierarquia. E por que o calouro se submete?
“Ele imagina que uma hora vai conseguir estar em outro lugar, que não vai ficar
o tempo inteiro no andar de baixo.”
A professora alerta que abusos nos trotes e violências sexuais no meio
universitário são problemas distintos que surgiram conjuntamente na CPI, “o que
alimenta um quadro de escândalo”. Podem até se cruzar, mas é bom que se faça uma
distinção, ponderou. “Minha sensação é que serão tomadas algumas medidas, serão
feitas algumas comissões de sindicância, porque a USP não pode fingir que nada
aconteceu. Mas se não houver uma mudança estrutural, teremos mais dez, quinze,
vinte anos de campanha contra o trote, e não vai resolver nada.”
10 de fevereiro de 2015
in Piaui