Empossado no STF em junho de 2003 como primeiro dos oito ministros que Lula indicaria para compor o tribunal, Joaquim Barbosa contou, em entrevista exibida na madrugada deste domingo (23), que foi convidado “algumas vezes” para integrar a comitiva presidencial em viagens à África. “Recusei terminantemente”.
Por quê? “Primeiro porque não era da tradição aqui da Casa ministro do Supremo viajar em comitiva de presidente da República. Segundo porque percebi que aquilo era uma estratégia de marketing para os países africanos”. Barbosa insinuou que Lula quis exibi-lo em nações africanas como uma espécie de negro de mostruário, numa falsa demonstração de que não haveria racismo no Brasil.
O presidente do STF falou ao repórter Roberto D’Ávila. A conversa foi exibida no canal Globo News. A certa altura, Barbosa disse esperar que, doravante, os presidentes da República indiquem para o Supremo “um certo número de homens e mulheres negras de maneira natural. E não façam estardalhaço disso, não tentem levar a pessoa escolhida para a África para esconder uma realidade.” Uma “realidade muito triste”, ele enfatizou.
“Nós não temos representantes negros na nossa diplomacia, nos negócios, muito poucos no Estado. [...] Os países africanos se ressentem muito disso. Como é que pode um país que tem 50% da população negra e mulata e não consegue escolher um número de embaixadores negros para mandar para a África?”
Barbosa esteve recentemente na África. Viajou em missão oficial, como presidente do STF. Emocionou-se “bastante” em Gana e Angola. “Era como estar em casa. Especialmente em Angola. Tudo “tão próximo, tão parecido.” Lamentou que a historiografia brasileira não dê “o devido relevo à intensidade de relações” do Brasil com países como Angola. Uma “interação” que, segundo sua avaliação, foi muito além do “tráfico de escravos” nos últimos 300 anos.
Depois de criticar os convites marqueteiros de Lula, revelou uma ponta de mágoa por não ter sido convidado por Dilma Rousseff para integrar a comitiva presidencial que foi aos funerais de Nelson Mandela, na África do Sul. “Não fui porque não fui convidado. Hoje, eu iria. Era diferente, outra situação. Iria render as minhas homenagens ao Mandela, que eu conheci pessoalmente.”
No início do seu primeiro mandato, em janeiro de 2003, Lula soube que teria de nomear um ministro para o Supremo. Incumbiu o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, de encontrar um nome. Fez uma exigência: queria nomear o primeiro ministro negro do STF. O destino se revelaria caprichoso. Conforme já comentado aqui, Barbosa, um eleitor de Lula, acabou se tornando algoz do PT no julgamento e na execução das penas do mensalão.
O senhor acha que entrou numa cota, apesar de todo o seu praparo?, indagou o entrevistador. E Barbosa: “Dizer que eu entrei numa cota é uma manifestação racista, porque simplesmente as pessoas que fazem isso não olham o meu currículo. Aliás, pouca gente olha o meu currículo. Pouca gente olha. Não interessa. O cara só vê a cor da pele.”
De fato, tomado pela biografia, Barbosa não é um Joaquim qualquer. Primogênito de oito filhos de um pedreiro com uma dona de casa da cidade mineira de Paracatu, graduou-se em Direito na Universidade de Brasília. Passou pela francesa Sorbonne, uma das mais prestigiosas usinas de canudos do mundo. Foi professor visitante de Columbia, em Nova York. Lecionava na Universidade da Califórnia quando Thomaz Bastos o selecionou.
Já chorou de raiva por causa do racismo? “Ah, quando era jovem, sim”, admitiu Barbosa. Mesmo como ministro do Supremo, ele ainda se considera vítima de racismo. “Alias, vocês tomarão conhecimento nos próximos dias. Estou propondo uma ação por racismo contra um jornalista brasileiro”, disse, sem mencionar o nome de Ricardo Noblat, o alvo do seu processo judicial.
Evocando Joaquim Nabuco, o ministro afirmou que “demorará ainda, talvez, séculos para que o Brasil se livre, se desvencilhe das marcas da escravidão. E é falta de honestidade intelectual dizer que o Brasil já se livrou dessas marcas. Elas estão presentes nas coisas mais comezinhas da nossa vida social. Basta você dar uma volta aqui, nos corredores do Supremo ou de qualquer outra repartição pública. Você vai perceber a repartição de papeis. Ao negro, tal posição. Com o salário correspondente, mais baixo, claro. À medida que as funções vão aumentando em importância o negro vai sumindo.”
Barbosa refugou a tese do entrevistador segundo a qual o racismo no Brasil seria orientado mais por critérios sociais do que propriamente pela cor da pele. “Não, não. O racismo está em todas as esferas. Nao é só social, não. Ele é econômico. Ele interfere nas relações profissionais, nas relações sociais.”
Na opinião do ministro, “há no Brasil certas pessoas que têm essa tendência de tentar minimizar o racismo. Ah, eu me dou bem com todos. Pergunta para essa pessoa: quantas vezes você recebeu um negro na sua casa como convidado? Poucos vão ter essa resposta.”
Presente à posse de Barbosa na presidência do STF, em 22 de novembro de 2012, o compositor Martinho da Vila dissera que a presença do ministro na Suprema Corte representava, além do reconhecimento à sua “capacidade'', um “grande passo para a diminuição dos preconceitos” no país. O entrevistador recordou o comentário do sambista. E Barbosa levou o pé atrás: “Não acho que eu tenha vindo para cá com essa missão de combater o racismo. Não, não…”
Porém, à sua maneira, o ministro acabou dando razão a Martinho: “Eu sempre achei que a minha presença aqui contribuiria para desracializar o Brasil, desracializar as reações. Para que as pessoas tivessem a sensação de que não há papel predeterminado para A, B ou C.'' Barbosa repisou: “Eu espero que, no dia que eu sair daqui, os presidente da República saibam escolher bem pessoas para cá e escolham negros com naturalidade.”
Indagado sobre 2014, Barbosa voltou a negar que pretenda ser candidato. Mas deixou entreaberta uma fresta para rever sua posição no futuro. No pedaço da entrevista dedicado ao mensalão, o repórter perguntou: Às vezes, o senhor não é muito rude, muito duro com seus colegas? E o ministro: “Às vezes tem que ser. O Brasil é o país dos conchavos, do tapinha nas costas, é o país em que tudo se resolve na amizade. E eu não suporto nada disso.”
Acrescentou: “Às vezes, eu sou duro para mostrar que isso não faz o menor sentido numa grande democracia, como é a nossa. Nós temos que assumir isso. Nós estamos entre as dez grandes democracias do mundo hoje, das mais sólidas. Isso aqui não é lugar para brincadeira. Há muita brincadeira no Brasil, no âmbito do Estado, dos três Poderes.”
O repórter citou a “elegância” com que a ex-ministra Ellen Gracie, já aposentada, presidia as sessões do STF. E perguntou a Barbosa se ele prefere a “rédea curta”. “Não é rédea curta”, o ministro respondeu. Na sequência, sem mencionar nomes, insinuou que, sob a maciez do discurso, alguns de seus colegas de tribunal flertam com a ilegalidade.
“Eu sou um companheiro inseparável da verdade. Eu não suporto essa história de o sujeito ficar escolhendo palavrinhas, muito gentis, para fazer algo inaceitável. E isso é da nossa cultura. O sujeito está fazendo algo ilegal, algo inadmissível, mas com belas palavras, com gentilezas mil. Longe de mim esse tipo de comportamento. Isso é fonte de boa parte dos momentos de irritação que eu tenho aqui.” Os ministros não vão gostar, emendou o entrevistador. E Barbosa, dando de ombros: “Liberdade de expressão. Eu também tenho.”
Não acha que algumas penas do mensalão foram muito pesadas? “Ao contrário, ao contrário”, disse Barbosa, antes de estabelecer uma comparação entre os mensaleiros e outros réus anônimos julgados no Supremo sem que as manchetes lhes dêem a mesma atenção:
“Eu examino as penas que foram aplicadas no mensalão com as penas que são aplicadas e são chanceladas pelo Supremo Tribunal Federal nas turmas aqui, só que penas relativas a pessoas comuns. Eu convido aqueles que criticam o Supremo por ter aplicado essas penas supostamente pesadas para fazer esse tipo de comparação. Vão verificar que o Supremo chancela, em habeas corpus, coisas muito, mais muito mais pesadas, comparando situações comparáveis.”
Barbosa lembrou que, dos seus 11 anos de STF, sete foram decicados ao processo do mensalão, do qual foi relator. “É um processo que trouxe um desgaste muito grande, com uma carga política exagerada. Eu acho que um pouco turbinada pela mídia também.” Disse ter dispensado ao caso um tratamento distinto dos demais.
“Não encarei como um processo como outro porque não podia ser assim. Era um processo que requeria planejamento, estratégia. Os que tiveram a oportunidade de observar ao longo da instrução do processo devem ter percebido que eu raramente tomei decisões unilaterais. Sempre levei as questões mais delicadas ao plenário. Tudo isso era fruto de estratégia, de planejamento.” Algo que lhe custou “muito desgaste físico, emocional e mental”.
O que fica do mensalão? “Vai depender muito dos homens e mulheres que terão a responsabilidade pelo país, nos três Poderes. A eles caberá a tarefa de tirar as lições desse julgamento”, disse Barbosa, em timbre lacônico.
24 de março de 2014
Do Blog do Josias