O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso decidiu por conta própria estabelecer regras para a concessão de indulto presidencial a presos. Ele não está autorizado a tal nem pela Constituição, nem pelas leis, nem pelo estatuto de sua profissão. Mesmo assim, de acordo com sua iluminada determinação, não poderão ser beneficiados os condenados pelos chamados crimes de colarinho branco, como corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influência. Numa só canetada, o ministro conseguiu interferir em dois Poderes alheios. Primeiro, ao agir como legislador, fixando normas de acordo com seus critérios pessoais sem que, para isso, tenha recebido um único voto popular; e segundo, ao cassar do presidente da República a prerrogativa constitucional de determinar a quem e sob quais condições deve ser concedido o indulto.
O ministro Barroso manifestou-se como relator de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pela Procuradoria-Geral da República contra o indulto natalino concedido pelo presidente Michel Temer em dezembro passado. Esse indulto já havia sido suspenso por liminar expedida pela presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia. Na ocasião, a ministra considerou que o indulto serviria como “instrumento de impunidade” ao supostamente beneficiar os condenados pela Operação Lava Jato. Portanto, a interferência do Supremo em prerrogativa do Executivo já havia se configurado bem antes do recente gesto do ministro Barroso.
Mas a decisão de Barroso vai muito mais longe. O ministro do Supremo questionou o que chama de “legitimidade” do indulto de Temer, malgrado o fato de o decreto presidencial encontrar total respaldo no texto constitucional. E o fez invocando o argumento de que um condenado por corrupção pertence a uma categoria tão especial de criminoso que não pode ser indultado – embora a Constituição, no inciso XLIII de seu artigo 84, deixe claro que o indulto só será negado a condenados por tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes considerados hediondos. Não há menção à corrupção.
Tudo isso, é claro, deve ser lido no contexto da luta messiânica contra a corrupção, que tem no ministro Barroso um de seus mais ativos porta-estandartes. Mesmo quando um presidente da República simplesmente exerce sua competência privativa de conceder indulto e comutar penas, segundo estipula o inciso XII do artigo 84 da Constituição, e também estabelece os critérios para o benefício, como fizeram todos os presidentes sob o atual texto constitucional, a decisão, caso contrarie a ânsia punitivista dos cruzados anticorrupção, será desde logo considerada ilegítima. Foi isso o que explicitou o ministro Barroso ao escrever que “carece de legitimidade corrente um ato do poder público que estabelece regras que favorecem a concessão de indulto para criminosos do colarinho branco”.
Em seguida, o ministro, julgando-se tradutor juramentado dos desejos dos cidadãos – ainda que, repita-se, não tenha recebido um único voto para exercer seu ofício –, diz que o decreto, “ao invés de corresponder à vontade manifestada pelos cidadãos”, reforça “a cultura ancestral de leniência e impunidade que, a duras penas, a sociedade brasileira tenta superar”. Para o ministro, o decreto, por conta de sua “manifesta falta de sintonia com o sentimento social” e, portanto, “sem substrato de legitimidade democrática”, concede “passe livre para corruptos em geral”.
O mais grave da decisão do ministro Barroso, contudo, não é a acusação, sem qualquer fundamento nos fatos, de que o decreto de Temer se destina a “beneficiar investigados e condenados por envolvimento em esquemas de corrupção recém-ocorridos” e que, por esse motivo, “a Lava Jato está colocada em risco”. O mais grave é a compreensão, exarada no âmbito do tribunal constitucional, de que faltou ao decreto do presidente da República “legitimidade democrática” por não atender a supostos anseios dos cidadãos. Ou seja, oficializa-se a presunção de que a uma alegada “vontade popular”, interpretada por sabe-se lá que autoridade, deve substituir a Constituição na determinação dos limites legais da atuação do presidente da República. É um evidente atentado aos fundamentos da ordem democrática.
14 de março de 2018
Editorial Estadão
O ministro Barroso manifestou-se como relator de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pela Procuradoria-Geral da República contra o indulto natalino concedido pelo presidente Michel Temer em dezembro passado. Esse indulto já havia sido suspenso por liminar expedida pela presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia. Na ocasião, a ministra considerou que o indulto serviria como “instrumento de impunidade” ao supostamente beneficiar os condenados pela Operação Lava Jato. Portanto, a interferência do Supremo em prerrogativa do Executivo já havia se configurado bem antes do recente gesto do ministro Barroso.
Mas a decisão de Barroso vai muito mais longe. O ministro do Supremo questionou o que chama de “legitimidade” do indulto de Temer, malgrado o fato de o decreto presidencial encontrar total respaldo no texto constitucional. E o fez invocando o argumento de que um condenado por corrupção pertence a uma categoria tão especial de criminoso que não pode ser indultado – embora a Constituição, no inciso XLIII de seu artigo 84, deixe claro que o indulto só será negado a condenados por tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes considerados hediondos. Não há menção à corrupção.
Tudo isso, é claro, deve ser lido no contexto da luta messiânica contra a corrupção, que tem no ministro Barroso um de seus mais ativos porta-estandartes. Mesmo quando um presidente da República simplesmente exerce sua competência privativa de conceder indulto e comutar penas, segundo estipula o inciso XII do artigo 84 da Constituição, e também estabelece os critérios para o benefício, como fizeram todos os presidentes sob o atual texto constitucional, a decisão, caso contrarie a ânsia punitivista dos cruzados anticorrupção, será desde logo considerada ilegítima. Foi isso o que explicitou o ministro Barroso ao escrever que “carece de legitimidade corrente um ato do poder público que estabelece regras que favorecem a concessão de indulto para criminosos do colarinho branco”.
Em seguida, o ministro, julgando-se tradutor juramentado dos desejos dos cidadãos – ainda que, repita-se, não tenha recebido um único voto para exercer seu ofício –, diz que o decreto, “ao invés de corresponder à vontade manifestada pelos cidadãos”, reforça “a cultura ancestral de leniência e impunidade que, a duras penas, a sociedade brasileira tenta superar”. Para o ministro, o decreto, por conta de sua “manifesta falta de sintonia com o sentimento social” e, portanto, “sem substrato de legitimidade democrática”, concede “passe livre para corruptos em geral”.
O mais grave da decisão do ministro Barroso, contudo, não é a acusação, sem qualquer fundamento nos fatos, de que o decreto de Temer se destina a “beneficiar investigados e condenados por envolvimento em esquemas de corrupção recém-ocorridos” e que, por esse motivo, “a Lava Jato está colocada em risco”. O mais grave é a compreensão, exarada no âmbito do tribunal constitucional, de que faltou ao decreto do presidente da República “legitimidade democrática” por não atender a supostos anseios dos cidadãos. Ou seja, oficializa-se a presunção de que a uma alegada “vontade popular”, interpretada por sabe-se lá que autoridade, deve substituir a Constituição na determinação dos limites legais da atuação do presidente da República. É um evidente atentado aos fundamentos da ordem democrática.
14 de março de 2018
Editorial Estadão