Vamos lá. Consta que, na novela “Salve, Jorge”, de Glória Perez, há Internet com conexão sem fio nas cavernas do interior da Turquia. Que bom! Vai ver a Anatel deles funciona. As nossas agências reguladores viraram cabides de emprego do PT e da base aliada. Se você quer conexão rápida e móvel, amigo, vá para os buracos nas rochas da Capadócia que o pariu. No litoral de São Paulo, nada de conexão 3G! “De qual operadora, Reinaldo?” De qualquer uma. Empresas e Anatel parecem estar pouco se lixando para os usuários de um serviço que é concessão pública. Agora que boa parte da massa já subiu a serra, tudo volta ao “normal”. Temos um serviço 3G que funciona desde que não haja muita gente querendo a mesma coisa ao mesmo tempo, entenderam? É o caso dos aeroportos. Resta-me concluir que o 4G, em breve, estará “não funcionando” também.
Alguns tontos dirão: “Taí… Não é você que gosta de privatizações e de estado enxuto?.” Sou eu mesmo! Tivéssemos um eficiente estado regulador, em vez de um ineficiente estado interventor, lotado de larápios que usam seu poder para fazer “negócios” com o setor privado, os cidadãos, os consumidores e usuários de serviços públicos seriam respeitados. Ocorre que o vagabundismo tomou conta do debate — e não há força política que contra ele se alevante, para usar um verbo do tempo de Camões. Reclame da bagunça nos aeroportos brasileiros em períodos de férias, e sempre aparecerá um desses escroques do regime, financiado por alguma estatal, a acusá-lo de estar infeliz porque, agora, o povo anda de avião… O corolário do subdesenvolvimento intelectual e político é o subdesenvolvimento ele-mesmo: só daremos telefone a todos se o serviço for uma porcaria; só daremos aviões a todos se o serviço for uma porcaria; só daremos educação a todos se o serviço for uma porcaria; só daremos saúde a todos se o serviço for uma porcaria. A qualidade vem depois… Só isso me impediu de comentar antes a posse de José Genoino (PT-SP) como deputado federal. Não me faltavam disposição e dedos — até tempo eu tinha. Faltava uma conexão.
Adiante. Voltemos ao princípio. Antes de a sentença ter transitado em julgado, há algo que impeça Genoino, condenado a 6 anos e 11 meses de cadeia por corrupção ativa e formação de quadrilha, de assumir a vaga aberta com a renúncia de Carlinhos Almeida (PT), que assumiu a prefeitura de São José dos Campos? A resposta é “não”. Por esse caminho, o debate cai no vazio. O que mais me interessa nesse caso é a questão política — que vai bater, meus caros, lá na sucessão de 2014 —, não a jurídica, embora eu não me furte a fazer, antes de voltar ao principal, algumas considerações a respeito, apontando o grotesco espetáculo da hipocrisia petista, muito especialmente a de Genoino. Mais uma vez, os petistas demonstram que seguem firme um lema: “Aos amigos, tudo, menos a lei; aos inimigos, nada; nem a lei”. Explico-me.
A questão legal
Li as declarações de Genoino e de alguns petistas graúdos e me inteirei do que os petralhas, especialmente os financiados por estatais, andaram espalhando no ventilador das redes sociais. A argumentação, ora vejam!, é legalista! Quem diria?! De súbito, os valentes passaram a falar como porta-vozes do estado de direito. E propuseram a questão que eu mesmo propus no parágrafo anterior: “Há empecilho legal à posse de Genoino?”. Como não há, estampam, então, o sorriso de vitória. Muito bem! Atenção para isto: o mesmo arcabouço legal — erigido sobre o mesmo alicerce e valores e que estrutura as mesmas garantias — que julgou e condenou o ex-presidente do PT assegura agora o seu mandato de deputado federal. Podemos e até devemos debater se há, no Brasil, recursos em excesso; podemos e até devemos debater se a aplicação da pena deveria ou não ser imediata etc. Uma coisa, no entanto, não se pode nem se deve debater: se a lei tem ou não de ser cumprida.
A última edição de VEJA do ano passado traz um artigo deste escriba intitulado “Ladrões de cofres e de instituições” (ver na home). Demonstro, no texto, que a condenação dos mensaleiros obedeceu a todos os rigores do estado de direito. Não houve nem mesmo a tão propalada “nova jurisprudência”. Todo o chororô, encabeçado por Márcio Thomaz Bastos, não passou de um esforço canhestro para carimbar no processo a pecha de “julgamento de exceção”, num esforço deliberado de transformar corruptos, corruptores, peculadores e quadrilheiros em condenados por crimes de consciência e em futuros presos políticos. O mensalão foi, sim, uma tentativa de golpear as instituições democráticas e tomar o estado. Apesar do alcance político da ação, seus protagonistas são bandidos comuns, embora reivindiquem o berço dos heróis.
Ora, eu estou entre aqueles que cobram, então, respeito à lei nas duas circunstâncias: quando os mensaleiros são condenados e quando um deles, em virtude das leis que temos, assume uma vaga na Câmara — embora eu possa achar, como acho, que o fato escarnece do bom senso, do decoro, da vergonha na cara. Os petistas e petralhas, como vocês têm visto, pensam de modo bem diferente: mandam às favas a legalidade no caso da condenação, promovendo “plenárias” para demonizar o Supremo e prometendo até uma espécie de vingança contra o tribunal, mas viram defensores de primeira hora da ordem quando Genoino assume o mandato. Estes são eles: para si e para seus amigos, querem tudo, menos a lei; para os inimigos, nada — nem a lei. Por que teriam algum compromisso com a coerência?
A questão ética
Genoino podia tomar posse? Podia, sim. Fosse outro o seu partido e não fosse ele próprio quem é, então nos arriscaríamos a afirmar: “Podia, mas não deveria”.Ocorre que o Genoino que, por prurido, deferisse agora da posse desse bem não teria cometido antes os crimes pelos quais foi condenado, certo? Isso nos leva a concluir, logicamente, que, à diferença do que andam dizendo alguns equivocados, muito especialmente da oposição, o Genoino de agora não mancha o de antes: apenas torna mais nítido o seu perfil.
Por mais que nos dediquemos ao estudo da moral e da ética, duvido que possamos chegar a uma formulação mais precisa e enxuta do que a de São Paulo na I Epístola aos Coríntios: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém” (ICor 6,12). É dessas frases-emblema cuja compreensão distingue a civilização da barbárie. A essência da formulação kantiana está aí embutida: só posso praticar atos que, se generalizados, concorreriam para o bem. Adiante.
Há uma diferença de qualidade entre o homem que não mata porque acha que isso é essencialmente errado e o que não mata por medo de ser preso. O primeiro domínio é o da moral e da ética; o segundo é o da lei e da ordem. Ainda que ambos estejam imbricados na vida em sociedade, trata-se de esferas distintas da experiência. Ora, com a certeza da impunidade, o primeiro homem vai delinquir… Voltem a São Paulo. Imunes ao estado repressor — e ele não pode nem deve vigiar todos os nossos passos —, tudo nos “é permitido”. É a convicção de que “nem tudo nos convém” que torna possível a vida em sociedade. Educar uma criança é prepará-la para viver sem vigilância, não para obedecer às ordens de um bedel. NOTA À MARGEM: há também uma grande diferença entre aquele que diz “sou inocente” (especialmente quando o é…) e aquele que sustenta: “Não há provas contra mim”…
O PT, é evidente, não inventou os desmandos. Nunca ninguém fez tal acusação ao partido. Ao contrário! Com o apoio entusiasmado do jornalismo, a legenda cresceu fortemente ancorada no discurso que agora chama de “udenista”: o combate à corrupção! Ainda me lembro de uma entrevista concedida ao Globo, em 2006, por Marco Aurélio Garcia, durante a campanha de Lula à reeleição. Perguntaram a ele se o então presidente não se sentia constrangido de fazer campanha ao lado dos mensaleiros. A resposta foi esta: “Constrangimento nenhum! Constrangimento seria não ter voto”. O PT não inventou a corrupção. Ele a transformou, a depender da necessidade, numa categoria política, numa categoria de pensamento. O partido mandou Paulo plantar batatas: tudo lhe convém porque tudo lhe é permitido.
O ódio que o PT e seus acólitos passaram a devotar ao Supremo decorre do fato de que eles não aceitam leis — e instâncias do estado que as apliquem — contra o que consideram os “interesses do partido”, que se vê no papel de condutor da sociedade. Quando surgiu a possibilidade de Genoino tomar posse, cheguei a ouvir alguns comentários incrédulos aqui e ali: “Eles não vão ter topete de fazer isso…”. Objetei: “Vão, sim!”. Um dos segredos do partido sempre foi defender, em nome da legalidade, as leis que lhe são úteis e transgredir, em nome da legitimidade, as que não são — para o trabalho de confronto, recorrem a seus esbirros em movimentos sociais e ONGs.
A questão política
Chego, finalmente, à questão política. Haverá uma oposição — e oposicionistas — para fazer, no plenário da Câmara, o debate? Haverá vozes capazes de transformar em notícia a posse legal e indecorosa? Já li uma coisinha ou outra, sempre com os joelhos no milho. Há até quem veja, para escândalo da lógica e do bom senso, uma contradição entre o Genoino “guerrilheiro” e este que assume agora um mandato na Câmara com uma condenação nas costas, como se a vilania de agora contrastasse com a nobreza de antes; como se o escárnio que ora se vê manchasse os nobres propósitos daquele que queria instituir no país uma ditadura à moda cubana.
Ao longo do segundo semestre do ano passado, o Supremo ficou sob o chicote petista. Foi satanizado pelo partido de maneira implacável. As principais lideranças de oposição, com uma exceção ou outra, se comportaram como se o julgamento não existisse. Convenham: aquela penca de crimes foi cometida para consumar um projeto de poder que tinha, no ponto de chegada, o aniquilamento das forças adversárias. Oposicionistas deveriam ter se revezado na galeria do Supremo para demonstrar seu apreço ao estado de direito e seu repúdio ao que foi, restou evidente, uma tentativa de golpe nas instituições. Mas quê…
Não existe uma política que seja a negação da… política! É tautológico? Eu sei. Mas precisa ser dito e repetido mesmo assim. Não estou aqui a sugerir que as oposições façam da posse de Genoino um cavalo de batalha. Estou afirmando, isto sim, que elas não podem deixar de chamar as coisas pelo nome que têm — essa e outras tantas. Porque, numa democracia, são muitos os cavalos. Jáescrevi a respeito das muitas omissões das forças que se opõem, ao menos nominalmente, ao petismo. Parecem estar sempre à espera da hora certa…
Não! Aquela história do “quem sabe faz a hora” é só bobagem do voluntarismo e do leninismo de marchinha da MPB. Em política, não existe “a” hora. Existe um conjunto de valores, defendido por partidos e por forças organizadas da sociedade. Quem se opõe ao governo do PT e ao petismo se apresenta com que discurso? Fala em nome de quê? Fala para quem?
“Ah, o governo é tão bom, e o Brasil vai tão bem que as oposições nem conseguem se estruturar…” Pois é… Não vai, não! Ainda que a popularidade de Dilma atinja a marca dos 100% (no Iraque, Saddam Hussein tinha apenas 98% de aceitação…), a afirmação continuará a ser falsa. Ocorre que os dados que estão na ordem dos fatos ainda não se converteram num discurso político. O ano de 2014, com suas vistosas inaugurações, não parece especialmente hospitaleiro a um súbito discurso de oposição.
Toda hora é hora da política, em cada tema e em cada coisa. Até agora, não fosse a base aliada criar algumas dificuldades para Dilma — e não fosse a grande imprensa colaborar ativamente com ela, apontando o dedo para alguns larápios incrustados na máquina do governo —, a governanta morreria de tédio. Às vezes, tenho a impressão de que já há, nas oposições, quem dê a reeleição de Dilma de barato, adiando o jogo para 2018, quando, então, aí, sim… “Aí, sim, o quê?” Essa hipótese me parece parente bem próxima daquela que via um Lula sangrando no poder em 2006… Deu no que deu.
Concluindo
A posse de Genoino é politicamente acintosa, ainda que legal? Sim! E é também a evidência de que o PT, por maior que seja a dificuldade, vai para o confronto. Se alguém notou aqui alguma sombra de admiração, é impressão falsa. Ao contrário! Esse relativismo, essa visão de mundo que transforma crimes em virtudes, é o que mais repudio nas esquerdas — e jamais sugeriria a seus adversários que adotassem prática semelhante, adulando seus próprios malfeitores e criminosos.
O ponto é outro. Eu e milhões de eleitores — e de leitores — queremos saber o que pensam as oposições. E nem se trata aqui de cobrar utopias e prefigurações. Basta que se enfrente um governo atolado em irresoluções e um partido que terá alguns de seus protagonistas na cadeia. E que se note: se o petismo reunisse apenas anjos tocando harpa, ainda assim, numa democracia (e não no céu), teria de ser contraditado.
E não! Eu não vou me enfiar num buraco na Capadócia, onde há Internet sem fio — segundo a Glória Perez ao menos. Vou ficar por aqui mesmo, reclamando e exigindo que os contratos feitos com os consumidores sejam cumpridos.
Voltei.
04 de junho de 2014
Reinaldo Azevedo, Veja