02 DE ABRIL DE 2014
Este é um blog conservador. Um canal de denúncias do falso 'progressismo' e da corrupção que afronta a cidadania. Também não é um blog partidário, visto que os partidos que temos, representam interesses de grupos, e servem para encobrir o oportunismo político de bandidos. Falamos contra corruptos, estelionatários e fraudadores. Replicamos os melhores comentários e análises críticas, bem como textos divergentes, para reflexão do leitor. Além de textos mais amenos... (ou mais ou menos...) .
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville (1805-1859)
"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville (1805-1859)
"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.
quarta-feira, 2 de abril de 2014
O GRANDE PERIGO
Estão brincando com água. O governo de São Paulo e o governo federal estão colocando em risco o país pelo calendário eleitoral. O perigo é de que haja um colapso técnico do sistema Cantareira antes que fique pronta a obra para usar o volume morto. Ameaças aumentam sobre o sistema de energia do país. Nenhum dos dois governos quer fazer o que precisa ser feito: racionamento.
Este ano houve uma seca anômala em algumas áreas e uma inundação também anormal em outras. Os cientistas não dirão que é efeito das mudanças climáticas, mas eles admitem que assim será daqui a alguns anos. O futuro nos visita como uma prévia do que será o desequilíbrio do clima. Será cada vez mais comum o anormal de 2014.
Choveu tão pouco em janeiro e fevereiro no Sudeste e Nordeste do Brasil, as temperaturas foram tão altas, que as chuvas de março vieram mas de nada adiantou. Normalmente, quando chegam as chuvas do terceiro mês do ano, elas elevam os reservatórios porque as do primeiro bimestre encharcam a terra. Em 2014, a água que caiu foi absorvida pela terra seca e porosa e não chegou aos reservatórios. Foi a explicação que eu ouvi de técnicos que acompanham aflitos a questão, vendo as autoridades protelando o que é urgente: reduzir o consumo.
Em São Paulo choveu muito em março, mas na área urbana. As águas não caíram do lado que abastece o sistema Cantareira. O governo paulista deu bônus para quem usa menor volume. É preciso racionar para evitar o cenário catastrófico de colapso do sistema que abastece a cidade de nove milhões de pessoas. Um dos técnicos que eu ouvi fala que esse perigo é real e tem alta probabilidade. Pela disputa eleitoral, nos dois governos - o estadual e o federal -, quem fala com sinceridade sobre os riscos pede o anonimato. Não é ano de ser sincero; é ano de empurrar com a barriga.
O risco de desabastecimento de energia é menor do que o do colapso de água em São Paulo, mas seu custo está aumentando. O governo federal acha que consegue evitar o pior este ano com as termelétricas. Só que elas não foram feitas para funcionar o tempo todo, estão usando combustível que pesa na nossa balança comercial a preço subsidiado. O governo Dilma deveria estar estabelecendo regras para a redução do consumo, porque quanto maior ele for agora, maior é o preço que será cobrado a partir do ano que vem dos consumidores.
Abril é mês ainda chuvoso, mas já é o fim. Depois, é o longo período natural de pouca chuva: maio, junho, julho, agosto, setembro. Só então as chuvas voltarão. Nesse meio tempo, São Paulo conta com uma solução arriscada que é a de usar o volume morto do Cantareira. A obra não é trivial.
Em qualquer reservatório, há uma parte da água onde ficam material biológico e sedimentos. As máquinas são instaladas acima desse nível chamado de volume morto. Agora, São Paulo vai instalar equipamentos e fazer obras para ser capaz de sugar líquido dessa parte da reserva.
O volume útil pode acabar antes que essa obra fique pronta. Ela está sendo feita a toque de caixa. O racionamento já deveria ter começado para evitar o colapso técnico. No sistema elétrico, houve incentivo ao consumo por razões eleitorais. O governo federal pensa em soluções rocambolescas para manter o artificialismo de preço. Mas nem tem conseguido pôr em prática o que decide. Ainda não saíram as regras para aquela medida maluca de a Câmara de Comercialização da Energia Elétrica se endividar para socorrer as distribuidoras. Não saíram atos, decretos, resoluções da Aneel para tornar realidade o pacote, que em si é um monstrengo para adiar o inevitável: encarar o problema.
Este ano houve uma seca anômala em algumas áreas e uma inundação também anormal em outras. Os cientistas não dirão que é efeito das mudanças climáticas, mas eles admitem que assim será daqui a alguns anos. O futuro nos visita como uma prévia do que será o desequilíbrio do clima. Será cada vez mais comum o anormal de 2014.
Choveu tão pouco em janeiro e fevereiro no Sudeste e Nordeste do Brasil, as temperaturas foram tão altas, que as chuvas de março vieram mas de nada adiantou. Normalmente, quando chegam as chuvas do terceiro mês do ano, elas elevam os reservatórios porque as do primeiro bimestre encharcam a terra. Em 2014, a água que caiu foi absorvida pela terra seca e porosa e não chegou aos reservatórios. Foi a explicação que eu ouvi de técnicos que acompanham aflitos a questão, vendo as autoridades protelando o que é urgente: reduzir o consumo.
Em São Paulo choveu muito em março, mas na área urbana. As águas não caíram do lado que abastece o sistema Cantareira. O governo paulista deu bônus para quem usa menor volume. É preciso racionar para evitar o cenário catastrófico de colapso do sistema que abastece a cidade de nove milhões de pessoas. Um dos técnicos que eu ouvi fala que esse perigo é real e tem alta probabilidade. Pela disputa eleitoral, nos dois governos - o estadual e o federal -, quem fala com sinceridade sobre os riscos pede o anonimato. Não é ano de ser sincero; é ano de empurrar com a barriga.
O risco de desabastecimento de energia é menor do que o do colapso de água em São Paulo, mas seu custo está aumentando. O governo federal acha que consegue evitar o pior este ano com as termelétricas. Só que elas não foram feitas para funcionar o tempo todo, estão usando combustível que pesa na nossa balança comercial a preço subsidiado. O governo Dilma deveria estar estabelecendo regras para a redução do consumo, porque quanto maior ele for agora, maior é o preço que será cobrado a partir do ano que vem dos consumidores.
Abril é mês ainda chuvoso, mas já é o fim. Depois, é o longo período natural de pouca chuva: maio, junho, julho, agosto, setembro. Só então as chuvas voltarão. Nesse meio tempo, São Paulo conta com uma solução arriscada que é a de usar o volume morto do Cantareira. A obra não é trivial.
Em qualquer reservatório, há uma parte da água onde ficam material biológico e sedimentos. As máquinas são instaladas acima desse nível chamado de volume morto. Agora, São Paulo vai instalar equipamentos e fazer obras para ser capaz de sugar líquido dessa parte da reserva.
O volume útil pode acabar antes que essa obra fique pronta. Ela está sendo feita a toque de caixa. O racionamento já deveria ter começado para evitar o colapso técnico. No sistema elétrico, houve incentivo ao consumo por razões eleitorais. O governo federal pensa em soluções rocambolescas para manter o artificialismo de preço. Mas nem tem conseguido pôr em prática o que decide. Ainda não saíram as regras para aquela medida maluca de a Câmara de Comercialização da Energia Elétrica se endividar para socorrer as distribuidoras. Não saíram atos, decretos, resoluções da Aneel para tornar realidade o pacote, que em si é um monstrengo para adiar o inevitável: encarar o problema.
02 de abril de 2014
Miriam Leitão, O Globo
APRENDIZADO
A resistência do governo a conceder ao "mercado" a oportunidade de trabalhar é a causa fundamental da desconfiança que se estabeleceu entre ele e o setor empresarial privado. Um intervencionismo microeconômico mal disfarçado das agências reguladoras que, com a cumplicidade do Senado Federal, foram aparelhadas com "companheiros de passeata", sugere uma explicação "ideológica" para o que é pura e simples incompreensão.
Vamos combinar. As intervenções macroeconômicas na energia elétrica e nos portos objetivavam ampliar a necessária competição nos dois setores. Foram comprometidas pela angústia da pressa, mas não violaram contratos. Recusaram-se, entretanto, a usar o sistema de preços para conciliar os interesses das partes envolvidas.
Por outro lado é visível que, com os leilões de concessão da infraestrutura, consolidou-se um novo entendimento. Demorou para o setor privado entender que "modicidade tarifária" não era sinônimo de "socialismo", tanto quanto para o governo conformar-se que por maior que fosse seu desejo, não tinha o poder divino de estabelecer, simultaneamente, a qualidade do projeto e a sua taxa de retorno. Agora os dois aprenderam. Devem, portanto, dar-se mutuamente um voto de confiança para que o Brasil volte ao crescimento.
É preciso insistir. A chamada "economia de mercado" é produto de uma seleção histórica quase natural que continua desde que o homem deixou a África. Mas não é a panaceia, como propagam cronistas tão engajados quanto pouco informados. Ela tem problemas intrínsecos no nível macroeconômico que impedem a construção do processo civilizatório com a qualidade que os homens desejam.
Mais. Ela depende da ação de um Estado inteligente constitucionalmente controlado, que é quem, por mais paradoxal que pareça, garante as condições do seu bom funcionamento. Certamente, é a mais injusta de quantas organizações econômicas os homens experimentaram nos últimos 150 séculos, com exceção de todas as outras!
Não há nada mais falso do que a pobre dicotomia Estado versus Mercado. E não há nada mais deletério para a construção paulatina de uma sociedade civilizada que combine: 1º) a mais ampla liberdade de iniciativa de seus membros para que eles possam explorar os seus talentos; 2º) o aumento da igualdade de oportunidade que reduza os efeitos do acidente do seu nascimento e 3º) a diminuição do tempo necessário para a produção de sua subsistência material que deixe mais tempo livre para cada um encontrar a sua humanidade.
A história é testemunha de que o "Estado absoluto" ou o "mercado absoluto" são os maiores inimigos da construção da sociedade civilizada.
Vamos combinar. As intervenções macroeconômicas na energia elétrica e nos portos objetivavam ampliar a necessária competição nos dois setores. Foram comprometidas pela angústia da pressa, mas não violaram contratos. Recusaram-se, entretanto, a usar o sistema de preços para conciliar os interesses das partes envolvidas.
Por outro lado é visível que, com os leilões de concessão da infraestrutura, consolidou-se um novo entendimento. Demorou para o setor privado entender que "modicidade tarifária" não era sinônimo de "socialismo", tanto quanto para o governo conformar-se que por maior que fosse seu desejo, não tinha o poder divino de estabelecer, simultaneamente, a qualidade do projeto e a sua taxa de retorno. Agora os dois aprenderam. Devem, portanto, dar-se mutuamente um voto de confiança para que o Brasil volte ao crescimento.
É preciso insistir. A chamada "economia de mercado" é produto de uma seleção histórica quase natural que continua desde que o homem deixou a África. Mas não é a panaceia, como propagam cronistas tão engajados quanto pouco informados. Ela tem problemas intrínsecos no nível macroeconômico que impedem a construção do processo civilizatório com a qualidade que os homens desejam.
Mais. Ela depende da ação de um Estado inteligente constitucionalmente controlado, que é quem, por mais paradoxal que pareça, garante as condições do seu bom funcionamento. Certamente, é a mais injusta de quantas organizações econômicas os homens experimentaram nos últimos 150 séculos, com exceção de todas as outras!
Não há nada mais falso do que a pobre dicotomia Estado versus Mercado. E não há nada mais deletério para a construção paulatina de uma sociedade civilizada que combine: 1º) a mais ampla liberdade de iniciativa de seus membros para que eles possam explorar os seus talentos; 2º) o aumento da igualdade de oportunidade que reduza os efeitos do acidente do seu nascimento e 3º) a diminuição do tempo necessário para a produção de sua subsistência material que deixe mais tempo livre para cada um encontrar a sua humanidade.
A história é testemunha de que o "Estado absoluto" ou o "mercado absoluto" são os maiores inimigos da construção da sociedade civilizada.
02 de abril de 2014
Antônio Delfim Netto, Folha de SP
QUEDA DE APROVAÇÃO AMEAÇA DILMA
A queda de avaliação do governo da presidente Dilma Rousseff na última pesquisa CNI/Ibope cria dúvidas sobre suas chances de reeleição no pleito deste ano. Análises de eleições passadas para presidente e governador, desde a introdução do instituto da reeleição no país, em 1998, mostram que, considerando a avaliação dos candidatos e a sua transformação em votos, a presidente teria de 40% a 43% de chances de ser reeleita, caso o pleito fosse realizado hoje.
Nos Estados Unidos, são comuns as pesquisas que procuram verificar as chances de ocupantes de cargos executivos a partir da avaliação de seus governos. No Brasil, quem está fazendo isso pela primeira vez é o cientista político Alberto Carlos de Almeida, fundador do Instituto Análise.
Num trabalho exaustivo sobre 104 eleições para governador ocorridas entre 1998 e 2010, Almeida constatou que, em 100% dos casos, os governadores que disputaram a reeleição e que, na última pesquisa antes do primeiro turno, tinham 46% ou mais de aprovação (soma de ótimo e bom) saíram vitoriosos. Descobriu também que 100% daqueles que tinham 34% ou menos de ótimo e bom foram derrotados.
Os números mostram, ainda, que 40% a 43% dos governadores que possuíam avaliação de ótimo e bom entre 35% e 45% foram reeleitos. "A derrota é um pouco mais frequente nesta faixa de avaliação", explica Almeida.
Há três possibilidades para os candidatos que buscam a reeleição. A releição "clássica", em que o governador é eleito uma vez e quatro anos depois disputa a reeleição; a reeleição "manca", em que o governador que disputa a reeleição não foi eleito quatro anos antes, mas assumiu o posto no meio do mandato porque o titular deixou o posto para disputar outro cargo ou então faleceu; e a "não releição", quando o governador não busca a reeleição.
Nos 104 pleitos analisados por Almeida, registraram-se 46 casos de reeleição "clássica", 22 de reeleição "manca" e 35 de não reeleição. Uma transposição da experiência dos governadores para a situação da presidente Dilma mostra que seu patamar de ótimo e bom neste momento - 36%, de acordo com a pesquisa CNI/Ibope - a coloca com aproximadamente 40% a 43% de chances de vitória em outubro. É pouco para quem já teve o governo aprovado por 63% da população (em março de 2013).
Há, porém, ponderações a serem feitas. A primeira, observa Alberto Carlos de Almeida, é que a avaliação do governo Dilma pode melhorar até a última pesquisa antes do primeiro turno da eleição, em outubro, tal como ocorreu na reeleição de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
No início da campanha eleitoral de 1998, Fernando Henrique tinha seu governo avaliado como ótimo e bom por 38% da população. Durante a campanha, a avaliação melhorou, subindo cinco pontos percentuais (para 43%). O presidente liquidou a fatura no primeiro turno da eleição.
Em 2006, Lula começou a campanha com sua gestão avaliada como ótima e boa igualmente por 38% da população. A avaliação ao longo da campanha cresceu mais que a de FHC em 1998, chegando a 47% dos entrevistados na pequisa realizada antes do primeiro turno da eleição. Lula venceu a disputa, mas, curiosamente, apenas no segundo turno.
Dilma tem, agora, avaliação pior que a de FHC e Lula, mas ainda está a seis meses da eleição. A presidente tem, portanto, chance de melhorar o desempenho nas pesquisas de avaliação de sua gestão, embora também haja espaço para piora até outubro.
Esta coluna apurou que, desde as manifestações populares iniciadas em meados do ano passado, quando a presidente sofreu forte perda de popularidade, petistas próximos a Lula passaram a considerar a possibilidade de o ex-presidente substituir Dilma na disputa deste ano. O movimento "Volta, Lula" seria deflagrado a partir da queda da avaliação de ótimo e bom do governo abaixo de 35%. A preocupação evidente é com a manutenção do projeto de poder do PT, que estaria correndo risco.
De fato, acendeu-se a luz amarela no Palácio do Planalto. A pesquisa CNI/Ibope revelou que o governo está sendo reprovado pela população em temas como inflação, juros, educação, saúde e, pasmem, emprego (o que não deixa de ser curioso, uma vez que o mercado de trabalho opera próximo do pleno emprego). A questão é saber se ainda há tempo, até a eleição, para o governo melhorar a avaliação de alguns desses itens e se há, de fato, disposição da presidente para promover mudanças a esta altura.
Do lado positivo, isto é, daquilo que pode de alguma forma melhorar a avaliação da gestão Dilma, está o fato de o Brasil, apesar do desempenho pífio da economia nos últimos anos, não estar em crise. E provavelmente não será atingido por uma nos próximos meses, salvo se houver uma catástrofe inesperada. 2014 não repete o cenário de 2002, quando o país sofreu uma crise cambial e esteve à beira de dar um calote no pagamento da dívida.
Do lado dos riscos, estão o aumento da inflação, especialmente de itens como alimentos, que pesam no bolso principalmente dos mais pobres, e uma possível crise de abastecimento de energia. Esses riscos surgem no momento em que já há um mau humor com o governo, disseminado não só entre empresários e banqueiros, mas também na própria população, como atestou a pesquisa CNI/Ibope.
Almeida acredita que a bola do jogo está com a presidente. Nos últimos meses, ela reconheceu tacitamente o fracasso dos experimentos do governo na área econômica, mudou em parte o rumo das coisas, mas não reconquistou a confiança, fato que está refletido nos principais preços da economia, nas expectativas de inflação deterioradas e no baixo interesse dos empresários em investir.
"Tenho dito para todos que a avaliação da presidente está no limbo: se piora um pouco é o inferno, se melhora um pouco é o céu. Só depende dela", diz Almeida, lembrando que limbo vem da palavra em latim que significa beira, borda.
É importante observar que, neste momento, as pesquisas de avaliação do governo são mais relevantes que as de intenção de voto. A razão é simples: afora a presidente, os contendores - até aqui, Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) - ainda são desconhecidos da população, nada que uma campanha não possa mudar ao longo do tempo.
Nos Estados Unidos, são comuns as pesquisas que procuram verificar as chances de ocupantes de cargos executivos a partir da avaliação de seus governos. No Brasil, quem está fazendo isso pela primeira vez é o cientista político Alberto Carlos de Almeida, fundador do Instituto Análise.
Num trabalho exaustivo sobre 104 eleições para governador ocorridas entre 1998 e 2010, Almeida constatou que, em 100% dos casos, os governadores que disputaram a reeleição e que, na última pesquisa antes do primeiro turno, tinham 46% ou mais de aprovação (soma de ótimo e bom) saíram vitoriosos. Descobriu também que 100% daqueles que tinham 34% ou menos de ótimo e bom foram derrotados.
Os números mostram, ainda, que 40% a 43% dos governadores que possuíam avaliação de ótimo e bom entre 35% e 45% foram reeleitos. "A derrota é um pouco mais frequente nesta faixa de avaliação", explica Almeida.
Há três possibilidades para os candidatos que buscam a reeleição. A releição "clássica", em que o governador é eleito uma vez e quatro anos depois disputa a reeleição; a reeleição "manca", em que o governador que disputa a reeleição não foi eleito quatro anos antes, mas assumiu o posto no meio do mandato porque o titular deixou o posto para disputar outro cargo ou então faleceu; e a "não releição", quando o governador não busca a reeleição.
Nos 104 pleitos analisados por Almeida, registraram-se 46 casos de reeleição "clássica", 22 de reeleição "manca" e 35 de não reeleição. Uma transposição da experiência dos governadores para a situação da presidente Dilma mostra que seu patamar de ótimo e bom neste momento - 36%, de acordo com a pesquisa CNI/Ibope - a coloca com aproximadamente 40% a 43% de chances de vitória em outubro. É pouco para quem já teve o governo aprovado por 63% da população (em março de 2013).
Há, porém, ponderações a serem feitas. A primeira, observa Alberto Carlos de Almeida, é que a avaliação do governo Dilma pode melhorar até a última pesquisa antes do primeiro turno da eleição, em outubro, tal como ocorreu na reeleição de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
No início da campanha eleitoral de 1998, Fernando Henrique tinha seu governo avaliado como ótimo e bom por 38% da população. Durante a campanha, a avaliação melhorou, subindo cinco pontos percentuais (para 43%). O presidente liquidou a fatura no primeiro turno da eleição.
Em 2006, Lula começou a campanha com sua gestão avaliada como ótima e boa igualmente por 38% da população. A avaliação ao longo da campanha cresceu mais que a de FHC em 1998, chegando a 47% dos entrevistados na pequisa realizada antes do primeiro turno da eleição. Lula venceu a disputa, mas, curiosamente, apenas no segundo turno.
Dilma tem, agora, avaliação pior que a de FHC e Lula, mas ainda está a seis meses da eleição. A presidente tem, portanto, chance de melhorar o desempenho nas pesquisas de avaliação de sua gestão, embora também haja espaço para piora até outubro.
Esta coluna apurou que, desde as manifestações populares iniciadas em meados do ano passado, quando a presidente sofreu forte perda de popularidade, petistas próximos a Lula passaram a considerar a possibilidade de o ex-presidente substituir Dilma na disputa deste ano. O movimento "Volta, Lula" seria deflagrado a partir da queda da avaliação de ótimo e bom do governo abaixo de 35%. A preocupação evidente é com a manutenção do projeto de poder do PT, que estaria correndo risco.
De fato, acendeu-se a luz amarela no Palácio do Planalto. A pesquisa CNI/Ibope revelou que o governo está sendo reprovado pela população em temas como inflação, juros, educação, saúde e, pasmem, emprego (o que não deixa de ser curioso, uma vez que o mercado de trabalho opera próximo do pleno emprego). A questão é saber se ainda há tempo, até a eleição, para o governo melhorar a avaliação de alguns desses itens e se há, de fato, disposição da presidente para promover mudanças a esta altura.
Do lado positivo, isto é, daquilo que pode de alguma forma melhorar a avaliação da gestão Dilma, está o fato de o Brasil, apesar do desempenho pífio da economia nos últimos anos, não estar em crise. E provavelmente não será atingido por uma nos próximos meses, salvo se houver uma catástrofe inesperada. 2014 não repete o cenário de 2002, quando o país sofreu uma crise cambial e esteve à beira de dar um calote no pagamento da dívida.
Do lado dos riscos, estão o aumento da inflação, especialmente de itens como alimentos, que pesam no bolso principalmente dos mais pobres, e uma possível crise de abastecimento de energia. Esses riscos surgem no momento em que já há um mau humor com o governo, disseminado não só entre empresários e banqueiros, mas também na própria população, como atestou a pesquisa CNI/Ibope.
Almeida acredita que a bola do jogo está com a presidente. Nos últimos meses, ela reconheceu tacitamente o fracasso dos experimentos do governo na área econômica, mudou em parte o rumo das coisas, mas não reconquistou a confiança, fato que está refletido nos principais preços da economia, nas expectativas de inflação deterioradas e no baixo interesse dos empresários em investir.
"Tenho dito para todos que a avaliação da presidente está no limbo: se piora um pouco é o inferno, se melhora um pouco é o céu. Só depende dela", diz Almeida, lembrando que limbo vem da palavra em latim que significa beira, borda.
É importante observar que, neste momento, as pesquisas de avaliação do governo são mais relevantes que as de intenção de voto. A razão é simples: afora a presidente, os contendores - até aqui, Aécio Neves (PSDB) e Eduardo Campos (PSB) - ainda são desconhecidos da população, nada que uma campanha não possa mudar ao longo do tempo.
02 de abril de 2014
Cristiano Romero, Valor Econômico
CAOS MARAVILHA
De 35 milhões de brasileiros nos anos 1930 chegamos a 200 milhões no início do século 21 - aumento grande e fundamentalmente urbano: nossas cidades "explodiram". Essa imensa população urbana deveria ter sua mobilidade bem atendida por transporte coletivo, mas isso não ocorreu: não construímos em tempo oportuno metrôs, linhas ferroviárias e escoamento rodoviário compatíveis com a demanda.
Simultânea à desatenção ao transporte coletivo ocorria a atenção enfática à indústria automobilística, que realmente incentivou a economia e o emprego. Mas sua dinâmica expansiva, estimulada pelo crédito alucinógeno, pela propaganda que associa carro a pertencer à vida moderna e, é claro, pela insatisfação com o transporte coletivo, induziu uma distorção no caráter coletivo brasileiro: o encanto obsessivo pelo carro.
A associação da precariedade do transporte coletivo com a obsessão pelo carro vem resultando dramática: dezenas, centenas de milhares de carros (milhões em São Paulo e no Rio) congestionam as ruas das cidades e até rodovias intermunicipais e interestaduais, dois ou três carros com duas ou três pessoas, otimisticamente cinco ou seis, ocupando o espaço que corresponde ao de um ônibus com 40 passageiros.
Um parêntesis: nossa imprevidência não se limitou ao transporte coletivo urbano: vivemos à mesma época o ocaso da cabotagem, a redução da malha ferroviária e o correlato aumento do uso do caminhão - cem caminhões transportando por estradas saturadas o que transporta um pequeno navio de 2 mil toneladas. Parêntesis fechado.
Os congestionamentos urbanos, há muito tempo rotineiros, estão sendo agravados hoje por constrangimentos ao tráfego decorrentes de obras pretendidas como soluções, algumas lógicas, tardias e já emergenciais, outras apenas paliativas ou até mesmo de discutível prioridade e oportunidade, justificadas como atendendo à aprazibilidade da (futura) vida local e à boa aparência. Exemplo maior, em curso no Rio de Janeiro: o macroprojeto do "porto maravilha", cujo início vem exponenciando o caos na região central da cidade.
A derrubada do elevado perimetral, que desafogava o centro do Rio, antes da construção de alternativa de efetividade ao menos similar, merece avaliação criteriosa. É razoável impor o calvário diário a centenas de milhares de cariocas, em proveito de uma futura aprazibilidade local e, argumento curioso em face da realidade sofrida a que o povo está sendo submetido, da aparência da região? Alguém se queixava da má aparência do elevado, admitindo que ela justificaria sua derrubada e o consequente apocalipse viário?
Esse problemão carioca, de natureza semelhante à dos problemas de muitas cidades brasileiras, sugere alguns comentários sobre uma questão presente em todos eles: o excesso de carros e as perspectivas distintas a esse respeito.
O prefeito carioca, Eduardo Paes, preconiza o não uso do carro no centro do Rio - e na prática concreta o dificulta, com interdições aos carros particulares. Recomenda o transporte coletivo, sabidamente insuficiente, desconfortável e inconfiável, haja vista a frequência de avarias, acidentes e atrasos. Essa recomendação, desnecessária se o transporte coletivo fosse satisfatório e atraente, reflete a preocupação municipal com o trânsito. E nela se insiste simultaneamente à propaganda e à prática de incentivos - crédito, redução de impostos... - que alimentam a compra do carro, preocupação federal com a economia, o emprego e, evidentemente, a receita tributária.
Resumindo a dicotomia: "entre no clima" da época e compre carro, mas deixe-o em casa e prefira o metrô, o trem e o ônibus, numa demonstração de cidadania responsável. Ao mesmo tempo que são estimulados a comprar carro, os cariocas são instados a optar pelo sacrifício no transporte coletivo de (sejamos condescendentes...) qualidade precária, a ser compensado no futuro pelas delícias da vida no e pela exuberância estética do prometido "porto maravilha". São estimulados a assimilar a sofrida realidade dita temporária em proveito de um paraíso futuro.
O que significa exatamente a temporalidade do sacrifício no nosso melífluo mundo oficial? Vale a pena pensar nisso.
É segura a promessa do paraíso quando continuam sendo emplacadas dezenas de milhares de carros todo mês e qualquer pequena redução é vociferada como ameaça à economia e ao emprego? É segura a promessa do paraíso quando as obras do metrô carioca - e outras que visam à mobilidade urbana -, atrasadas há decênios, se arrastam no tempo? Provavelmente se chegará ao fim dos projetos em andamento (linhas de metrô, novos trens, ruas com seus túneis e viadutos) já em déficit ante a necessidade crescente.
Complementando: é plausível que, atendendo ao discurso oficial, os estratos médio e inferior da pirâmide social (para o superior a dúvida nem sequer vale a pena ser cogitada) aceitem não usar o carro tão insistentemente propagandeado, tão ansiosamente desejado e frequentemente adquirido ao custo de endividamento comprometedor do equilíbrio financeiro pessoal ou familiar, optando com "responsabilidade cívica" por sofrer no transporte coletivo? Não usar o carro e usar o precário transporte coletivo raramente é opção pensada: não usa carro quem não o tem, quem não tem onde estacioná-lo no destino (outra incógnita da equação) e quem não pode arcar com as despesas de sua utilização.
Moderar o crescimento do fluxo de carros passa por melhora convincente do transporte público e pelo autocomedimento do nosso obsessivo malthusianismo motorizado - carros e, hoje em dia, também motos -, improvável enquanto o transporte coletivo continuar deficiente e o carro prosseguir como passaporte para a realização social e motor relevante da economia.
Simultânea à desatenção ao transporte coletivo ocorria a atenção enfática à indústria automobilística, que realmente incentivou a economia e o emprego. Mas sua dinâmica expansiva, estimulada pelo crédito alucinógeno, pela propaganda que associa carro a pertencer à vida moderna e, é claro, pela insatisfação com o transporte coletivo, induziu uma distorção no caráter coletivo brasileiro: o encanto obsessivo pelo carro.
A associação da precariedade do transporte coletivo com a obsessão pelo carro vem resultando dramática: dezenas, centenas de milhares de carros (milhões em São Paulo e no Rio) congestionam as ruas das cidades e até rodovias intermunicipais e interestaduais, dois ou três carros com duas ou três pessoas, otimisticamente cinco ou seis, ocupando o espaço que corresponde ao de um ônibus com 40 passageiros.
Um parêntesis: nossa imprevidência não se limitou ao transporte coletivo urbano: vivemos à mesma época o ocaso da cabotagem, a redução da malha ferroviária e o correlato aumento do uso do caminhão - cem caminhões transportando por estradas saturadas o que transporta um pequeno navio de 2 mil toneladas. Parêntesis fechado.
Os congestionamentos urbanos, há muito tempo rotineiros, estão sendo agravados hoje por constrangimentos ao tráfego decorrentes de obras pretendidas como soluções, algumas lógicas, tardias e já emergenciais, outras apenas paliativas ou até mesmo de discutível prioridade e oportunidade, justificadas como atendendo à aprazibilidade da (futura) vida local e à boa aparência. Exemplo maior, em curso no Rio de Janeiro: o macroprojeto do "porto maravilha", cujo início vem exponenciando o caos na região central da cidade.
A derrubada do elevado perimetral, que desafogava o centro do Rio, antes da construção de alternativa de efetividade ao menos similar, merece avaliação criteriosa. É razoável impor o calvário diário a centenas de milhares de cariocas, em proveito de uma futura aprazibilidade local e, argumento curioso em face da realidade sofrida a que o povo está sendo submetido, da aparência da região? Alguém se queixava da má aparência do elevado, admitindo que ela justificaria sua derrubada e o consequente apocalipse viário?
Esse problemão carioca, de natureza semelhante à dos problemas de muitas cidades brasileiras, sugere alguns comentários sobre uma questão presente em todos eles: o excesso de carros e as perspectivas distintas a esse respeito.
O prefeito carioca, Eduardo Paes, preconiza o não uso do carro no centro do Rio - e na prática concreta o dificulta, com interdições aos carros particulares. Recomenda o transporte coletivo, sabidamente insuficiente, desconfortável e inconfiável, haja vista a frequência de avarias, acidentes e atrasos. Essa recomendação, desnecessária se o transporte coletivo fosse satisfatório e atraente, reflete a preocupação municipal com o trânsito. E nela se insiste simultaneamente à propaganda e à prática de incentivos - crédito, redução de impostos... - que alimentam a compra do carro, preocupação federal com a economia, o emprego e, evidentemente, a receita tributária.
Resumindo a dicotomia: "entre no clima" da época e compre carro, mas deixe-o em casa e prefira o metrô, o trem e o ônibus, numa demonstração de cidadania responsável. Ao mesmo tempo que são estimulados a comprar carro, os cariocas são instados a optar pelo sacrifício no transporte coletivo de (sejamos condescendentes...) qualidade precária, a ser compensado no futuro pelas delícias da vida no e pela exuberância estética do prometido "porto maravilha". São estimulados a assimilar a sofrida realidade dita temporária em proveito de um paraíso futuro.
O que significa exatamente a temporalidade do sacrifício no nosso melífluo mundo oficial? Vale a pena pensar nisso.
É segura a promessa do paraíso quando continuam sendo emplacadas dezenas de milhares de carros todo mês e qualquer pequena redução é vociferada como ameaça à economia e ao emprego? É segura a promessa do paraíso quando as obras do metrô carioca - e outras que visam à mobilidade urbana -, atrasadas há decênios, se arrastam no tempo? Provavelmente se chegará ao fim dos projetos em andamento (linhas de metrô, novos trens, ruas com seus túneis e viadutos) já em déficit ante a necessidade crescente.
Complementando: é plausível que, atendendo ao discurso oficial, os estratos médio e inferior da pirâmide social (para o superior a dúvida nem sequer vale a pena ser cogitada) aceitem não usar o carro tão insistentemente propagandeado, tão ansiosamente desejado e frequentemente adquirido ao custo de endividamento comprometedor do equilíbrio financeiro pessoal ou familiar, optando com "responsabilidade cívica" por sofrer no transporte coletivo? Não usar o carro e usar o precário transporte coletivo raramente é opção pensada: não usa carro quem não o tem, quem não tem onde estacioná-lo no destino (outra incógnita da equação) e quem não pode arcar com as despesas de sua utilização.
Moderar o crescimento do fluxo de carros passa por melhora convincente do transporte público e pelo autocomedimento do nosso obsessivo malthusianismo motorizado - carros e, hoje em dia, também motos -, improvável enquanto o transporte coletivo continuar deficiente e o carro prosseguir como passaporte para a realização social e motor relevante da economia.
02 de abril de 2014
Mario Cesar Flores, O Estado de S.Paulo
LULA ENGANOU A SI PRÓPRIO OU A NÓS?
Está fresca na memória de milhões de brasileiros a exaltação que o ex-presidente Lula fazia da capacitação e da competência de sua candidata Dilma Rousseff, quando ela disputava as eleições de quatro anos atrás. Pelas palavras que usava em relação à futura sucessora, tinha-se a impressão de que seria mesmo uma pessoa preparada para a função.
Como ele a conhecia, e detinha prévia ciência de seu gênio ora voluntarioso, ora arrogante, bem como da enorme incapacidade administrativa que vem demonstrando, é forçoso concluir que houve comprometedor engano.
Com sua invejável erudição, o imortal padre Antônio Vieira costumava repetir que "os homens amam as coisas não como são, senão como as imaginam". No caso do ex-presidente Lula, com bastante boa vontade é possível concluir que talvez o engano não tenha sido proposital; ou possivelmente ele não sabia quem era Dilma Rousseff, cujas virtudes demonstrava apreciar. Assim, estaria a elogiar uma pessoa que ele pensava ser uma, quando, na verdade, era outra.
O mesmo padre Vieira dá o exemplo desses enganos que ocorrem na vida, lembrando a propósito o relatado com talento por Luiz de Camões, no conhecido soneto em que o pastor Jacó serviu a Labão, por sete anos, porque como prêmio pretendia sua filha Raquel, mas ao final deram-lhe a irmã dela, Lia. E o infeliz pastor concordou em servir mais sete anos para merecer Raquel, dizendo que ainda mais serviria "se não fora para tão longo amor tão curta a vida".
No caso de Dilma, não foram sete anos, mas já quase quatro - e nesse período ela conseguiu cometer repetidos erros grosseiros que a desmerecem, comprometem gradativamente sua administração e começam a influir nas avaliações de sua imagem pessoal e na de seu governo. Quem sabe para camuflar seu despreparo, ela acabou criando uma infinidade de ministérios, cujos ocupantes não serão lembrados a não ser com a ajuda do computador.
Não se viu surgir um único talento nessa equipe de políticos que lutaram tanto para obter o prêmio da nomeação. Mesmo que se filtre com boa vontade o trabalho desses assessores diretos da presidente da República, e se elimine a comparação que toda hora se faz com os cartolas do futebol, é forçoso concluir que nenhum deles alcançou o menor destaque ou notoriedade. Nem mesmo o nome deles será lembrado pela grande maioria de brasileiros.
Quando Lula estava no poder sempre se lhe dava o desconto pelos erros grosseiros, porque, afinal, ele vinha lá de baixo, numa linda carreira política jamais trilhada antes por outro brasileiro. Pouco erudito, muitas vezes tosco, outras vezes incapaz de perceber os próprios desacertos praticados, detinha, porém, a habilidade de fazer costuras políticas bem-sucedidas, como a de indicar e eleger um medíocre ministro da Educação para a Prefeitura de São Paulo (os resultados lamentáveis também desse engano são sentidos pelos paulistanos a toda hora).
Quando esteve no poder - e mesmo agora -, Lula tinha um grupo político que lhe era fiel e sobre o qual exercia efetiva liderança. A presidente Dilma, ao contrário, desastrada na gestão do País, chegou ao poder em função de uma luz emprestada e não teve a habilidade de construir a sua - por isso propaga a ideia de que está às escuras.
Talvez alguém diga que, apesar desse despreparo e de seu temperamento nada simpático, ela ainda tem chance de se reeleger presidente da República. Sim, tem mesmo. Desastrada para governar e para impulsionar o País ladeira acima, e não abaixo, Dilma Rousseff foi esperta o suficiente para manter o gigantesco curral eleitoral constituído por pessoas que recebem os benefícios sociais do governo.
Essas pessoas, de baixa escolaridade, não estão nem um pouco preocupadas com o escândalo do mensalão nem com o progressivo desmanche da Petrobrás, que foi durante décadas motivo de orgulho para os brasileiros. Essas pessoas, que ascenderam economicamente por causa da manutenção do valor da moeda nacional, estão preocupadas preferencialmente em ver o preço de uma nova televisão ou de uma geladeira, até mesmo de um veículo usado.
Não lhes faz diferença alguma se os escândalos de corrupção estouram a toda hora e se a imagem externa do Brasil despenca progressivamente. A verdade nada animadora é que esse curral eleitoral tem dono e nós todos sabemos em quem seus integrantes tenderão a votar na eleição para a Presidência da República. Eles se encontram na base da pirâmide social, constituem a grande maioria do eleitorado e são eles, portanto, que poderão decidir as eleições do fim do ano.
Sem nenhuma dúvida, isso incomoda, sobretudo porque se percebe claramente a tendência governamental de manter essa grande massa humana na condição de baixa escolaridade. Todos sabemos que a educação liberta - e por isso é muito melhor para o grupo que está no poder deixar tudo como está. Nada de querer dar mais educação a essas pessoas.
Suportar uma presidente trapalhona e malsucedida é castigo que este país não merece. Dizem os velhos políticos que a política é feita de fatos novos e, por isso, existe a expectativa de que de repente alguma coisa mude e desenhe a possibilidade de um revezamento de pessoas no poder, coisa saudável para a democracia e para a Nação brasileira.
A forma mais segura de garantir um futuro melhor seria proporcionar efetiva educação ao curral eleitoral de dona Dilma, libertando essas pessoas do castigo de ter de votar em alguém que não mostrou mesmo o necessário preparo para dirigir o País.
Curiosamente, curral eleitoral é capitulado como crime pela legislação eleitoral, mas mesmo assim é um fantasma que sempre nos assombra.
02 de abril de 2014
Aloisio de Toledo César, O Estado de S.Paulo
ANDRÉ VARGAS E O PT 2.0
O comissário voou num jatinho de doleiro para um descanso porque, como se sabe, as passagens estão caras
Quem não se lembra do deputado André Vargas (PT-PR)? Quando o ex-governador gaúcho Olívio Dutra sugeriu que o deputado José Genoino renunciasse ao mandato, o companheiro foi-lhe à jugular: “Quando ele passou pelos problemas da CPI do Jogo do Bicho, teve a compreensão de todo mundo. (...) Ele está sendo pouco compreensivo. Ele já passou por muitos problemas, né?”
Falso. Olívio Dutra nunca assinou empréstimos fraudulentos, nunca foi acusado de envolvimento no caso do bicho e jamais foi condenado pela Justiça. Ao contrário, é uma das poucas lembranças da moralidade petista.
Quem não se lembra desse episódio talvez se recorde da cena em que o comissário Vargas, vice-presidente da Câmara, saudou seus companheiros com o punho cerrado, estando ao lado do presidente do Supremo Tribunal Federal. Parecia um Pantera Negra dos anos 60.
Vargas é um representante do PT 2.0. A repórter Andréia Sadi apanhou-o voando para as férias nas asas do doleiro Alberto Youssef, figurinha fácil de inquéritos policiais e poderoso intermediário na Petrobras.
Desde que os jatinhos tornaram-se símbolo de poder e conforto, hierarcas de todos os partidos recorrem a amigos para não voar com a patuleia.
Vargas, contudo, inovou na justificativa. Disse que cometeu uma “imprudência”. Teria sido imprudência se tivesse entrado por engano no avião fretado pelo doleiro, depois de ter sido chamado para embarcar num voo comercial. Não foi imprudência, mas onipotência.
Novo argumento: pediu o jatinho a Youssef porque os voos comerciais estão muito caros. Certo. A escumalha que vai para a rodoviária por esse mesmo motivo merece o desconforto porque não tem doleiro amigo.
O melhor momento do companheiro deu-se quando revelou que conhece Youssef há mais de 20 anos, mas não sabia com quem estava se relacionando. Seria então a única pessoa que não sabe a atividade de um amigo com quem se relaciona há mais de 20 anos. Youssef fornece jatinhos para amigos poderosos desde 2001. Anos depois, frequentou o noticiário do escândalo do Banestado, passou pela cadeia, refrescou-se colaborando com o Ministério Público, mas não se livrou de uma condenação.
Numa troca de mensagens com Youssef (cuja atividade comercial Vargas desconhecia), o companheiro tratou de um interesse da empresa Labogen junto ao comissário Carlos Gadelha, do Ministério da Saúde. Por coincidência, essa pequena empresa teria sido usada pelo doleiro para remeter US$ 37 milhões ao exterior.
O amigo de André Vargas não é um doleiro petista, mas um operador suprapartidário. Já cedeu jatinhos para gente do PFL e tem relações no PP, pelo menos com o ex-deputado José Janene, um dos ases do mensalão. A presença de Youssef em negócios da Petrobras, cobrando pedágios a fornecedores, é um sinal de que mudou de patamar. Ele tratava com o diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa, a quem presenteou com uma Range Rover. Há um enorme cheiro de outro velho escândalo no ar. Quando por nada, pelas coincidências. Em 2005 descobriu-se que outro fornecedor da Petrobras presenteara Silvio Pereira, secretário-geral do PT, com uma Land Rover. André Vargas nunca diria uma palavra contra Silvinho, pois sabe quão compreensivo ele foi.
02 de abril de 2014
Elio Gaspari, Folha de SP
DE PEDRAS E COBRAS
O governo vai de novo enfiando os pés pelas mãos na tentativa de administrar politicamente um problema. No caso, a CPI da Petrobrás.
Na semana passada, deu de graça para a oposição a vitória no primeiro lance. Sem número suficiente para conseguir as assinaturas necessárias, a minoria chegou lá nas asas do descompasso da articulação política do Palácio do Planalto, que ainda não percebeu que os tempos são outros.
O governo quis aplicar agora o mesmo truque que esvaziou a CPI sobre os negócios de Carlos Cachoeira, em 2012: ampliar as investigações de modo a não se investigar nada.
A ideia seria incluir na pauta da comissão da Petrobrás os casos do cartel dos trens do Metrô de São Paulo e irregularidades no Porto de Suape, em Pernambuco.
Manobra primária. Só dá certo quando o adversário está de boa vontade e o exército aliado, unido e fiel. Não é o que acontece. O governo não levou em consideração a evidência de que nos últimos dois anos o cenário mudou. Nada mais é como antes.
A começar pelo fato de que existem dois candidatos de oposição à Presidência da República; ambos são políticos experientes, todos os dois com controle de votos dentro do Congresso. Governador duas vezes, presidente da Câmara uma vez, deputado federal quatro vezes, Aécio Neves é senador e presidente do PSDB. Governador duas vezes, deputado federal três vezes, Eduardo Campos é presidente do PSB. Os dois aprenderam a fazer política com os avôs, Tancredo Neves e Miguel Arraes.
Atuam em consonância na medida e no limite dos respectivos interesses, com um ponto de convergência: atrapalhar a vida da presidente Dilma Rousseff, do ex-presidente Lula e de quem mais represente o projeto de poder do PT.
Com esse objetivo em mente e a possibilidade de uma CPI como a da Petrobrás nas mãos para servir como instrumento de agitação eleitoral (sim, é disso que se trata, não obstante haja hordas de esqueletos a serem tirados dos armários) Aécio e Campos não se intimidariam diante de tão tosca ameaça de chantagem.
Os governistas querem investigar o Metrô de São Paulo e o Porto de Pernambuco? Expliquem porque estavam quietos até agora diante desses episódios e organizem comissões de inquérito específicas. Com outras palavras, foi o que os dois responderam. Inclusive porque era a única reação possível. E previsível.
Como se já não bastasse a entrada em cena de uma oposição interessada e empenhada em roubar a cena, o governo encontra outros obstáculos para desmanchar no ar comissões de inquérito.
Em 2012 não havia, mas agora há o acentuado desapego - para dizer de maneira suave - dos parlamentares governistas pelo dever de compromisso em relação à presidente da República. O desagrado com ela é pessoal. Com o PT a questão é política. Juntas, as duas motivações não formam um ambiente amigável.
Além disso, há a eleição. Vale para a oposição e para a situação. Nenhum senador que seja candidato a governador, por exemplo, vai optar por fazer a vontade do Planalto se ficar a favor da CPI lhe rende pontos com o eleitorado. A mesma conta devem fazer aqueles deputados que há meses reclamam do favorecimento do Planalto em relação aos colegas petistas em suas bases.
Portanto, não é preciso desenhar, está suficientemente explicada a diferença do pano de fundo entre a CPI da Petrobrás e aquele arremedo de investigação de dois anos atrás.
Isso não quer dizer que o governo não consiga seu objetivo. Significa que será mais difícil, custará mais caro e mostrará a uma governante refratária ao diálogo político que, uma vez aceitas as regras do jogo, é preciso jogar.
Quando foi buscar apoio dos partidos para se eleger, Dilma Rousseff sabia dos termos do contrato. Nunca propôs uma revisão às claras, embora tivesse força no início para isso. Agora enfrenta dois adversários que conhecem mais que ela os meandros dos caminhos e a fazem pular miudinho entre as pedras sob as quais se escondem as cobras.
02 de abril de 2014
Dora Kramer, O Estado de S.Paulo
ARMA (NADA) SECRETA
Meu comentário para o Globo a Mais de ontem foi sobre a estratégia do candidato tucano para enfrentar a ameaça da candidatura Lula, tida pelo senso comum como imbatível. Comentei que ao tratar abertamente da possibilidade de o ex-presidente Lula vir a disputar a Presidência da República já este ano, em lugar de Dilma, o senador Aécio Neves atacou dois problemas de uma vez só: ao mesmo tempo em que enfraquece sua provável adversária direta, que continua sendo a candidata natural do PT mesmo com as dificuldades de seu governo, trata de esconjurar o fantasma da candidatura Lula, vista pelos petistas como a bomba atômica que o PT tem para acabar com a guerra em caso de necessidade.
Dizer que não importa se o candidato será Lula ou Dilma, e sim derrotar o modelo de governo que representam, significa que a candidatura do PSDB terá seu foco em um projeto de governo, e não na mera disputa política que confronta petistas e tucanos desde 1994.
Deste modo, derrotar o mito em que Lula se transformou na eleição presidencial seria uma consequência do convencimento do eleitorado de que o tempo do PT já se esgotou. O presidente do PSDB vem aumentando o tom de suas críticas ao governo nos últimos meses, e trabalha nos bastidores do Congresso para causar danos ao Planalto nesta reta final da pré-campanha.
A CPI da Petrobras foi uma vitória sua, desde a mobilização da pequena oposição parlamentar até o convencimento de aliados governistas a aderirem à convocação. A atuação conjunta com o PSB, inicialmente refratário à ideia da CPI, mostra que tanto Aécio quanto Eduardo Campos estão convencidos de que dependem um do outro para chegarem à vitória, mesmo que um imagine que derrotará o outro no primeiro turno.
O governador Eduardo Campos já desenvolveu a tese de que o eleitor fará um voto útil nele, pois intuirá que tem mais chance de vencer o segundo turno que Aécio. Por um raciocínio que à primeira vista parece lógico, ele diz que os eleitores de Aécio o apoiarão em massa num hipotético segundo turno, enquanto seu eleitorado pode se dividir, muitos voltando para a candidatura governista.
As pesquisas de opinião, no entanto, estão mostrando um quadro diferente, com o candidato do PSDB recebendo mais apoio dos eleitores de Dilma do que Eduardo Campos, o que mostra que o eleitor não trabalha com uma lógica binária oposição versus situação. O movimento do eleitorado é muito mais aleatório do que se imagina, e mesmo o apoio ostensivo num segundo turno não garante a adesão total daquele eleitorado.
Na eleição de 2010, por exemplo, mesmo Marina tendo ficado em cima do muro, a maior parte de seus eleitores foi para a candidatura do tucano José Serra. O analista do Estadão , jornalista José Roberto Toledo, fez recentemente uma decomposição das pesquisas do Ibope mostrando que teoricamente metade do eleitorado de Dilma é passível de mudar o voto em favor de Aécio, sendo que um em cada quatro eleitores que dizem que votariam em Dilma com certeza também diz que votaria em Aécio.
Com Campos, porém, as sobreposições são menores, apenas 17% do eleitorado dilmista dizem que votariam ou poderiam votar nele. Tudo dependerá da situação da economia e de como os candidatos de oposição se comportarão na propaganda de rádio e TV.
Lula sem dúvida é um grande cabo eleitoral, mas mesmo no auge da popularidade, e com a economia crescendo a 7,5% em 2010, teve dificuldades de emplacar Dilma como a grande gerente, mãe do PAC. Sua vitória sobre Serra deu-se por 56% a 44% no 2º turno, aumentando a média dos candidatos tucanos, demonstrando que há um grupo de mais de 40% do eleitorado disposto a votar na oposição, seja qual for o candidato.
Hoje, com o país tendo o menor crescimento dos últimos 20 anos e, sobretudo, conhecendo Dilma como os brasileiros já a conhecem, a tarefa parece mais difícil. Caso se torne praticamente impossível, a arma (nada) secreta petista deverá ser acionada. Mas o próprio Lula deve levar uma questão em conta ao analisar a possível candidatura: uma imprevisível derrota acabaria com o mito. Um governo mal-sucedido diante das dificuldades econômicas previstas também.
02 de abril de 2014
Merval Pereira, O Globo
Dizer que não importa se o candidato será Lula ou Dilma, e sim derrotar o modelo de governo que representam, significa que a candidatura do PSDB terá seu foco em um projeto de governo, e não na mera disputa política que confronta petistas e tucanos desde 1994.
Deste modo, derrotar o mito em que Lula se transformou na eleição presidencial seria uma consequência do convencimento do eleitorado de que o tempo do PT já se esgotou. O presidente do PSDB vem aumentando o tom de suas críticas ao governo nos últimos meses, e trabalha nos bastidores do Congresso para causar danos ao Planalto nesta reta final da pré-campanha.
A CPI da Petrobras foi uma vitória sua, desde a mobilização da pequena oposição parlamentar até o convencimento de aliados governistas a aderirem à convocação. A atuação conjunta com o PSB, inicialmente refratário à ideia da CPI, mostra que tanto Aécio quanto Eduardo Campos estão convencidos de que dependem um do outro para chegarem à vitória, mesmo que um imagine que derrotará o outro no primeiro turno.
O governador Eduardo Campos já desenvolveu a tese de que o eleitor fará um voto útil nele, pois intuirá que tem mais chance de vencer o segundo turno que Aécio. Por um raciocínio que à primeira vista parece lógico, ele diz que os eleitores de Aécio o apoiarão em massa num hipotético segundo turno, enquanto seu eleitorado pode se dividir, muitos voltando para a candidatura governista.
As pesquisas de opinião, no entanto, estão mostrando um quadro diferente, com o candidato do PSDB recebendo mais apoio dos eleitores de Dilma do que Eduardo Campos, o que mostra que o eleitor não trabalha com uma lógica binária oposição versus situação. O movimento do eleitorado é muito mais aleatório do que se imagina, e mesmo o apoio ostensivo num segundo turno não garante a adesão total daquele eleitorado.
Na eleição de 2010, por exemplo, mesmo Marina tendo ficado em cima do muro, a maior parte de seus eleitores foi para a candidatura do tucano José Serra. O analista do Estadão , jornalista José Roberto Toledo, fez recentemente uma decomposição das pesquisas do Ibope mostrando que teoricamente metade do eleitorado de Dilma é passível de mudar o voto em favor de Aécio, sendo que um em cada quatro eleitores que dizem que votariam em Dilma com certeza também diz que votaria em Aécio.
Com Campos, porém, as sobreposições são menores, apenas 17% do eleitorado dilmista dizem que votariam ou poderiam votar nele. Tudo dependerá da situação da economia e de como os candidatos de oposição se comportarão na propaganda de rádio e TV.
Lula sem dúvida é um grande cabo eleitoral, mas mesmo no auge da popularidade, e com a economia crescendo a 7,5% em 2010, teve dificuldades de emplacar Dilma como a grande gerente, mãe do PAC. Sua vitória sobre Serra deu-se por 56% a 44% no 2º turno, aumentando a média dos candidatos tucanos, demonstrando que há um grupo de mais de 40% do eleitorado disposto a votar na oposição, seja qual for o candidato.
Hoje, com o país tendo o menor crescimento dos últimos 20 anos e, sobretudo, conhecendo Dilma como os brasileiros já a conhecem, a tarefa parece mais difícil. Caso se torne praticamente impossível, a arma (nada) secreta petista deverá ser acionada. Mas o próprio Lula deve levar uma questão em conta ao analisar a possível candidatura: uma imprevisível derrota acabaria com o mito. Um governo mal-sucedido diante das dificuldades econômicas previstas também.
02 de abril de 2014
Merval Pereira, O Globo
CUSTOS DA POLÍTICA EXTERNA
O Itamaraty propôs a elaboração de um Livro Branco contendo, nas palavras do ministro Luiz Alberto Figueiredo Machado, "princípios, prioridades e linhas de ação da política externa". Com vistas a oferecer subsídios a esse processo, organizou "uma série de eventos de diálogo entre governo, Congresso e sociedade civil".
No Brasil, não há tradição quanto à elaboração de documentos oficiais que reflitam as diferentes opiniões de segmentos da sociedade civil sobre temas específicos ou objetivos da política do governo com relação a tais temas. No Reino Unido, país onde tal tradição foi estabelecida originalmente, White Paper é um documento que detalha a política futura quanto a determinado tema e propõe legislação. Em tese, o White Paper faz uso de material produzido por Comissões Reais (Royal Commissions) e Green Papers, destinados a estimular o debate na sociedade civil. A iniciativa do Itamaraty está mais próxima à que caberia a uma Comissão Real, embora o esforço de captação do leque de opiniões da sociedade civil tenha sido menos ambicioso no Brasil. Talvez o esforço de consulta à sociedade civil devesse ter sido mais intenso e em prazo mais dilatado. Seja como for, a etapa crucial do processo é a agregação das opiniões da sociedade civil e sua transformação em recomendações de política, processo sob total controle do governo.
Embora as intenções do ministro sejam louváveis, o "timing" da iniciativa é um tanto peculiar. O que a justificaria, em pleno ano eleitoral, quase 12 anos depois da inflexão da política externa herdada do governo Cardoso? Talvez uma tardia tentativa de recuperação do espaço perdido para assessores presidenciais pelo Itamaraty na formulação da política externa? O Livro Branco conterá recomendações suprapartidárias de política externa? O assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais fez, no lançamento dos diálogos propostos pelo ministro Figueiredo, enfática defesa da tese de que o matiz ideológico do governo do dia deve se refletir na política externa adotada pelo País. O Livro Branco será compatível com essa posição?
Mais do que um Livro Branco ou Verde, a política externa brasileira necessita de um laudo de autópsia. A lista de revezes é considerável. E em quase todos os casos há indeléveis digitais da assessoria do Palácio do Planalto. O problema não é apenas quanto à ênfase ideológica. É também de clara insuficiência quanto à avaliação e análise.
Há episódios políticos custosos cujos danos são de avaliação difícil, embora afetem a imagem do País: frustrada mediação no Oriente Médio, rocambolescos episódios envolvendo políticos hondurenhos e bolivianos, promiscuidade nas relações com governantes desmoralizados nos países vizinhos.
Já em outros casos os prejuízos são tangíveis. A Refinaria Abreu e Lima foi projetada para refinar, em Pernambuco, óleo pesado da Venezuela e do Brasil. Teria participação de 40% da PDVSA como sócia da Petrobrás. Os custos do projeto aumentaram oito vezes desde 2005 e a PDVSA não foi capaz de oferecer nem os recursos nem as garantias necessárias para obter financiamento do BNDES de forma a cumprir suas obrigações. Ao mesmo tempo, setores empresariais brasileiros - empreiteiras e exportadores de produtos agrícolas -, inicialmente entusiasmados com as oportunidades de negócios abertas pelo chavismo, hoje amargam contas atrasadas.
O documento sobre estratégia de política externa útil para qualquer presidente que tome posse em 2015 deve dar maior peso aos objetivos nacionais permanentes e tratar de refletir de forma crítica as idiossincrasias do governo do dia. Deverá buscar o meio-termo entre a omissão - cômoda, porém fatal para a pretensão brasileira de maior visibilidade global - e o ativismo desprovido de meios cujo resultado sempre é a perda de face.
No Brasil, não há tradição quanto à elaboração de documentos oficiais que reflitam as diferentes opiniões de segmentos da sociedade civil sobre temas específicos ou objetivos da política do governo com relação a tais temas. No Reino Unido, país onde tal tradição foi estabelecida originalmente, White Paper é um documento que detalha a política futura quanto a determinado tema e propõe legislação. Em tese, o White Paper faz uso de material produzido por Comissões Reais (Royal Commissions) e Green Papers, destinados a estimular o debate na sociedade civil. A iniciativa do Itamaraty está mais próxima à que caberia a uma Comissão Real, embora o esforço de captação do leque de opiniões da sociedade civil tenha sido menos ambicioso no Brasil. Talvez o esforço de consulta à sociedade civil devesse ter sido mais intenso e em prazo mais dilatado. Seja como for, a etapa crucial do processo é a agregação das opiniões da sociedade civil e sua transformação em recomendações de política, processo sob total controle do governo.
Embora as intenções do ministro sejam louváveis, o "timing" da iniciativa é um tanto peculiar. O que a justificaria, em pleno ano eleitoral, quase 12 anos depois da inflexão da política externa herdada do governo Cardoso? Talvez uma tardia tentativa de recuperação do espaço perdido para assessores presidenciais pelo Itamaraty na formulação da política externa? O Livro Branco conterá recomendações suprapartidárias de política externa? O assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais fez, no lançamento dos diálogos propostos pelo ministro Figueiredo, enfática defesa da tese de que o matiz ideológico do governo do dia deve se refletir na política externa adotada pelo País. O Livro Branco será compatível com essa posição?
Mais do que um Livro Branco ou Verde, a política externa brasileira necessita de um laudo de autópsia. A lista de revezes é considerável. E em quase todos os casos há indeléveis digitais da assessoria do Palácio do Planalto. O problema não é apenas quanto à ênfase ideológica. É também de clara insuficiência quanto à avaliação e análise.
Há episódios políticos custosos cujos danos são de avaliação difícil, embora afetem a imagem do País: frustrada mediação no Oriente Médio, rocambolescos episódios envolvendo políticos hondurenhos e bolivianos, promiscuidade nas relações com governantes desmoralizados nos países vizinhos.
Já em outros casos os prejuízos são tangíveis. A Refinaria Abreu e Lima foi projetada para refinar, em Pernambuco, óleo pesado da Venezuela e do Brasil. Teria participação de 40% da PDVSA como sócia da Petrobrás. Os custos do projeto aumentaram oito vezes desde 2005 e a PDVSA não foi capaz de oferecer nem os recursos nem as garantias necessárias para obter financiamento do BNDES de forma a cumprir suas obrigações. Ao mesmo tempo, setores empresariais brasileiros - empreiteiras e exportadores de produtos agrícolas -, inicialmente entusiasmados com as oportunidades de negócios abertas pelo chavismo, hoje amargam contas atrasadas.
O documento sobre estratégia de política externa útil para qualquer presidente que tome posse em 2015 deve dar maior peso aos objetivos nacionais permanentes e tratar de refletir de forma crítica as idiossincrasias do governo do dia. Deverá buscar o meio-termo entre a omissão - cômoda, porém fatal para a pretensão brasileira de maior visibilidade global - e o ativismo desprovido de meios cujo resultado sempre é a perda de face.
02 de abril de 2014
Marcelo de Paiva Abreu, O Estado de S.Paulo
ESPECIALISTAS RECOMENDAM POUPAR A ELETRICIDADE
Comprovadamente, o Brasil é um grande predador de energia, incapaz de combater o desperdício com mudanças de tradicionais hábitos da população. Já tivemos iniciativas infrutíferas, com o escopo de sensibilizar os brasileiros sobre a imprescindibilidade do uso eficiente e racional da energia, relacionando-a às modernas questões ambientais e socioeconômicas do país.
É preciso consolidar, urgentemente, essas mudanças de comportamento do emprego da energia elétrica no aspecto global do desenvolvimento sustentado. Não se trata, no entanto, de uma questão nova. Há anos, as autoridades do setor, engenheiros, técnicos e especialistas relacionados com os sistemas energéticos têm sido chamados a conservar energia e reduzir desperdício, nos mais variados níveis de produção e consumo.
A demanda mundial de energia vem crescendo exponencialmente. Em parte, porque as populações e suas necessidades também estão crescendo. Acentuam-se os sinais de que o Planeta Terra não está mais suportando o crescimento populacional nem o aumento da atividade econômica. A maioria das empresas brasileiras não faz acompanhamento sistemático do consumo energético, porque isso é considerado irrelevante.
No tocante à iluminação pública, vários estudos demonstram que ela é excessiva entre nós, sendo responsável por mais de 5% de toda a eletricidade consumida no Brasil. Lâmpadas mais eficientes do que as tradicionais incandescentes já deveriam ser utilizadas. Os reflexos sobre o atendimento da demanda elétrica e o racionamento da energia acentuaram-se, com preocupações, quando a oferta cresceu 40% menos do que o previsto, em 2013.
Em decorrência, novo racionamento, à semelhança do havido em 2001, bate às nossas portas e terá sérias repercussões, às vésperas de uma eleição presidencial e da Copa do Mundo e com crescimento do PIB desacelerado para 1,3% em 2013, ante 4,2% em 2000.
Os problemas são ignorados pelo governo, quando já deveríamos efetuar a exegese das falhas e saneá-las, enquanto fosse possível. Com dezenas de apagões ocorrendo em todo o Brasil (em 2013, houve 45 deles), a causa é atribuída à falta de chuvas, com os reservatórios das hidrelétricas com volumes de água excessivamente baixos e iguais aos níveis de 14 anos atrás. A expectativa de intensas chuvas, a partir de março, conforme os especialistas, poderá afastar o racionamento de energia em 2014, embora o cenário atual seja muito semelhante ao de 2001, quando houve o racionamento, com períodos menos chuvosos e temperaturas elevadas, consoante o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Não bastassem tais fatores adversos, o consumo da eletricidade nos escritórios e residências cresce, neste ano, mais de 12% comparado ao mesmo mês do ano passado, em decorrência do maior uso de eletrodomésticos, aparelhos de ar condicionado e ventiladores. Daí, a importância da racionalidade aludida e substituição dos obsoletos equipamentos, lâmpadas, motores e aparelhos elétricos por sistemas mais modernos e eficientes. É evidente que a eficiência não será a panaceia para a grave questão energética brasileira. Contudo, ela libera energia para o mercado, sem os pesados investimentos em usinas, transmissão e distribuição.
A energia, gerada pelas usinas movidas à água, que era abundante e barata, passou a ser cara, comprada pelas distribuidoras a R$ 400 o megawatt/hora no mercado livre. O preço já alcançou R$ 822/ megawatt/hora. A notícia da escassez elétrica já repercute nos investimentos em toda a economia. O Brasil possui, hoje, uma das energias mais caras do mundo, devido à alta tributação também.
Para evitar a majoração das tarifas, com a oferta de energia bem aquém das necessidades das empresas e das residências, o erário continuará subsidiando a diferença de preço. A mencionada conta foi de R$ 15 bilhões no ano transcorrido, com a previsão da imprescindibilidade de mais R$ 24 bilhões nos próximos meses. A insuficiência de investimentos no setor elétrico e o regime de monopólio do Estado na geração da eletricidade e outros serviços de utilidade pública poderão levar ao colapso do suprimento e ao desabastecimento.
É preciso consolidar, urgentemente, essas mudanças de comportamento do emprego da energia elétrica no aspecto global do desenvolvimento sustentado. Não se trata, no entanto, de uma questão nova. Há anos, as autoridades do setor, engenheiros, técnicos e especialistas relacionados com os sistemas energéticos têm sido chamados a conservar energia e reduzir desperdício, nos mais variados níveis de produção e consumo.
A demanda mundial de energia vem crescendo exponencialmente. Em parte, porque as populações e suas necessidades também estão crescendo. Acentuam-se os sinais de que o Planeta Terra não está mais suportando o crescimento populacional nem o aumento da atividade econômica. A maioria das empresas brasileiras não faz acompanhamento sistemático do consumo energético, porque isso é considerado irrelevante.
No tocante à iluminação pública, vários estudos demonstram que ela é excessiva entre nós, sendo responsável por mais de 5% de toda a eletricidade consumida no Brasil. Lâmpadas mais eficientes do que as tradicionais incandescentes já deveriam ser utilizadas. Os reflexos sobre o atendimento da demanda elétrica e o racionamento da energia acentuaram-se, com preocupações, quando a oferta cresceu 40% menos do que o previsto, em 2013.
Em decorrência, novo racionamento, à semelhança do havido em 2001, bate às nossas portas e terá sérias repercussões, às vésperas de uma eleição presidencial e da Copa do Mundo e com crescimento do PIB desacelerado para 1,3% em 2013, ante 4,2% em 2000.
Os problemas são ignorados pelo governo, quando já deveríamos efetuar a exegese das falhas e saneá-las, enquanto fosse possível. Com dezenas de apagões ocorrendo em todo o Brasil (em 2013, houve 45 deles), a causa é atribuída à falta de chuvas, com os reservatórios das hidrelétricas com volumes de água excessivamente baixos e iguais aos níveis de 14 anos atrás. A expectativa de intensas chuvas, a partir de março, conforme os especialistas, poderá afastar o racionamento de energia em 2014, embora o cenário atual seja muito semelhante ao de 2001, quando houve o racionamento, com períodos menos chuvosos e temperaturas elevadas, consoante o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Não bastassem tais fatores adversos, o consumo da eletricidade nos escritórios e residências cresce, neste ano, mais de 12% comparado ao mesmo mês do ano passado, em decorrência do maior uso de eletrodomésticos, aparelhos de ar condicionado e ventiladores. Daí, a importância da racionalidade aludida e substituição dos obsoletos equipamentos, lâmpadas, motores e aparelhos elétricos por sistemas mais modernos e eficientes. É evidente que a eficiência não será a panaceia para a grave questão energética brasileira. Contudo, ela libera energia para o mercado, sem os pesados investimentos em usinas, transmissão e distribuição.
A energia, gerada pelas usinas movidas à água, que era abundante e barata, passou a ser cara, comprada pelas distribuidoras a R$ 400 o megawatt/hora no mercado livre. O preço já alcançou R$ 822/ megawatt/hora. A notícia da escassez elétrica já repercute nos investimentos em toda a economia. O Brasil possui, hoje, uma das energias mais caras do mundo, devido à alta tributação também.
Para evitar a majoração das tarifas, com a oferta de energia bem aquém das necessidades das empresas e das residências, o erário continuará subsidiando a diferença de preço. A mencionada conta foi de R$ 15 bilhões no ano transcorrido, com a previsão da imprescindibilidade de mais R$ 24 bilhões nos próximos meses. A insuficiência de investimentos no setor elétrico e o regime de monopólio do Estado na geração da eletricidade e outros serviços de utilidade pública poderão levar ao colapso do suprimento e ao desabastecimento.
02 de abril de 2014
Luiz Gonzaga Bertelli, Correio Braziliense
DERRUBA, SIM...
Taxas de juros mais altas estão associadas a inflação futura mais baixa e vice-versa
Desde abril de 2013 o BC elevou a taxa Selic de 7,25% para 10,75% anuais, mas a inflação permanece alta e há receio de que possa até mesmo ultrapassar o máximo permitido (6,5%) ao fim deste ano. Diante disso há quem se pergunte se teria havido algum enfraquecimento recente dos mecanismos de transmissão de política monetária, pois no passado uma variação semelhante da Selic foi efetiva para reduzir a inflação.
Nesse sentido, o artigo de Yoshiaki Nakano ("Juro alto não derruba a inflação", "Valor Econômico", 18/03/2014) se revela uma contribuição inestimável. Não, é bom deixar claro, por resolver o problema, mas porque é difícil conceber uma coluna que cometa tantos equívocos em tão pouco espaço. São essas atrocidades que, por seu caráter didático, permitem-nos iluminar algumas das dificuldades hoje enfrentadas pelo BC.
A principal atrocidade é sua afirmação sobre a ineficácia da política monetária. Segundo Nakano, a causa da desinflação observada entre 2004 e 2006 teria sido apenas a apreciação cambial.
Por outro lado, defende que o único critério de verdade é a correspondência da teoria com a realidade, o que nos oferece uma oportunidade reveladora de ver como a teoria que ele critica se comporta na prática.
Assim sendo, convido-o a examinar o gráfico aqui exposto, que mostra forte relação negativa entre a taxa real de juros e a inflação, com defasagem de 18 meses. Em linguagem de gente, taxas de juros mais altas estão associadas a inflação futura mais baixa e vice-versa.
Vale notar que usamos o "núcleo" de inflação, ou seja, uma medida não afetada por preços de alimentos ou pelos preços administrados (muito embora a relação permaneça válida caso usemos a inflação "cheia"). A vantagem dessa medida é retirar, a priori, possíveis fontes dos "choques de oferta" que tanto o preocupam (exceto, é claro, quando o governo reduz tarifas de energia ou ônibus e controla os preços dos combustíveis, mascarando a verdadeira inflação).
Essa evidência sobrevive também a testes mais sofisticados, sugerindo que as "versões enviesadas" da teoria que Nakano menciona parecem se corresponder com a realidade muito melhor do que ele imagina. Tão bem, aliás, que oferecem uma pista valiosa para a solução da aparente ineficácia recente.
Com efeito, diz a teoria (e a evidência) que o nível da inflação depende do nível da taxa real de juros. Não há, pois, razão para esperar que um aumento da taxa de juros de 2% para 5% ao ano tenha o mesmo efeito sobre a inflação que a elevação de, digamos, 5% para 8% ao ano, ainda que a variação (três pontos percentuais) seja a mesma, fenômeno devidamente esquecido pelo articulista. Simplesmente a inflação que decorre de juro real de 5% anuais é mais alta do que a resultante de juro real de 8% ao ano.
Deve também ter sido por esquecimento (ou desconhecimento de como operava nosso regime de metas) que Nakano apresenta como "novidade" a ideia de basear as decisões de taxa de juros nas projeções de inflação, e não na inflação passada. Como se o BC não fizesse menção às suas previsões de inflação a cada ata nem publicasse trimestralmente seus valores numéricos (e intervalos de confiança!), projeções que, em outros tempos, eram o principal norte da política monetária.
Já a proposta de ter como meta apenas a inflação de preços livres, descartando os administrados, parece ignorar que os primeiros têm superado os últimos desde 2010. Caso seguisse a sugestão de Nakano, a política monetária teria que ser mais apertada do que foi, certamente não o que ele tinha em mente ao formular a proposta.
Chega a ser surpreendente que, num debate importante como o que hoje se trava, haja intervenções que se revelam primárias no entendimento tanto da teoria como dos fatos que circundam a operação do regime de metas no país. Nada contra palpiteiros, mas um tanto de estudo antes me parece absolutamente essencial.
02 de abril de 2014
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
Nesse sentido, o artigo de Yoshiaki Nakano ("Juro alto não derruba a inflação", "Valor Econômico", 18/03/2014) se revela uma contribuição inestimável. Não, é bom deixar claro, por resolver o problema, mas porque é difícil conceber uma coluna que cometa tantos equívocos em tão pouco espaço. São essas atrocidades que, por seu caráter didático, permitem-nos iluminar algumas das dificuldades hoje enfrentadas pelo BC.
A principal atrocidade é sua afirmação sobre a ineficácia da política monetária. Segundo Nakano, a causa da desinflação observada entre 2004 e 2006 teria sido apenas a apreciação cambial.
Por outro lado, defende que o único critério de verdade é a correspondência da teoria com a realidade, o que nos oferece uma oportunidade reveladora de ver como a teoria que ele critica se comporta na prática.
Assim sendo, convido-o a examinar o gráfico aqui exposto, que mostra forte relação negativa entre a taxa real de juros e a inflação, com defasagem de 18 meses. Em linguagem de gente, taxas de juros mais altas estão associadas a inflação futura mais baixa e vice-versa.
Vale notar que usamos o "núcleo" de inflação, ou seja, uma medida não afetada por preços de alimentos ou pelos preços administrados (muito embora a relação permaneça válida caso usemos a inflação "cheia"). A vantagem dessa medida é retirar, a priori, possíveis fontes dos "choques de oferta" que tanto o preocupam (exceto, é claro, quando o governo reduz tarifas de energia ou ônibus e controla os preços dos combustíveis, mascarando a verdadeira inflação).
Essa evidência sobrevive também a testes mais sofisticados, sugerindo que as "versões enviesadas" da teoria que Nakano menciona parecem se corresponder com a realidade muito melhor do que ele imagina. Tão bem, aliás, que oferecem uma pista valiosa para a solução da aparente ineficácia recente.
Com efeito, diz a teoria (e a evidência) que o nível da inflação depende do nível da taxa real de juros. Não há, pois, razão para esperar que um aumento da taxa de juros de 2% para 5% ao ano tenha o mesmo efeito sobre a inflação que a elevação de, digamos, 5% para 8% ao ano, ainda que a variação (três pontos percentuais) seja a mesma, fenômeno devidamente esquecido pelo articulista. Simplesmente a inflação que decorre de juro real de 5% anuais é mais alta do que a resultante de juro real de 8% ao ano.
Deve também ter sido por esquecimento (ou desconhecimento de como operava nosso regime de metas) que Nakano apresenta como "novidade" a ideia de basear as decisões de taxa de juros nas projeções de inflação, e não na inflação passada. Como se o BC não fizesse menção às suas previsões de inflação a cada ata nem publicasse trimestralmente seus valores numéricos (e intervalos de confiança!), projeções que, em outros tempos, eram o principal norte da política monetária.
Já a proposta de ter como meta apenas a inflação de preços livres, descartando os administrados, parece ignorar que os primeiros têm superado os últimos desde 2010. Caso seguisse a sugestão de Nakano, a política monetária teria que ser mais apertada do que foi, certamente não o que ele tinha em mente ao formular a proposta.
Chega a ser surpreendente que, num debate importante como o que hoje se trava, haja intervenções que se revelam primárias no entendimento tanto da teoria como dos fatos que circundam a operação do regime de metas no país. Nada contra palpiteiros, mas um tanto de estudo antes me parece absolutamente essencial.
02 de abril de 2014
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
O FATOR ARGENTINA
No primeiro trimestre do ano, as exportações do Brasil para a Argentina caíram 14,4% em relação ao primeiro trimestre de 2013 (veja o gráfico). Como pesam cerca de 8% sobre as vendas externas totais, essa retração tem impacto significativo na balança comercial brasileira, especialmente para o setor de veículos.
A Argentina passa por uma forte crise cambial. Não tem moeda conversível em volume suficiente para pagar todas as contas. Daí as travas sobre as importações do mundo inteiro, e não só as do Brasil, apesar dos tratados de livre-comércio e de união aduaneira que amarram os dois países.
Após meses em estudo, o governo Dilma acabou desistindo da proposta de liquidar em moeda nacional as contas com a Argentina porque esse acerto deixaria um mico enorme no Banco Central, pois o Brasil é superavitário nas relações comerciais com o vizinho: depois das compensações, sempre sobra um tanto a ser pago pela Argentina. Em 2013, o superávit foi de US$ 3,15 bilhões.
Nas últimas semanas, o Ministério do Desenvolvimento anunciou uma linha de crédito a ser aberta pelo setor privado e candidamente dizia acreditar na eficácia da gambiarra. É que o problema de fundo continua. Nem o Tesouro nem o Banco Central da Argentina estão dispostos a dar garantias para o pagamento futuro dessa dívida, nem tampouco esses avais podem ser dados pelo Brasil.
O ex-secretário da Indústria da Argentina no governo Duhalde Dante Sica, hoje consultor, não vê futuro em soluções desse tipo. Isso implica emperramento das exportações do Brasil para a Argentina até que as condições se normalizem, sabe-se lá quando.
Dante Sica não acredita que as atuais negociações de abertura comercial entre Mercosul e União Europeia tenham sucesso. Para ele, o máximo que conseguirão será certa encenação para manter as aparências e adiar indefinidamente um acordo. "Não há condições na economia da Argentina para avanços significativos de um acordo comercial", diz.
Não dá para dizer que as coisas por lá estejam inteiramente paradas. O governo de Cristina Kirchner começou a reduzir subsídios, especialmente sobre as tarifas da água e do gás. Também encaminhou um acordo com a espanhola Repsol, que perdeu por decreto o controle da petroleira argentina YPF. E começa a negociar um acordo com o Clube de Paris, que cuida das dívidas entre governos.
O ajuste está sendo descarregado quase inteiramente sobre o setor privado. O rombo das contas externas exige cobertura das reservas e o das contas públicas, das emissões de moeda. Em dezembro, as reservas estavam a US$ 30,6 bilhões; hoje, estão a US$ 27,2 bilhões; e a base monetária cresce a 18% ao ano. É o que explica que a inflação esteja em 33% ao ano pelos cálculos da Consultoria Abeceb, que Dante Sica dirige. Essa inflação põe em risco a relativa estabilidade cambial obtida a partir da última semana de janeiro, em torno de 8 pesos por dólar.
Normalmente, esse tipo de distribuição de contas a pagar pela população cobra alto custo eleitoral. Aparentemente, a presidente Cristina já desistiu de mais um mandato e trata de empurrar a administração econômica até o final de 2015.
A Argentina passa por uma forte crise cambial. Não tem moeda conversível em volume suficiente para pagar todas as contas. Daí as travas sobre as importações do mundo inteiro, e não só as do Brasil, apesar dos tratados de livre-comércio e de união aduaneira que amarram os dois países.
Após meses em estudo, o governo Dilma acabou desistindo da proposta de liquidar em moeda nacional as contas com a Argentina porque esse acerto deixaria um mico enorme no Banco Central, pois o Brasil é superavitário nas relações comerciais com o vizinho: depois das compensações, sempre sobra um tanto a ser pago pela Argentina. Em 2013, o superávit foi de US$ 3,15 bilhões.
Nas últimas semanas, o Ministério do Desenvolvimento anunciou uma linha de crédito a ser aberta pelo setor privado e candidamente dizia acreditar na eficácia da gambiarra. É que o problema de fundo continua. Nem o Tesouro nem o Banco Central da Argentina estão dispostos a dar garantias para o pagamento futuro dessa dívida, nem tampouco esses avais podem ser dados pelo Brasil.
O ex-secretário da Indústria da Argentina no governo Duhalde Dante Sica, hoje consultor, não vê futuro em soluções desse tipo. Isso implica emperramento das exportações do Brasil para a Argentina até que as condições se normalizem, sabe-se lá quando.
Dante Sica não acredita que as atuais negociações de abertura comercial entre Mercosul e União Europeia tenham sucesso. Para ele, o máximo que conseguirão será certa encenação para manter as aparências e adiar indefinidamente um acordo. "Não há condições na economia da Argentina para avanços significativos de um acordo comercial", diz.
Não dá para dizer que as coisas por lá estejam inteiramente paradas. O governo de Cristina Kirchner começou a reduzir subsídios, especialmente sobre as tarifas da água e do gás. Também encaminhou um acordo com a espanhola Repsol, que perdeu por decreto o controle da petroleira argentina YPF. E começa a negociar um acordo com o Clube de Paris, que cuida das dívidas entre governos.
O ajuste está sendo descarregado quase inteiramente sobre o setor privado. O rombo das contas externas exige cobertura das reservas e o das contas públicas, das emissões de moeda. Em dezembro, as reservas estavam a US$ 30,6 bilhões; hoje, estão a US$ 27,2 bilhões; e a base monetária cresce a 18% ao ano. É o que explica que a inflação esteja em 33% ao ano pelos cálculos da Consultoria Abeceb, que Dante Sica dirige. Essa inflação põe em risco a relativa estabilidade cambial obtida a partir da última semana de janeiro, em torno de 8 pesos por dólar.
Normalmente, esse tipo de distribuição de contas a pagar pela população cobra alto custo eleitoral. Aparentemente, a presidente Cristina já desistiu de mais um mandato e trata de empurrar a administração econômica até o final de 2015.
02 de abril de 2014
Celso Ming, O Estado de S.Paulo
"PEDINDO"
Estava caminhando pelo corredor do supermercado quando reparei na roupa da mulher à minha frente: ela estava de calça legging e um top de lycra. Naturalmente, dali iria para a academia de ginástica, ou havia acabado de voltar de uma. Como vou muito cedo ao súper, é comum eu encontrar várias mulheres em trajes esportivos, todos ajustados ao corpo por causa do material com que são confeccionados. Foi então que me dei conta de que eu estava vestida do mesmo modo, já que em seguida teria aula de pilates. Contei: éramos algo em torno de sete mulheres no súper de manhã, de idades diversas, todas correndo risco de serem atacadas sexualmente assim que saíssemos de lá. Afinal, estávamos “pedindo”.
Corta para a saída do colégio da minha filha. O sinal bateu. Pelo portão, saem duas, três, nove adolescentes. Quase todas de short e blusa de alcinhas, aproveitando os últimos dias de calor pós-verão. Algumas iriam a pé para casa, outras de ônibus, circulando pelas ruas com pernas e barrigas de fora. Naturalmente, “pedindo”.
Acreditamos que as pessoas “pedem” para sofrer consequências. O menino que detesta futebol está pedindo para ser alvo de piadas homofóbicas, o ciclista que pedala numa rua movimentada está pedindo para ser atropelado, o turista que deixa seus pertences na areia enquanto mergulha no mar está pedindo para ser roubado. É um vício de linguagem que divide a culpa da violência entre todos – ninguém é vítima absoluta. Algo na linha “perdoa-me por me traíres”. Se você foi sacana comigo, é porque mereci.
Há uma grande diferença entre a contribuição que dou ao que acontece comigo – claro que isso existe – e o que é maldosamente confundido com contribuição a fim de atenuar a penitência do agressor. O resultado da pesquisa do Ipea que revelou que boa parte da população acredita que o modo de vestir de uma mulher justifica o estupro, é chocante e indefensável. Um homem que se prevalece desse argumento (“ela estava pedindo”), além de criminoso, é um covarde.
Da mesma forma, o fato de estarmos alarmados com os índices crescentes de corrupção e de a sociedade estar se organizando em manifestações contra o governo não significa que estejamos “pedindo” a volta da ditadura. Violentar a democracia também seria um estupro.
Má-fé. É ela que faz com que pessoas que não toleram a liberdade tentem reprimi-la usando a desculpa de estarem atendendo a “pedidos”. Liberdade ainda é uma palavra que assusta. Pessoas livres são consideradas irresponsáveis, por isso o impulso de enquadrá-las. Mas de responsabilidade os repressores entendem nada. Se entendessem, assumiriam os seus atos e pagariam integralmente por eles, em vez de tentarem repartir a conta da brutalidade com inocentes que estão apenas exercendo seu direito à cidadania.
Corta para a saída do colégio da minha filha. O sinal bateu. Pelo portão, saem duas, três, nove adolescentes. Quase todas de short e blusa de alcinhas, aproveitando os últimos dias de calor pós-verão. Algumas iriam a pé para casa, outras de ônibus, circulando pelas ruas com pernas e barrigas de fora. Naturalmente, “pedindo”.
Acreditamos que as pessoas “pedem” para sofrer consequências. O menino que detesta futebol está pedindo para ser alvo de piadas homofóbicas, o ciclista que pedala numa rua movimentada está pedindo para ser atropelado, o turista que deixa seus pertences na areia enquanto mergulha no mar está pedindo para ser roubado. É um vício de linguagem que divide a culpa da violência entre todos – ninguém é vítima absoluta. Algo na linha “perdoa-me por me traíres”. Se você foi sacana comigo, é porque mereci.
Há uma grande diferença entre a contribuição que dou ao que acontece comigo – claro que isso existe – e o que é maldosamente confundido com contribuição a fim de atenuar a penitência do agressor. O resultado da pesquisa do Ipea que revelou que boa parte da população acredita que o modo de vestir de uma mulher justifica o estupro, é chocante e indefensável. Um homem que se prevalece desse argumento (“ela estava pedindo”), além de criminoso, é um covarde.
Da mesma forma, o fato de estarmos alarmados com os índices crescentes de corrupção e de a sociedade estar se organizando em manifestações contra o governo não significa que estejamos “pedindo” a volta da ditadura. Violentar a democracia também seria um estupro.
Má-fé. É ela que faz com que pessoas que não toleram a liberdade tentem reprimi-la usando a desculpa de estarem atendendo a “pedidos”. Liberdade ainda é uma palavra que assusta. Pessoas livres são consideradas irresponsáveis, por isso o impulso de enquadrá-las. Mas de responsabilidade os repressores entendem nada. Se entendessem, assumiriam os seus atos e pagariam integralmente por eles, em vez de tentarem repartir a conta da brutalidade com inocentes que estão apenas exercendo seu direito à cidadania.
02 de abril de 2014
Martha Medeiros, Zero Hora
ALUGANDO UM APARTAMENTO EM 1962
Você não tem ideia do que era o Brasil em 1962. Andávamos de bonde, o Rio - então uma "cidade maravilhosa" - era mais importante do que São Paulo; Niterói, onde eu morava e insisto em morar, tinha um restaurante chamado Petit Paris onde Sergio Mendes tocava piano; só rico andava de avião e você ia trabalhar de paletó e gravata. A praia de Icaraí tinha águas transparentes e, na barca para o Rio, víamos golfinhos. A televisão ainda não importava, por isso "íamos ao cinema", escolhendo ver filmes franceses, americanos, italianos, russos ou alemães. Tomávamos chopes, pois não havia essa frescura de vinho de hoje. As ruas eram vazias de veículos, comprávamos linhas de telefone e pedia-se um interurbano quando se queria falar para o Rio...
Todo intelectual era "conscientizado" e "de esquerda" de modo que a "politização" se tornou uma chatice e uma religião que, em poucos minutos, deflagrava discussões amargas porque quem não queria as "reformas de base" e sonhava em revolver as "estruturas arcaicas" do Brasil, era xingado de "reacionário" e "alienado".
Eu era recém-casado com uma moça linda, tinha um filhinho e estava alugando um apartamento. Fomos falar com o proprietário, um português abastado que vivia de alugar imóveis.
- Muito prazer. Quanto o senhor quer de aluguel?
- Qual é a sua profissão? Respondeu o dono.
- Sou professor e pesquisador do Museu Nacional, retruquei orgulhoso como todo pobre.
- Então você não vai poder me pagar! O aluguel é alto para um professor.
- Passar bem! Despedi-me injuriado.
A experiência confirmava minhas convicções. Eu havia falado com um explorador do povo. Naquele dia, vituperei contra o capitalismo e, apaixonado pelo conceito de "confisco", sonhei com a revolução que iria mudar o País, dando apartamentos, casas e sítios para os despossuídos. Apaixonei-me pela palavra "confisco" muito usada pelos líderes políticos daquele momento. Um deles, poeta conhecido e admirado, disse para mim num momento de regozijo revolucionário: "Agora, só falta instalar os sovietes".
Discuti muito com meu pai (que havia abandonado a Escola Militar) o qual, não cansou de me advertir: um dia, os militares tomam conta...
Sorri de sua "falsa consciência".
No domingo seguinte, saí acintosamente de uma missa no meio de um sermão de um padre reacionário. Redefini minha relação com a religião e aderi ao "agnosticismo" de um querido professor. Era, agora, um materialista devidamente antenado com o meu tempo de conscientização.
Esse ato revolucionário, único de minha hoje longa vida, me custou uma briga sartriana com minha mulher. O quarto foi testemunha de uma discussão filosófica, deixando de ser o palco do amor. Eu assinalava que não era um "pequeno-burguês"; ela pensava no leite do nosso filho.
Na margem esquerda do Rio Tocantins, perto da então cidade de Itupiranga, no Pará, eu esperava um barco. Ali, vivia numa palhoça miserável um coletor de castanha. Resolvi conscientizá-lo e sugeri que eles precisavam fundar um sindicato. O homem me olhou assustado e perguntou: o que é um sindicato.
Eu, politizado, não sabia.
Em setembro de 1963, embarquei para os Estados Unidos com uma bolsa da Fulbright Comission. Ficaria um ano acadêmico em Harvard, estudando antropologia com um mentor inglês, ali radicado. Tornei-me amigo de uns poucos esquerdistas, que estudavam em Harvard e no MIT. Lembro ao leitor que, àquela época, ouvíamos notícias pelo rádio e lendo jornais, que chegavam com semanas de atraso.
No dia 2 ou 3 de abril, um amigo me telefonou e informou que a "nossa revolução cubana havia começado". Imediatamente, comuniquei o fato a um vizinho, estudante de Física. Uns 20 minutos depois, o mesmo amigo me comunicou que o Brasil sofria um "golpe militar". Pensei no meu pai.
Deprimido, perguntei-me de onde vinha o poder dos golpistas se nós somente falávamos em operários, camponeses, estudantes e no povo oprimido e simpático à causa revolucionária? Como não havia resistência? Onde estava o dispositivo militar? Havia algo errado na minha teoria. Ali nasceu o meu interesse no carnaval e no papel dos elos pessoais no Brasil.
Voltei em setembro de 64 para novamente voltar a Harvard em 67, onde fiquei até 70.
De 70 a 2014, muita água correu debaixo da ponte e hoje temos a esquerda no poder. Estão aí o corporativismo e o aparelhamento. Os elos pessoais que não ensejam a coragem de dizer não aos amigos, falam alto e valem milhões de dólares. Talvez eles fossem as tais "estruturas arcaicas" que parte de minha geração queria mudar.
Todo intelectual era "conscientizado" e "de esquerda" de modo que a "politização" se tornou uma chatice e uma religião que, em poucos minutos, deflagrava discussões amargas porque quem não queria as "reformas de base" e sonhava em revolver as "estruturas arcaicas" do Brasil, era xingado de "reacionário" e "alienado".
Eu era recém-casado com uma moça linda, tinha um filhinho e estava alugando um apartamento. Fomos falar com o proprietário, um português abastado que vivia de alugar imóveis.
- Muito prazer. Quanto o senhor quer de aluguel?
- Qual é a sua profissão? Respondeu o dono.
- Sou professor e pesquisador do Museu Nacional, retruquei orgulhoso como todo pobre.
- Então você não vai poder me pagar! O aluguel é alto para um professor.
- Passar bem! Despedi-me injuriado.
A experiência confirmava minhas convicções. Eu havia falado com um explorador do povo. Naquele dia, vituperei contra o capitalismo e, apaixonado pelo conceito de "confisco", sonhei com a revolução que iria mudar o País, dando apartamentos, casas e sítios para os despossuídos. Apaixonei-me pela palavra "confisco" muito usada pelos líderes políticos daquele momento. Um deles, poeta conhecido e admirado, disse para mim num momento de regozijo revolucionário: "Agora, só falta instalar os sovietes".
Discuti muito com meu pai (que havia abandonado a Escola Militar) o qual, não cansou de me advertir: um dia, os militares tomam conta...
Sorri de sua "falsa consciência".
No domingo seguinte, saí acintosamente de uma missa no meio de um sermão de um padre reacionário. Redefini minha relação com a religião e aderi ao "agnosticismo" de um querido professor. Era, agora, um materialista devidamente antenado com o meu tempo de conscientização.
Esse ato revolucionário, único de minha hoje longa vida, me custou uma briga sartriana com minha mulher. O quarto foi testemunha de uma discussão filosófica, deixando de ser o palco do amor. Eu assinalava que não era um "pequeno-burguês"; ela pensava no leite do nosso filho.
Na margem esquerda do Rio Tocantins, perto da então cidade de Itupiranga, no Pará, eu esperava um barco. Ali, vivia numa palhoça miserável um coletor de castanha. Resolvi conscientizá-lo e sugeri que eles precisavam fundar um sindicato. O homem me olhou assustado e perguntou: o que é um sindicato.
Eu, politizado, não sabia.
Em setembro de 1963, embarquei para os Estados Unidos com uma bolsa da Fulbright Comission. Ficaria um ano acadêmico em Harvard, estudando antropologia com um mentor inglês, ali radicado. Tornei-me amigo de uns poucos esquerdistas, que estudavam em Harvard e no MIT. Lembro ao leitor que, àquela época, ouvíamos notícias pelo rádio e lendo jornais, que chegavam com semanas de atraso.
No dia 2 ou 3 de abril, um amigo me telefonou e informou que a "nossa revolução cubana havia começado". Imediatamente, comuniquei o fato a um vizinho, estudante de Física. Uns 20 minutos depois, o mesmo amigo me comunicou que o Brasil sofria um "golpe militar". Pensei no meu pai.
Deprimido, perguntei-me de onde vinha o poder dos golpistas se nós somente falávamos em operários, camponeses, estudantes e no povo oprimido e simpático à causa revolucionária? Como não havia resistência? Onde estava o dispositivo militar? Havia algo errado na minha teoria. Ali nasceu o meu interesse no carnaval e no papel dos elos pessoais no Brasil.
Voltei em setembro de 64 para novamente voltar a Harvard em 67, onde fiquei até 70.
De 70 a 2014, muita água correu debaixo da ponte e hoje temos a esquerda no poder. Estão aí o corporativismo e o aparelhamento. Os elos pessoais que não ensejam a coragem de dizer não aos amigos, falam alto e valem milhões de dólares. Talvez eles fossem as tais "estruturas arcaicas" que parte de minha geração queria mudar.
02 de abril de 2014
Roberto DaMatta, O Estado de S.Paulo
A ÚLTIMA CHANCE
Lula protela o desfecho e desafia o imponderável
O governo mal avaliado na totalidade dos seus programas, sem capacidade para administrar relações com o Congresso, vivendo uma sucessão de atitudes reativas desastradas, frustrado na sua comunicação com a sociedade a quem pensa estar agradando e perplexo quando vê que não está, começou, ontem, a rodar a roleta de sua última chance. Ela está nas mãos da dupla de ministros Aloizio Mercadante, da Casa Civil, e Ricardo Berzoini, das Relações Institucionais. Mercadante, hoje o principal político na coordenação administrativa do governo e na ponte com o comitê da reeleição da presidente Dilma Rousseff; Berzoini, o ontem empossado ministro da Secretaria de Relações Institucionais, com a missão de estabelecer alguma relação entre Dilma e a base aliada de 18 partidos políticos que sustentam o governo. Têm o desafio de começar tudo do zero - governo e campanha - e fazer tudo dar certo.
A última vez em que estiveram próximos, Mercadante como candidato ao governo de São Paulo, Berzoini como presidente do PT e coordenador das ações eleitorais do partido, foi para viver as consequências de uma trapalhada, da qual Mercadante seria o beneficiário, provocadas pela montagem de falso dossiê para atingir seu adversário naquele pleito. Uma atuação em campanha estadual liderada por grupo muito próximo do ex-presidente Lula e de sua mulher, fechou o círculo dessa ciranda que, faltando-lhe palavras para dar o nome certo aos bois, o ex-presidente denominou-os carinhosamente de "aloprados".
Agora, com a nova parceria de poder no Planalto, inicia-se uma etapa a que o PT atribui ser a última com esta configuração. Seria a oportunidade derradeira para que a presidente retome política e administrativamente seu governo, criando substância a apresentar ao eleitorado a quem pede votos para sua reeleição. E se nada acontecer? Bem, acreditam políticos do partido, que embora já seja tarde, Lula será impelido a assumir a liderança dos destinos do PT.
O novo desenho é uma intervenção de Lula e do PT no governo para tentar mudar as coisas antes do desenlace. O ex-presidente não se furta a ouvir o conselho de fazer logo o que tem que fazer, recebe com paciência os alertas de que pode perder o momento certo, até porque sabe que é grande o risco de não mais conseguir tomar pé da situação. Mas já não resiste à pressão, critica o governo embora acredite que, com o adiamento da decisão, está fazendo um gesto em deferência e na esperança de que branca nuvem faça um raio. Seja no plano do governo, seja no plano da política.
Ou funciona a política, ou funciona o governo. E o governo e a política conduzidos por Dilma estão três linhas abaixo da crítica, até mesmo para o PT.
Os desastres envolvem não só o desmoronamento dos pilares presidenciais, da faxineira ética e da competente gestora, como, sobretudo, as reações sempre equivocadas às dificuldades que se apresentam no seu caminho. Por exemplo, diz-se que pior do que o rebaixamento do grau de investimento do Brasil, foram as explicações do governo e as críticas à competência da agência de rating, a mesma que havia elevado o nível no governo Lula. Depois, jactou-se o governo de ter o Brasil recebido investimento recorde apesar do rebaixamento, numa ignorância técnica que só piorou a má avaliação da equipe.
A crise da Petrobras foi criada pela presidente, que reagiu mal à descoberta de que aprovara o mau negócio da compra da refinaria de Pasadena levando a controvérsia e as denúncias para dentro do Palácio do Planalto. A reação à CPI da Petrobras também foi outro tumulto, com a distribuição de missões atabalhoadas, confusas e conflitantes aos líderes. Não se está considerando nem a explosão de temperamento da presidente, segundo relato feito ao seu partido, mas as ordens dali emanadas, tais como, para envolver o adversário Eduardo Campos, não se importar de levantar a lebre das negociações do próprio Lula com governos estrangeiros, entre eles o da Venezuela.
O governo tumultuou o ambiente e perdeu tempo para convencer aliados a retirar assinatura do requerimento de CPI, o que, afinal, era seu objetivo. O preço do controle da situação só aumenta, e a margem para evitar pedido de providências ao judiciário fica a cada dia mais estreita.
Com Mercadante e Berzoini será diferente? Há quem diga que Berzoini chegou atrasado. Há um ano o partido tentava emplacá-lo, mas não conseguiu, exatamente por causa dos problemas pregressos. Agora, os parlamentares já estão cuidando de sua própria campanha da reeleição, precisam das verbas de emendas, ajudas e parcerias, têm a investigação da Petrobras no seu cacife e vários projetos de interesse do governo a manipular. Berzoini ainda tem o que fazer.
O governo não tinha problema no Senado, agora tem; não tinha uma crise na economia, agora tem; e o PT teve sua candidata à reeleição atingida no que seria a sua vantagem construída com esmero, a mais completa funcionária na área de energia e petróleo, a eficiente gestora.
Não se pode dizer, neste momento, que a presidente caminha para sair da crise, mas pelo menos aceitou armar-se para viver sua última chance. Dilma tem 43% de intenção de voto (nas pesquisas da semana passada), quando precisaria ter muito mais para ir queimando ao longo da campanha. A oposição tem, nas análises prospectivas, 35% do eleitorado, sempre. Há outros candidatos, alguns até com chances de ter 5%, como o do evangélico PSC.
O sonho de vitória no primeiro turno já se esfumou. O que algumas avaliações feitas para o governo indicam é que, hoje, Dilma tem 40% de chance de reeleger, contra 60% de perder a eleição.
O nervosismo e a aflição é para que haja tempo de, seduzindo o partido e os mais próximos, a presidente tenha condições de seduzir as ruas. Com muita simpatia.
O que teme o PT? É simples: a perda do poder.
Para acalmar aliados, Lula já aventou a possibilidade real da perda da disputa e o que faria nesse caso. Diz que partiria para quatro anos de campanha permanente e voltaria na eleição de 2018. O PT já lhe mostrou que precisa agir agora, pois quatro anos são muito tempo para o imponderável.
A última vez em que estiveram próximos, Mercadante como candidato ao governo de São Paulo, Berzoini como presidente do PT e coordenador das ações eleitorais do partido, foi para viver as consequências de uma trapalhada, da qual Mercadante seria o beneficiário, provocadas pela montagem de falso dossiê para atingir seu adversário naquele pleito. Uma atuação em campanha estadual liderada por grupo muito próximo do ex-presidente Lula e de sua mulher, fechou o círculo dessa ciranda que, faltando-lhe palavras para dar o nome certo aos bois, o ex-presidente denominou-os carinhosamente de "aloprados".
Agora, com a nova parceria de poder no Planalto, inicia-se uma etapa a que o PT atribui ser a última com esta configuração. Seria a oportunidade derradeira para que a presidente retome política e administrativamente seu governo, criando substância a apresentar ao eleitorado a quem pede votos para sua reeleição. E se nada acontecer? Bem, acreditam políticos do partido, que embora já seja tarde, Lula será impelido a assumir a liderança dos destinos do PT.
O novo desenho é uma intervenção de Lula e do PT no governo para tentar mudar as coisas antes do desenlace. O ex-presidente não se furta a ouvir o conselho de fazer logo o que tem que fazer, recebe com paciência os alertas de que pode perder o momento certo, até porque sabe que é grande o risco de não mais conseguir tomar pé da situação. Mas já não resiste à pressão, critica o governo embora acredite que, com o adiamento da decisão, está fazendo um gesto em deferência e na esperança de que branca nuvem faça um raio. Seja no plano do governo, seja no plano da política.
Ou funciona a política, ou funciona o governo. E o governo e a política conduzidos por Dilma estão três linhas abaixo da crítica, até mesmo para o PT.
Os desastres envolvem não só o desmoronamento dos pilares presidenciais, da faxineira ética e da competente gestora, como, sobretudo, as reações sempre equivocadas às dificuldades que se apresentam no seu caminho. Por exemplo, diz-se que pior do que o rebaixamento do grau de investimento do Brasil, foram as explicações do governo e as críticas à competência da agência de rating, a mesma que havia elevado o nível no governo Lula. Depois, jactou-se o governo de ter o Brasil recebido investimento recorde apesar do rebaixamento, numa ignorância técnica que só piorou a má avaliação da equipe.
A crise da Petrobras foi criada pela presidente, que reagiu mal à descoberta de que aprovara o mau negócio da compra da refinaria de Pasadena levando a controvérsia e as denúncias para dentro do Palácio do Planalto. A reação à CPI da Petrobras também foi outro tumulto, com a distribuição de missões atabalhoadas, confusas e conflitantes aos líderes. Não se está considerando nem a explosão de temperamento da presidente, segundo relato feito ao seu partido, mas as ordens dali emanadas, tais como, para envolver o adversário Eduardo Campos, não se importar de levantar a lebre das negociações do próprio Lula com governos estrangeiros, entre eles o da Venezuela.
O governo tumultuou o ambiente e perdeu tempo para convencer aliados a retirar assinatura do requerimento de CPI, o que, afinal, era seu objetivo. O preço do controle da situação só aumenta, e a margem para evitar pedido de providências ao judiciário fica a cada dia mais estreita.
Com Mercadante e Berzoini será diferente? Há quem diga que Berzoini chegou atrasado. Há um ano o partido tentava emplacá-lo, mas não conseguiu, exatamente por causa dos problemas pregressos. Agora, os parlamentares já estão cuidando de sua própria campanha da reeleição, precisam das verbas de emendas, ajudas e parcerias, têm a investigação da Petrobras no seu cacife e vários projetos de interesse do governo a manipular. Berzoini ainda tem o que fazer.
O governo não tinha problema no Senado, agora tem; não tinha uma crise na economia, agora tem; e o PT teve sua candidata à reeleição atingida no que seria a sua vantagem construída com esmero, a mais completa funcionária na área de energia e petróleo, a eficiente gestora.
Não se pode dizer, neste momento, que a presidente caminha para sair da crise, mas pelo menos aceitou armar-se para viver sua última chance. Dilma tem 43% de intenção de voto (nas pesquisas da semana passada), quando precisaria ter muito mais para ir queimando ao longo da campanha. A oposição tem, nas análises prospectivas, 35% do eleitorado, sempre. Há outros candidatos, alguns até com chances de ter 5%, como o do evangélico PSC.
O sonho de vitória no primeiro turno já se esfumou. O que algumas avaliações feitas para o governo indicam é que, hoje, Dilma tem 40% de chance de reeleger, contra 60% de perder a eleição.
O nervosismo e a aflição é para que haja tempo de, seduzindo o partido e os mais próximos, a presidente tenha condições de seduzir as ruas. Com muita simpatia.
O que teme o PT? É simples: a perda do poder.
Para acalmar aliados, Lula já aventou a possibilidade real da perda da disputa e o que faria nesse caso. Diz que partiria para quatro anos de campanha permanente e voltaria na eleição de 2018. O PT já lhe mostrou que precisa agir agora, pois quatro anos são muito tempo para o imponderável.
02 de março de 2014
Rosângela Bittar, Valor Econômico
A POLÍTICA E AS RUAS
Já não podemos adiar a decisão de uma reforma séria
As manifestações de rua de 2013 davam a impressão de que conseguiriam sensibilizar o universo, hermético e abstrato, de nossos poderes. E me refiro aos três níveis de governo. Raros os políticos naquela quadra que usaram palavras de alta voltagem, com severa autocrítica, dignos de uma Roma em estado terminal. Diziam que todos devíamos assumir, sem distinção, a responsabilidade crescente de nossos erros, que era preciso ouvir as vozes das ruas. Foram poucos aqueles que tiveram a coragem de propor uma reforma política madura e consistente. Não faltaram propostas de interesse pessoal, como os que advogavam candidaturas avulsas, em benefício da trajetória pessoal, como se fossem um deus, que descia de paraquedas, para enfrentar (somente no teatro do mundo, na aparência das coisas), o dragão da velha ordem.
O fato é que desde então não saímos do lugar. Perdemos sem dúvida a oportunidade histórica de uma agenda positiva, essa mesma agenda que permanece ausente do debate eleitoral, assim como os temas que interessam ao país, dentre os quais as reformas agrária e urbana. Sofremos de uma avançada miopia e mesmo assim não usamos as lentes adequadas para o momento, porque enxergamos sempre a equação de vassalagem, redutora, entre governança e formas patrimonialistas de gestão, gerando uma série de consequências deploráveis, visceralmente condenadas pelas ruas.
Precisamos voltar à alta dimensão da democracia, quando se apostem na geração de zonas mais ou menos estáveis de consenso, em vez do tráfico de alianças entre alguns partidos mais densos e diversas legendas de aluguel, sem conteúdo, expressão, ideologia, que esperam a corte e o dote. Uma democracia como nuvem de aglomerados, em detrimento de um campo mais sólido e menos mercurial, que levou justamente a uma crítica excessivamente negativa, por parte dos estudantes, mas oportuna, sobre o papel e o lugar da filiação partidária nas manifestações.
Sem a reforma política, não sairemos da entropia do sistema — dentro do qual respiramos — eticamente invertebrado, politicamente tentacular e patrimonialista, que devora, como Saturno, os próprios filhos, reféns de um processo autossuficiente, de uma lógica que tende a se fazer exausta e cartorial.
Já não podemos adiar a decisão de uma reforma séria, nós que defendemos a democracia brasileira, direta e representativa, com partidos formados por questões programáticas, em torno das quais exista um espectro razoável de coalizões.
Como no filme de Buñuel “O anjo exterminador”, os políticos do establishment assistiram de camarote à ópera das ruas, de libreto aberto, sem diretor definido e protagonista, uma ópera coral, sem maestro, mas que não passou da sinfonia de abertura. Depois disso, o mais longo jantar de nossos caciques teve início naquele 16 de junho de 2013 e ainda hoje mal parece terminar.
As manifestações de rua de 2013 davam a impressão de que conseguiriam sensibilizar o universo, hermético e abstrato, de nossos poderes. E me refiro aos três níveis de governo. Raros os políticos naquela quadra que usaram palavras de alta voltagem, com severa autocrítica, dignos de uma Roma em estado terminal. Diziam que todos devíamos assumir, sem distinção, a responsabilidade crescente de nossos erros, que era preciso ouvir as vozes das ruas. Foram poucos aqueles que tiveram a coragem de propor uma reforma política madura e consistente. Não faltaram propostas de interesse pessoal, como os que advogavam candidaturas avulsas, em benefício da trajetória pessoal, como se fossem um deus, que descia de paraquedas, para enfrentar (somente no teatro do mundo, na aparência das coisas), o dragão da velha ordem.
O fato é que desde então não saímos do lugar. Perdemos sem dúvida a oportunidade histórica de uma agenda positiva, essa mesma agenda que permanece ausente do debate eleitoral, assim como os temas que interessam ao país, dentre os quais as reformas agrária e urbana. Sofremos de uma avançada miopia e mesmo assim não usamos as lentes adequadas para o momento, porque enxergamos sempre a equação de vassalagem, redutora, entre governança e formas patrimonialistas de gestão, gerando uma série de consequências deploráveis, visceralmente condenadas pelas ruas.
Precisamos voltar à alta dimensão da democracia, quando se apostem na geração de zonas mais ou menos estáveis de consenso, em vez do tráfico de alianças entre alguns partidos mais densos e diversas legendas de aluguel, sem conteúdo, expressão, ideologia, que esperam a corte e o dote. Uma democracia como nuvem de aglomerados, em detrimento de um campo mais sólido e menos mercurial, que levou justamente a uma crítica excessivamente negativa, por parte dos estudantes, mas oportuna, sobre o papel e o lugar da filiação partidária nas manifestações.
Sem a reforma política, não sairemos da entropia do sistema — dentro do qual respiramos — eticamente invertebrado, politicamente tentacular e patrimonialista, que devora, como Saturno, os próprios filhos, reféns de um processo autossuficiente, de uma lógica que tende a se fazer exausta e cartorial.
Já não podemos adiar a decisão de uma reforma séria, nós que defendemos a democracia brasileira, direta e representativa, com partidos formados por questões programáticas, em torno das quais exista um espectro razoável de coalizões.
Como no filme de Buñuel “O anjo exterminador”, os políticos do establishment assistiram de camarote à ópera das ruas, de libreto aberto, sem diretor definido e protagonista, uma ópera coral, sem maestro, mas que não passou da sinfonia de abertura. Depois disso, o mais longo jantar de nossos caciques teve início naquele 16 de junho de 2013 e ainda hoje mal parece terminar.
02 de abril de 2014
Marco Lucchesi, O Globo
ANOTAÇÕES DO JORNALISTA LAURO JARDIM
Nossa parte?
A cartada de Renan Calheiros, jogando para a Comissão de Constituição e Justiça a decisão sobre a CPI da Petrobras, livrou a base aliada do peso da derrota. Ao fim da sessão, parlamentares de PT e PMDB repetiam a ladainha do “fizemos nossa parte”.
Ainda que a CPI mista vingue, como seria formada por deputados e senadores, pelo menos não trará o selo de uma vitória pessoal de Aécio Neves.
A propósito, na Câmara, a oposição agora se concentra em arrumar uma estratégia para evitar que Renan afogue a investigação mista.
Sim, por ser tratar de uma CPI com representantes das duas casas, a comissão terá de sair do papel numa sessão do Congresso. E quem a presidirá? Renan Calheiros.
Dilma Rousseff assumiu o governo em janeiro de 1011 com a taxa de juros a 10,75% – uma taxa calibrada ainda nos estertores do governo Lula, em dezembro de 2010.
Acreditando que diminuir a taxa Selic era apenas uma questão de vontade política, a partir de julho de 2011 Dilma iniciou sua cruzada e mandou ver: os juros começaram a cair.
Mas… como as coisas são um pouco mais complexas, não teve como segurar os juros lá embaixo.
Foram subindo, subindo e hoje o BC determinou que os juros subam mais um pouco, batendo 11% ao ano e superando a herança que Dilma recebeu de Lula.
Michel Temer seguirá para Nova York na sexta-feira com a incumbência do impossível: convencer o empresariado americano de que o panorama econômico brasileiro não é nada desse terror que andam dizendo por aí.
Temer passou a semana pedindo socorro, principalmente ao Ministério da Fazenda e ao Itamaraty, em forma da dados e índices de países de porte semelhante aos do Brasil.
Diante de executivos de marcas como Citibank, JP Morgan, Coca-Cola, Deutsche Bank, Allianz e Walmart, Temer apresentará comparativos, tentando desconstruir, por exemplo, as convicções da turma que considera o México mais atraente do que o país governado por Dilma Rousseff.
Na pastinha de Temer, haverá dados relativos aos dois países, como crescimento do PIB, reservas internacionais e dívida externa. Todos são favoráveis à economia brasileira, obviamente. O que não interessa exibir, claro, Temer vai deixar para lá.
De hoje até sexta-feira, o Datafolha estará nas ruas de 162 municípios para entrevistar 2 630 brasileiros sobre a sucessão presidencial e sobre o governo Dilma Rousseff.
Quem está rindo à toa é Eduardo Campos. A data da coleta de opiniões coincide com a maior exposição de Campos na TV.
Na quinta-feira passada, ele e Marina Silva protagonizaram um programa em rede nacional e, desde então, rádio e TV exibem os comerciais de 30 segundos do PSB.
Ou seja, data melhor não há. Já os comerciais de Aécio Neves irão ao ar a partir da semana que vem.
Por outro lado, se Campos não se mexer nas pesquisas, ficará patente que há algo errado na campanha.
A pesquisa será divulgada na tarde de sábado pela Folha de S. Paulo.
A estratégia governista para melar a CPI da Petrobras proposta pela oposição foi sacramentada na segunda-feira, numa reunião de Renan Calheiros com senadores do PT e do PMDB.
Ali, acertou-se o que foi feito ontem. Após a leitura da CPI, a base aliada apresentaria dois requerimentos: um questionando o objeto da investigação sugerida pelo PSDB e outro, pedindo a ampliação do escopo das apurações.
Senadores do PT saíram da conversa convencidos de que Renan havia deixado implícito que tinha entendido o jogo, dando a entender que mataria no peito e iria acatar o primeiro primeiro requerimento – assinado por Gleisi Hoffmann - , para, na prática, sepultar a CPI.
Agora, essa turma anda se dizendo surpresa com o suspense em torno da decisão de Renan.
02 de abril de 2014
Lauro Jardim
A cartada de Renan Calheiros, jogando para a Comissão de Constituição e Justiça a decisão sobre a CPI da Petrobras, livrou a base aliada do peso da derrota. Ao fim da sessão, parlamentares de PT e PMDB repetiam a ladainha do “fizemos nossa parte”.
Ainda que a CPI mista vingue, como seria formada por deputados e senadores, pelo menos não trará o selo de uma vitória pessoal de Aécio Neves.
A propósito, na Câmara, a oposição agora se concentra em arrumar uma estratégia para evitar que Renan afogue a investigação mista.
Sim, por ser tratar de uma CPI com representantes das duas casas, a comissão terá de sair do papel numa sessão do Congresso. E quem a presidirá? Renan Calheiros.
Herança perdida
Dilma Rousseff assumiu o governo em janeiro de 1011 com a taxa de juros a 10,75% – uma taxa calibrada ainda nos estertores do governo Lula, em dezembro de 2010.
Acreditando que diminuir a taxa Selic era apenas uma questão de vontade política, a partir de julho de 2011 Dilma iniciou sua cruzada e mandou ver: os juros começaram a cair.
Mas… como as coisas são um pouco mais complexas, não teve como segurar os juros lá embaixo.
Foram subindo, subindo e hoje o BC determinou que os juros subam mais um pouco, batendo 11% ao ano e superando a herança que Dilma recebeu de Lula.
Vejam pelo lado bom
Michel Temer seguirá para Nova York na sexta-feira com a incumbência do impossível: convencer o empresariado americano de que o panorama econômico brasileiro não é nada desse terror que andam dizendo por aí.
Temer passou a semana pedindo socorro, principalmente ao Ministério da Fazenda e ao Itamaraty, em forma da dados e índices de países de porte semelhante aos do Brasil.
Diante de executivos de marcas como Citibank, JP Morgan, Coca-Cola, Deutsche Bank, Allianz e Walmart, Temer apresentará comparativos, tentando desconstruir, por exemplo, as convicções da turma que considera o México mais atraente do que o país governado por Dilma Rousseff.
Na pastinha de Temer, haverá dados relativos aos dois países, como crescimento do PIB, reservas internacionais e dívida externa. Todos são favoráveis à economia brasileira, obviamente. O que não interessa exibir, claro, Temer vai deixar para lá.
Sorte de Campos
De hoje até sexta-feira, o Datafolha estará nas ruas de 162 municípios para entrevistar 2 630 brasileiros sobre a sucessão presidencial e sobre o governo Dilma Rousseff.
Quem está rindo à toa é Eduardo Campos. A data da coleta de opiniões coincide com a maior exposição de Campos na TV.
Na quinta-feira passada, ele e Marina Silva protagonizaram um programa em rede nacional e, desde então, rádio e TV exibem os comerciais de 30 segundos do PSB.
Ou seja, data melhor não há. Já os comerciais de Aécio Neves irão ao ar a partir da semana que vem.
Por outro lado, se Campos não se mexer nas pesquisas, ficará patente que há algo errado na campanha.
A pesquisa será divulgada na tarde de sábado pela Folha de S. Paulo.
Quem não entendeu?
A estratégia governista para melar a CPI da Petrobras proposta pela oposição foi sacramentada na segunda-feira, numa reunião de Renan Calheiros com senadores do PT e do PMDB.
Ali, acertou-se o que foi feito ontem. Após a leitura da CPI, a base aliada apresentaria dois requerimentos: um questionando o objeto da investigação sugerida pelo PSDB e outro, pedindo a ampliação do escopo das apurações.
Senadores do PT saíram da conversa convencidos de que Renan havia deixado implícito que tinha entendido o jogo, dando a entender que mataria no peito e iria acatar o primeiro primeiro requerimento – assinado por Gleisi Hoffmann - , para, na prática, sepultar a CPI.
Agora, essa turma anda se dizendo surpresa com o suspense em torno da decisão de Renan.
02 de abril de 2014
Lauro Jardim
APRENDA A DISCURSAR COM DILMA ROUSSEFF: DEZ AULAS PRÁTICAS EM CINCO MINUTOS E MEIO
https://www.youtube.com/watch?v=4OEsBSQbL68&feature=player_embedded
Para cumprir a promessa formulada no título ─ “Aprendendo a discursar com Dilma Rousseff ─, o vídeo de 5:39, agrupou 10 palavrórios da presidente que criou um estranho subdialeto para deixar claro que não consegue dizer coisa com coisa.
Ela tropeça na gramática e espanca o raciocínio lógico até quando está lendo o que algum assessor escreveu. Encerrado o curso intensivo, também fica evidente que é melhor ser surdo do que ouvir um improviso em dilmês.
O cortejo de assombros começa com Dilma ensinando a Barack Obama que pasta de dente não tem nada a ver com dentifrício e termina com a invenção do “decreto líquido”.
Entre os dois espantos, o neurônio solitário promove Manaus a capital da Amazônia, descobre no segundo parágrafo que está lendo à tarde o discurso que foi escrito para o comício da noite, revela que a Zona Franca evita o desmatamento, avisa que as árvores são plantadas pela Natureza, inaugura uma ligação submarina entre o Brasil e a Europa, enxerga um cachorro oculto por trás de toda criança e reconhece formalmente “a União Europeia como sendo uma reserva dos maiores times de futebol”. Fora o resto.
Veja Dilma em ação. E seja compassivo com os encarregados de traduzir para outros idiomas falatórios que nenhum brasileiro com cérebro consegue decifrar.
02 de abril de 2014
in Augusto Nunes
Para cumprir a promessa formulada no título ─ “Aprendendo a discursar com Dilma Rousseff ─, o vídeo de 5:39, agrupou 10 palavrórios da presidente que criou um estranho subdialeto para deixar claro que não consegue dizer coisa com coisa.
Ela tropeça na gramática e espanca o raciocínio lógico até quando está lendo o que algum assessor escreveu. Encerrado o curso intensivo, também fica evidente que é melhor ser surdo do que ouvir um improviso em dilmês.
O cortejo de assombros começa com Dilma ensinando a Barack Obama que pasta de dente não tem nada a ver com dentifrício e termina com a invenção do “decreto líquido”.
Entre os dois espantos, o neurônio solitário promove Manaus a capital da Amazônia, descobre no segundo parágrafo que está lendo à tarde o discurso que foi escrito para o comício da noite, revela que a Zona Franca evita o desmatamento, avisa que as árvores são plantadas pela Natureza, inaugura uma ligação submarina entre o Brasil e a Europa, enxerga um cachorro oculto por trás de toda criança e reconhece formalmente “a União Europeia como sendo uma reserva dos maiores times de futebol”. Fora o resto.
Veja Dilma em ação. E seja compassivo com os encarregados de traduzir para outros idiomas falatórios que nenhum brasileiro com cérebro consegue decifrar.
02 de abril de 2014
in Augusto Nunes
MAIS UMA GAFE (PARA A COLEÇÃO...)
Dilma Rousseff cometeu uma gafe, mais uma, hoje durante a cerimônia de transferência do Galeão para a iniciativa privada. Lá pelas tantas, emocionada, declamou o belíssimo Samba do Avião, de Tom Jobim. E disse:
- Esse Samba do Avião faz uma ligação entre o Brasil de hoje e o Brasil de ontem, porque o Samba do Avião descreve a chegada no Brasil, e em especial no Galeão, dos brasileiros que voltavam ao Brasil após a Anistia, alguns após 21 anos de exílio, outros menos do que isso, mas essa é a realidade, o Samba do Avião é isso. É de fato, e nessa semana é um momento especial, uma homenagem aos exilados…
Dilma embargou a voz, encheu os olhos de lágrimas com justa emoção. Só que o Samba do Avião foi lançado em 1962, dois anos antes do golpe – nada tem a ver com exilados.
A canção de Tom que remete aos exilados é Sabiá, parceria dele com Chico Buarque, de 1967. Diz a letra: “”Vou voltar/Sei que ainda vou voltar/Para o meu lugar”.
Além disso, os exilados não voltaram ao “Brasil após 21 anos de exílio”. Negativo. A Anistia é de 1979, quando a quase totalidade dos exilados retornou – ou seja, quinze anos após o golpe.
Nos discursos de improviso o risco de gafe é enorme. Mas não custava a assessoria de Dilma tê-la preparado melhor.
02 de abril de 2014
31 DE MARÇO, 50 ANOS DA REVOLUÇÃO RENDENTORA
31 de Março, 50 anos da Revolução Redentora. Eu e ela fazemos hoje 50 anos. Parabéns aos aniversariantes e todo o povo brasileiro por ter uma data de tão importância para comemorar. Não é qualquer nação que se salva de si mesma em tempos de radicalismos ideológicos.
02 de abril de 2014
Mônica Moura
Se houve na história da América Latina um episódio sui generis, foi a Revolução de Março (ou, se quiserem, o golpe de abril) de 1964. Numa década em que guerrilhas e atentados espoucavam por toda parte, seqüestros e bombas eram parte do cotidiano e a ascensão do comunismo parecia irresistível, o maior esquema revolucionário já montado pela esquerda neste continente foi desmantelado da noite para o dia e sem qualquer derramamento de sangue.
O fato é tanto mais inusitado quando se considera que os comunistas estavam fortemente encravados na administração federal, que o presidente da República apoiava ostensivamente a rebelião esquerdista no Exército e que em janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes, após relatar à alta liderança soviética o estado de coisas no Brasil, voltara de Moscou com autorização para desencadear – por fim! – a guerra civil no campo. Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada pelos governadores Adhemar de Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda, da Guanabara, tinha montado um imenso esquema paramilitar mais ou menos clandestino, que totalizava não menos de 30 mil homens armados de helicópteros, bazucas e metralhadoras e dispostos a opor à ousadia comunista uma reação violenta. Tudo estava, enfim, preparado para um formidável banho de sangue.
Na noite de 31 de março para 1o. de abril, uma mobilização militar meio improvisada bloqueou as ruas, pôs a liderança esquerdista para correr e instaurou um novo regime num país de dimensões continentais – sem que houvesse, na gigantesca operação, mais que duas vítimas: um estudante baleado na perna acidentalmente por um colega e o líder comunista Gregório Bezerra, severamente maltratado por um grupo de soldados no Recife. As lideranças esquerdistas, que até a véspera se gabavam de seu respaldo militar, fugiram em debandada para dentro das embaixadas, enquanto a extrema-direita civil, que acreditava ter chegado sua vez de mandar no país, foi cuidadosamente imobilizada pelo governo militar e acabou por desaparecer do cenário político.
Qualquer pessoa no pleno uso da razão percebe que houve aí um fenômeno estranhíssimo, que requer investigação. No entanto, a bibliografia sobre o período, sendo de natureza predominantemente revanchista e incriminatória, acaba por dissolver a originalidade do episódio numa sopa reducionista onde tudo se resume aos lugares-comuns da "violência" e da "repressão", incumbidos de caracterizar magicamente uma etapa da história onde o sangue e a maldade apareceram bem menos do que seria normal esperar naquelas circunstâncias.
Os trezentos esquerdistas mortos após o endurecimento repressivo com que os militares responderam à reação terrorista da esquerda, em 1968, representam uma taxa de violência bem modesta para um país que ultrapassava a centena de milhões de habitantes, principalmente quando comparada aos 17 mil dissidentes assassinados pelo regime cubano numa população quinze vezes menor. Com mais nitidez ainda, na nossa escala demográfica, os dois mil prisioneiros políticos que chegaram a habitar os nossos cárceres foram rigorosamente um nada, em comparação com os cem mil que abarrotavam as cadeias daquela ilhota do Caribe. E é ridículo supor que, na época, a alternativa ao golpe militar fosse a normalidade democrática. Essa alternativa simplesmente não existia: a revolução destinada a implantar aqui um regime de tipo fidelista com o apoio do governo soviético e da Conferência Tricontinental de Havana já ia bem adiantada. Longe de se caracterizar pela crueldade repressiva, a resposta militar brasileira, seja em comparação com os demais golpes de direita na América Latina seja com a repressão cubana, se destacou pela brandura de sua conduta e por sua habilidade de contornar com o mínimo de violência uma das situações mais explosivas já verificadas na história deste continente.
No entanto, a historiografia oficial – repetida ad nauseam pelos livros didáticos, pela TV e pelos jornais – consagrou uma visão invertida e caricatural dos acontecimentos, enfatizando até à demência os feitos singulares de violência e omitindo sistematicamente os números comparativos que mostrariam – sem abrandar, é claro, a sua feiúra moral – a sua perfeita inocuidade histórica.
Por uma coincidência das mais irônicas, foi a própria brandura do governo militar que permitiu a entronização da mentira esquerdista como história oficial. Inutilizada para qualquer ação armada, a esquerda se refugiou nas universidades, nos jornais e no movimento editorial, instalando aí sua principal trincheira. O governo, influenciado pela teoria golberiniana da "panela de pressão", que afirmava a necessidade de uma válvula de escape para o ressentimento esquerdista, jamais fez o mínimo esforço para desafiar a hegemonia da esquerda nos meios intelectuais, considerados militarmente inofensivos numa época em que o governo ainda não tomara conhecimento da estratégia gramsciana e não imaginava ações esquerdistas senão de natureza inssurrecional, leninista. Deixados à vontade no seu feudo intelectual, os derrotados de 1964 obtiveram assim uma vingança literária, monopolizando a indústria das interpretações do fato consumado. E, quando a ditadura se desfez por mero cansaço, a esquerda, intoxicada de Gramsci, já tinha tomado consciência das vantagens políticas da hegemonia cultural, e apegou-se com redobrada sanha ao seu monopólio do passado histórico. É por isso que a literatura sobre o regime militar, em vez de se tornar mais serena e objetiva com a passagem dos anos, tanto mais assume o tom de polêmica e denúncia quanto mais os fatos se tornam distantes e os personagens desaparecem nas brumas do tempo.
Mais irônico ainda é que o ódio não se atenue nem mesmo hoje em dia, quando a esquerda, levada pelas mudanças do cenário mundial, já vem se transformando rapidamente naquilo mesmo que os militares brasileiros desejavam que ela fosse: uma esquerda socialdemocrática parlamentar, à européia, desprovida de ambições revolucionárias de estilo cubano. O discurso da esquerda atual coincide, em gênero, número e grau, com o tipo de oposição que, na época, era não somente consentido como incentivado pelos militares, que viam na militância socialdemocrática uma alternativa saudável para a violência revolucionária.
Durante toda a história da esquerda mundial, os comunistas votaram a seus concorrentes, os socialdemocratas, um ódio muito mais profundo do que aos liberais e capitalistas. Mas o tempo deu ao "renegado Kautsky" a vitória sobre a truculência leninista. E, se os nossos militares tudo fizeram justamente para apressar essa vitória, por que continuar a considerá-los fantasmas de um passado tenebroso, em vez de reconhecer neles os precursores de um tempo que é melhor para todos, inclusive para as esquerdas?
Para completar, muita gente na própria esquerda já admitiu não apenas o caráter maligno e suicidário da reação guerrilheira, mas a contribuição positiva do regime militar à consolidação de uma economia voltada predominantemente para o mercado interno – uma condição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preço modesto que esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminação daquele mal e a conquista deste bem, não estaria na hora de repensar a Revolução de 1964 e remover a pesada crosta de slogans pejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?
Durante toda a história da esquerda mundial, os comunistas votaram a seus concorrentes, os socialdemocratas, um ódio muito mais profundo do que aos liberais e capitalistas. Mas o tempo deu ao "renegado Kautsky" a vitória sobre a truculência leninista. E, se os nossos militares tudo fizeram justamente para apressar essa vitória, por que continuar a considerá-los fantasmas de um passado tenebroso, em vez de reconhecer neles os precursores de um tempo que é melhor para todos, inclusive para as esquerdas?
Para completar, muita gente na própria esquerda já admitiu não apenas o caráter maligno e suicidário da reação guerrilheira, mas a contribuição positiva do regime militar à consolidação de uma economia voltada predominantemente para o mercado interno – uma condição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preço modesto que esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminação daquele mal e a conquista deste bem, não estaria na hora de repensar a Revolução de 1964 e remover a pesada crosta de slogans pejorativos que ainda encobre a sua realidade histórica?
02 de abril de 2014
Mônica Moura
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