"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

REVOLUCIONÁRIOS E REACIONÁRIOS

Se Sarney é conservador, se defender a volta dos militares é conservadorismo, então fica realmente difícil defendê-lo. Mas o que é, afinal, o conservadorismo?


Ninguém sofre mais preconceito no Brasil do que o conservador. É o grande pária da sociedade, visto como um ser primitivo, reacionário e saudosista. Há muita confusão acerca do que significa o conceito. Se Sarney é conservador, se defender a volta dos militares é conservadorismo, então fica realmente difícil defendê-lo. Mas o que é, afinal, o conservadorismo?

Para responder a essa questão, João Pereira Coutinho escreveu o excelente livro “As ideias conservadoras”, da editora Três Estrelas. Ele resgatou em Edmund Burke, o “pai” do conservadorismo moderno, os principais valores defendidos pelo movimento político conservador. Trata-se de leitura altamente recomendável, capaz de elucidar muitas dúvidas existentes e até compreensíveis, quando se mistura conservadores “de boa estirpe” com reacionários.

Para começo de conversa, o conservadorismo é reativo, ou seja, ele nasce para combater ameaças revolucionárias provenientes de utopias paridas por pensadores que amam a abstrata Humanidade, mas não se importam muito com o próximo. Burke escreveu suas clássicas reflexões justamente para reagir à Revolução Francesa, e fez alertas antes de ela descambar para o sangrento terror de Robespierre.

Ao preferir o familiar ao desconhecido, o testado ao nunca testado, o conservador tende a ser cético com mudanças muito radicais, especialmente aquelas derivadas de utopias, com propostas para uma “solução final” para os complexos problemas da vida em sociedade.

Mas não são apenas os revolucionários que representam uma ameaça. Os reacionários são igualmente perigosos. São “revolucionários do avesso”, que desdenham da mesma forma do presente e sonham com uma utopia, só que existente no passado idealizado e romantizado.

Tanto os revolucionários como os reacionários acreditam em um mundo harmonioso, estático, “onde os homens, porque dotados de uma natureza fixa e inalterável, desejam necessariamente as mesmas coisas”. Ambos demonstram desprezo pela realidade e acabam se mostrando intolerantes, dispostos a meios condenáveis para atingir seu sonho de perfeição.

Isso não quer dizer, naturalmente, que o conservador será contrário a qualquer mudança. Ele apenas adota postura mais prudente, assume conduta mais moderada, respeitando as tradições que sobreviveram aos “testes do tempo”. Ele será favorável a reformas que possam ajudar no processo de evolução continuada da sociedade, mas sempre levando em conta nossas limitações e imperfeições. Isso exige maior cautela e humildade, assim como respeito aos aspectos circunstanciais do momento.

Os “engenheiros sociais”, que pretendem remodelar nossas almas, criar um mundo novo do zero ou regressar a um inexistente, terão no conservadorismo um obstáculo. Tendo o homem um intelecto limitado, o conservador irá alertar para as consequências não planejadas ou intencionais, reforçando sempre aquilo que nós não conhecemos. Prudência é a palavra-chave aqui.

“Um conservador entende que a realidade é sempre mais complexa, e mais diversa, que a simplificação apaziguadora das cartilhas ideológicas”, escreve Coutinho. Alguns valores básicos, ou “primários”, terão de ser sempre respeitados, se quisermos preservar a civilização. Mas, fora isso, deverá haver tolerância e respeito para com a diversidade. Os “progressistas” falam em pluralidade, mas se mostram, na prática, os mais intolerantes com divergências; os conservadores praticam a verdadeira tolerância, dentro dos limites necessários para a sobrevivência da própria civilização e da tolerância.

Respeitar tradições, o legado dos que vieram antes de nós, e também se preocupar em preservar e deixar um legado positivo para os que ainda virão, tudo isso é parte da mentalidade conservadora, que reconhece que somos parte dessa “herança coletiva”. O estadista jamais irá encarar a sociedade como uma tela em branco na qual pode pintar o que lhe aprouver. Terá responsabilidade por saber que fazemos parte de um processo interminável, e que devemos respeito aos mortos e aos que estão para nascer.

Por fim, nem todos os conservadores admiram a “sociedade comercial”, juntando-se aos esquerdistas nos ataques ao capitalismo. Coutinho busca em Thatcher, e no próprio Burke, uma visão alternativa, que reconcilia o conservadorismo com o livre mercado, uma “ordem espontânea” que preserva as liberdades individuais. A defesa conservadora do capitalismo é mais ética do que utilitarista: precisamos respeitar as escolhas dos indivíduos, possíveis apenas em um ambiente de trocas voluntárias.





11 de junho de 2014
Rodrigo Constantino, O Globo

ESGUELHA IDEOLÓGICA

O teatro separatista, mais uma vez, repetiu-se no campo. Na primeira cena, o governo anuncia o Plano Agrícola e Pecuário para a "agricultura empresarial". Passado alguns dias, divulga o Plano Safra da "agricultura familiar". Belos discursos, amoldados para cada evento, animam uma trama típica do maniqueísmo político. Um país, duas agriculturas.

O Brasil é a única nação importante do mundo que separa a sua agropecuária em dois lados: o do "agronegócio" e o "familiar". Uma política que deveria reforçar a ação pública em favor dos pequenos produtores no campo, desgraçadamente, serve ao modo de governar que distingue a sociedade entre "nós" e "eles". Ou, pior, entre os "bons" e os "maus". Dividir para reinar, ensinava Maquiavel.

Quem, em 1996, criou o programa de apoio e fortalecimento da agricultura familiar (Pronaf) foi o então presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia inicial era, na prática, resguardar uma fatia dos recursos do crédito rural - sempre abocanhado pelos poderosos do agro -, obrigando sua alocação compulsória aos pequenos produtores rurais. Estes foram definidos como os de área máxima com até quatro módulos fiscais. Havia ainda a destinação de recursos públicos, a fundo perdido, para investimentos na infraestrutura de produção e comercialização de núcleos associativos e cooperativados. Funcionou muito bem.

Essa estratégia de desenvolvimento rural considerava que, pequenos ou grandes, todos os agricultores, independentemente das características da produção, precisam e merecem progredir na vida, incorporando as modernas tecnologias para elevar a produtividade, conquistar qualidade, conseguindo, assim, competir na economia de mercado. Sob esse prisma, qualquer política voltada para o meio rural deve ser integradora. Jamais divisionista.

Ao mudar o governo, de Fernando Henrique Cardoso para Lula, a gestão da agricultura brasileira acabou separada em dois ministérios. A partir de então, o conceito de "agricultura familiar" começou a ser totalmente deformado, passando a significar os "pobres" no campo, em oposição aos "ricos", aglutinados no "agronegócio". Jamais, em tempo algum, se produziu tamanha bobagem no pensamento agrário. Mera, e retrógrada, ideologia.

Sabem os estudiosos da economia e da administração, mesmo os iniciantes, que por "familiar" se considera a gestão de um negócio, independentemente do tamanho do empreendimento. Ao contrário das corporações, uma empresa familiar se rege pelas decisões de seus próprios donos. Na agricultura significa que os proprietários tocam com seu trabalho a fazenda, havendo apenas auxílio eventual de mão de obra assalariada. Familiar, sempre, refere-se ao comando da atividade produtiva.

Nos EUA, as estatísticas mostram que cerca de 90% dos agricultores se classificam como familiares. Graças ao avanço da mecanização, um pai com dois filhos, por exemplo, mostra-se capaz de conduzir áreas de terra cada vez maiores, submetidas à elevada tecnologia. Essa tendência da agricultura norte-americana se assemelha aqui, no Brasil, especialmente à das fronteiras do Centro-Oeste. Grandes fazendas, com soja ou milho, exploram-se espetacularmente com mão de obra familiar, não raro a mulher participando dos trabalhos de campo, sentada no banco do trator, ao lado do marido e dos filhos. Agronegócio familiar.

Inexiste contradição nos termos. Mas, por aquelas razões difíceis de explicar, talvez por causa da histórica ojeriza ao sistema latifundiário, aqui somente se considera familiar quem é pequeno produtor rural. Passou a ser o tamanho, e não a gestão, o critério fundamental. Remetido ao jogo da política, o conceito de agricultor familiar desvirtuou-se completamente, acabando associado à pobreza rural, ao atraso, à subsistência na terra. Nele se incluíram os assentamentos da reforma agrária.

A esguelha ideológica cresce quando se limita o agricultor familiar à produção de comida popular. O discurso enviesado diz assim: "O agronegócio serve à exportação, quem alimenta o povo é a agricultura familiar". Besteira pura. No Paraná, por exemplo, que é grande produtor nacional de soja, quem domina o campo são os sitiantes enquadrados no Pronaf. Seu sucesso depende do cooperativismo. Na famosa Cocamar, situada em Maringá, entre 12 mil associados, 80% cultivam até 50 hectares. Conduzem suas lavouras familiarmente, participam diretamente do agronegócio, remuneram-se pela receita da exportação dos grãos. Modestos, mas capitalistas, numa boa.

Sim, é verdade que a maioria dos alimentos básicos (arroz, feijão, mandioca, leite, batata) advém de pequenas propriedades. Fato estatístico. Quando, porém, se analisam as condições da produção e o fluxo de comércio, verifica-se que, majoritariamente, o abastecimento nas grandes cidades se garante pelo trabalho de agricultores que, embora pequenos, utilizam elevada tecnologia, ligados no mercado. Pequenos, e bons, empresários rurais.

Essa complexidade da economia agrária submerge no palco da encenação política. Quando a presidente Dilma Rousseff anunciou, primeiramente, um crédito de R$ 156,1 bilhões para o agronegócio e, depois, de R$ 24,1 bilhões para a agricultura familiar, cavou artificialmente um fosso que, na realidade, inexiste na roça. As cerimônias turvam a realidade agrária.

A agricultura sustentável de que o Brasil carece não se construirá apartando os agricultores entre patronais e familiares, como se existissem os de primeira e os de segunda classe. Ao contrário. Ao favorecer os mais fracos, incluindo os assentados da reforma agrária, uma política agrícola inteligente buscará integrá-los, juntos, ao ciclo do progresso tecnológico no campo.

Sem segregação.





11 de junho de 2014
Xico Graziano, O Estado de S.Paulo

HOBBES DE BIKE

Outro dia, em visita profissional a uma das principais capitais do país (aliás, uma das minhas preferidas), vi uma cena muito significativa do Brasil atual. De primeira não acreditei, levando em conta o tipo de pessoa envolvida, mas, depois, fui obrigado a aceitar a realidade dos fatos. O que eu vi? Já conto. Antes alguns reparos.

Já disse nesta coluna que estou mais pra Hobbes do que Rousseau em termos de rompimento do contrato social e da ordem pública, porque inclusive muito dos movimentos ditos sociais superestimam sua representatividade. Quando multidões se formam, em poucos minutos podem virar um grande instrumento de violência de massa. Ninguém é "bonzinho" quando se sente parte de uma massa de "iguais".

Hobbes é o cara que viveu uma vida honesta e responsável e dizia que sem ordem degeneramos em violência porque a vida é precária, perigosa, breve e dolorosa. Rousseau é o carinha que mandou os filhos pro asilo, enlouqueceu sua mulher, mas dizia que somos anjinhos e que a propriedade privada e a ganância é que fazem sermos maus e que em multidões revolucionárias "curamos" o mundo.

Voltemos ao Brasil. Por exemplo, com relação à Copa, essa coisa de "não vai ter Copa" é uma tentativa de estragar a alegria da maioria que nunca mais terá a chance de ver uma Copa no país. Isso não significa que não tenha havido abusos e absurdos na condução da logística e infraestrutura, mas nada disso justifica querer tornar a vida das pessoas um inferno com manifestações um tanto totalitárias. Os demais movimentos são naturalmente oportunistas no sentido que a medicina dá a certos processos infecciosos.

E mais: duvido fortemente da suposta evidência de que sem movimentos de rua a sociedade deixe de se modernizar. A Revolução Francesa é um fetiche de professores que erotizam a política da violência "criadora". A França, como a Inglaterra, teria se modernizado sem a maldita revolução. A maioria dos movimentos políticos marcados por uma metafísica revolucionária (jacobinos, Rússia, Cuba, China, Vietnã, Leste Europeu até a queda do muro de Berlim e outros) não serviu para nada a não ser para matar seus inimigos com desculpas metafísicas ou enriquecer seus líderes corruptos com o passar do tempo.

É fato surpreendente que o mesmo tipo de gente que se diz contra guerras goza com a ideia de revoluções. Acho que muita dessa gente goza mais gritando frases de efeito na rua do que transando. Mas muito psicanalista (e similares) por aí acha mesmo que a "verdadeira" clínica é a política. Toda teoria política com metafísica é totalitária em algum momento.

Mas e a cena que eu vi? Conto pra você agora. Estávamos nós saindo de um restaurante à noite quando o farol em nossa frente fechou. Um grupo grande de ciclistas passou. Mas, quando o farol fechou pra eles, em vez de pararem de passar, como seria o correto, três deles barraram a passagem dos carros que tinham o direito legal de passar, como fazem os policiais militares em situações excepcionais. Ou seja, foram autoritários.

Até aí, apenas mais um exemplo de que mesmo grupos que se julgam "do bem" (salvam o planeta pedalando, socializam durante as noites passeando, têm grana porque pobre anda de bicicleta durante o dia e rico anda de bike durante a noite) degeneram em violência quando em bando.

Aí um quarto ciclista se aproximou das filas de carro barradas por eles, desceu da bike, levantou a "magrela" no ar com as duas mãos, como se fosse uma Uzi ou alguma metralhadora similar, e a sacudiu gritando algo incompreensível.

Já vi aqui em São Paulo ciclistas fecharem carros, furarem o farol xingando o motorista (que também nem sempre é educado, diga-se de passagem), correndo riscos de vida. Na Dinamarca, capital das bikes chiques, vi comportamentos agressivos semelhantes.

Fosse eu uma dessas pessoas que "postam fotos", o ciclista estaria famoso a esta altura. A pergunta é: com quem estaria ele se identificando? Eu tenho algumas hipóteses. Entre elas, o líder do Boko Haram da Nigéria e suas meninas raptadas.



11 de junho de 2014
Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

CIRCULO VICIOSO

Por que a poupança é cada vez menor no Brasil? Pesquisa feita pelo Centro de Estudos do Instituto Brasileiro do Mercado de Capitais, liderado por Carlos Antonio Rocca, revelou que a poupança brasileira é baixa principalmente porque a parcela das empresas vem caindo. Caiu de 10,5% do PIB em 2010 para 7,9% do PIB em 2013. Essa parcela corresponde a dois terços de toda a poupança nacional. E essa é uma das importantes conclusões.

Na entrevista publicada pelo Estadão de domingo, Rocca foi além. Adiantou que as empresas passaram a poupar menos porque os lucros caíram, o que leva a novas perguntas.

As Contas Nacionais indicam forte queda da participação da indústria no PIB, de 27,7% em 2000 para 25% em 2013. Por trás dessa queda está enorme perda de competitividade do setor produtivo. Os custos são crescentes, os bens importados chegam com mais força e não há negociação comercial que dê preferência ao produto brasileiro no exterior. Nessas condições, é claro que o retorno do investimento produtivo é mais baixo e a parcela a poupar, também.

Esse quadro tem tudo a ver com a política econômica adotada. Os economistas que defendem políticas heterodoxas (desenvolvimentistas) apontam o "câmbio fora do lugar" como principal fator de redução da competitividade das empresas brasileiras, principalmente da indústria.

O problema é que o próprio câmbio valorizado demais é consequência de desequilíbrios mais profundos. A baixa consistência das finanças públicas (despesas altas demais), por exemplo, produz inflação e até mesmo governos que adotam políticas protecionistas ao setor produtivo, como o atual, acabam se decidindo por uma valorização da moeda nacional (baixa do dólar em reais) para combater a inflação. Ou seja, mesmo quando "colocado no lugar", por intervenções do Banco Central, o câmbio não se sustenta aí. A inflação não deixa.

Neste momento de escassez de mão de obra, os custos trabalhistas avançam acima da produtividade do trabalho e também oneram as empresas e sua capacidade de gerar poupança. Chega, então, o ponto em que o baixo nível de poupança também se transforma em fator de redução de poupança, na medida em que derruba o investimento e estanca o retorno das empresas e, portanto, estanca a poupança. É um círculo vicioso.

A própria indústria contribui para a perpetuação desse estado de coisas, na medida em que seus dirigentes aplaudem políticas protecionistas ou a distribuição de isenções tributárias minimalistas que não atacam o problema.

O atual governo entende que o BNDES dá enorme contribuição para suprir a baixa capacidade de poupança e de investimento do setor produtivo brasileiro. Mas isso pode ser ilusório. Nada menos que 70% dos empréstimos do BNDES vão para empresas de grande porte que, em princípio, têm mais capacidade de levantar recursos para investimento. Além disso, a política de eleição dos futuros campeões nacionais para os quais vai um bom naco de recursos não se tem mostrado eficiente. Basta levar em conta alguns fracassos alarmantes, como o do Grupo Eike Batista e da LBR Laticínios.





11 de junho de 2014
Celso Ming, O Estadão

POR UM CONGRESSO INEXPRESSIVO

Serão os "amigos do rei" os beneficiados pelas indicações às comissões de consulta popular, num verdadeiro aparelhamento do Executivo

A Política Nacional de Participação Social (PNPS), tal como descrita no decreto nº 8.243/14, tende a substituir o Congresso Nacional na representação popular, para "fortalecer e articular mecanismos e instâncias democráticas de diálogo" e em "atuação conjunta com a administração pública federal" da "sociedade civil" (art. 1º), criar conselhos e comissões de políticas públicas e sociais (artigos 10 e 11) eleitos pelo povo, objetivando auxiliar a Secretaria Geral da Presidência da República (artigo 9º) a monitor e implementar as políticas sociais por eles definidas, com atuação junto às diversas instâncias governamentais.

Num curto artigo, é impossível descrever e analisar o nível de força que se pretende atribuir a instrumentos "populares", na promoção com o governo, das políticas que desejarem, sem a participação dos legítimos representantes do povo, que são os senadores e deputados.

Como os conselhos e as comissões serão eleitos pelo "povo", mas a eleição não é obrigatória e o "povo" dificilmente terá condições de dedicar-se em tempo integral, deixando trabalho ou ocupações diversas, para estar presente nessas "eleições", serão os "amigos do rei" os beneficiados pelas indicações, que lá estarão presentes, num verdadeiro aparelhamento do Executivo e redução do Congresso Nacional à sua expressão nenhuma.

Por pior que seja, o Legislativo é eleito pelo povo. Nele está contida 100% da representação popular (situação e oposição). No atual Executivo, nem 50% do povo brasileiro está representado, pois a atual presidente teve que ir ao 2º turno para ganhar as eleições.

Em outras palavras, pretende o decreto que a autêntica representação popular de 140 milhões de brasileiros seja substituída por um punhado de pessoas, que passará a DEFINIR A POLÍTICA SOCIAL DE TODOS OS MINISTÉRIOS, INDICANDO AO EXECUTIVO COMO DEVE AGIR!

A linha da proposta é tornar o Congresso Nacional uma Casa de tertúlias acadêmicas, pois os conselhos e comissões eleitos pelo "povo" serão aqueles que dirigirão o país. Por exemplo, a comissão encarregada da comunicação social poderá determinar que o ministério correspondente imponha restrição de conteúdo à imprensa, a pretexto de que é esta a "vontade do povo", que será "obrigado" a atender aos apelos populares.

As políticas públicas e sociais não mais serão definidas pelo Legislativo, mas, por este grupo limitado de cidadãos enquistados nestes organismos. Estamos perante uma autêntica ressurreição, da forma mais insidiosa e sorrateira, do PNDH-3 (Programa Nacional de Direitos Humanos), que recebeu repúdio nacional e, por isto, não foi aplicado da maneira como pretendia o governo.

Às vezes, tenho a impressão, com todo o respeito que tenho pela figura da presidente da República, que ela tem recaídas "guerrilheiras". Talvez, a "devoção cívica" que demonstrou nutrir pelo sangrento ditador Fidel Castro --tão nítida no retrato exibido por todos os jornais, de sua recente visita a Cuba-- a tenha levado a conceber e editar essa larga estrada para um regime antidemocrático. É que o decreto suprime as funções constitucionais do Parlamento e pretende introduzir entre nós o estilo bolivariano das Constituições da Venezuela, Bolívia ou Equador. Nelas, o Executivo e o "povo" são os verdadeiros poderes, sendo --é o que está naquelas leis maiores-- o Legislativo, Judiciário e Ministério Público, poderes acólitos, vicários, secundários e sem maior expressão.

Por ter densidade normativa própria, o referido decreto é diretamente inconstitucional, ferindo cláusula pétrea da Constituição, que é a autonomia e independência dos Poderes (artigos 2 e 60 § 4º, inciso III).

Espero que o Congresso Nacional repila o espúrio diploma, com base no artigo 49, inciso XI, da Carta Maior, zelando, como deve, por sua competência legislativa.





11 de junho de 2014
Ives Gandra da Silva Martins, Folha de SP

O BRASIL E OS "PARTIDOS DA COPA"

País começou a falar sobre si, de modo extenso e dividido, por meio de opiniões sobre a Copa

NESTA COPA ou temporada pré-Copa viemos nos contando histórias interessantes sobre nós mesmos.

Como deve estar óbvio para quase todo mundo, tantos de nós passamos a exprimir opiniões sobre políticas públicas, problemas sociais e mesmo política, ponto, segundo a perspectiva que temos do torneio mundial de futebol e de suas implicações. Nossas divisões sobre a Copa se sobrepõem mesmo a divisões político-ideológicas ou partidárias.

Não é novidade, claro, que faz tempo falamos de nós mesmos por meio do futebol, em análises e mitos a respeito de detalhes das técnicas do jogo ao significado político e social de vitórias e derrotas. Mas, pelo menos agora, no calor da hora, parece que nunca falamos tão extensa e detalhadamente, para não dizer de modo tão dividido e politizado, sobre o significado da Copa, que decerto desta vez tem sua diferença, pois a organizamos.

A Copa deveria ser aqui? O "legado" será bom ou mau? Qual será? O que esse "legado" diz sobre o governo, a sociedade e mesmo sobre o "caráter nacional brasileiro" (vide as comparações com organização e tumultos em outros países, frases sobre "complexo de vira-latas", sobre nossa indisciplina essencial etc.).

Por causa da Copa, assistimos a acusações mais ou menos veladas de falta de patriotismo, de incapacidade de analisar benefícios econômicos das obras para o torneio, opinamos sobre preferências por "Estado" ou "iniciativa privada", sobre manipulações ideológicas do governo ou da "grande mídia" etc.

Muitos de nós fizemos questão de nos dividirmos em "partidos", #nãovaitercopa e #vaitercopa, cada um ainda com suas facções centristas e extremistas (por exemplo alguém pode ser #nãovaitercopa e torcer pelo time ou, então, por uma derrota apocalíptica nas oitavas de final ou numa final com a Argentina).

No mínimo, a maioria silenciosa manifestou-se por meio do seu desinteresse por isso que costumava ser um festival popular do país e um raro momento de celebração de ritos nacionalistas. Não ligamos muito para decorar ruas, casas e lojas; são mais escassas as conversas sobre reuniões e festas, públicas ou privadas, para vermos os jogos.

Correta ou não, a má impressão generalizada a respeito de vexames e desperdícios da organização influenciou a difusão do mau humor a partir de meados do ano passado. Talvez, em parte grande, o desencanto de outra ordem e origem tivesse contaminado o "clima de Copa" de qualquer maneira.

Pode ser mesmo que o fato de o time ser demasiadamente "estrangeiro" tenha influenciado no estranhamento. Para quem não acompanha muito estritamente futebol, o time começou a ser apresentado ao país na Copa das Confederações. O fato de a política e o negócio do futebol serem tão degradados por aqui tem levado nossos jogadores para fora, cada vez mais cedo. De resto, pelo menos para pessoas mais velhas, como este colunista, o time parece uma seleção da Alemanha com a diferença do Neymar.

Pode ser que tudo isso vire de cabeça para baixo depois de amanhã. No entanto, de interessante ficou que preferimos aderir aos #partidosdacopa a fim de falarmos de modo político sobre o país, ou pelo menos tais "partidos" causam mais entusiasmo do que os partidos realmente existentes.





11 de junho de 2014
Vinicius Torres Freire, Folha de SP

LUCROS NA ÁFRICA

Crescem suspeitas sobre contratos de US$ 1,1 bilhão concedidos a uma empresa brasileira pela cleptocracia do Congo, que recebeu o perdão de 79% da dívida do país


Numa tarde de quarta-feira de um ano atrás, 22 de maio, Dilma Rousseff pediu e o Senado concedeu, sem debate, perdão sobre 79% da dívida que o Congo-Brazzaville mantinha pendente com o Brasil há quatro décadas.

O débito somava US$ 353 milhões. O governo brasileiro renunciou a US$ 278 milhões. Aceitou receber US$ 68,8 milhões — em até 20 parcelas trimestrais até 2019 —, do país que é o quarto maior produtor de petróleo da África.

O perdão de Dilma foi o desfecho de uma operação iniciada em 2005 no Ministério da Fazenda, sob o comando de Antonio Palocci. O objetivo era abrir caminho para empreitadas privadas brasileiras no Congo-Brazzaville.

Cravado no coração africano, tem o tamanho de Goiás. É referência no mapa de produção de petróleo e se destaca na rota dos diamantes “de sangue” — sem origem —, moeda corrente no submundo de armas e do narcotráfico.

Seus quatro milhões de habitantes sobrevivem com renda per capita (US$ 2.700) semelhante à do Paraguai. O poder local está concentrado no clã de Denis Sassou Nguesso, de 71 anos, que se tornou um dos mais longevos cleptocratas africanos. Ex-pobres, os Nguesso detêm bilionário patrimônio no qual constam 66 imóveis de luxo na França, em áreas nobres do eixo Paris-Provence-Riviera — segundo documentos de tribunais de Londres e Paris.

O herdeiro político, Denis Christel Nguesso, dirige os negócios do petróleo e tem peculiar apreço pela ostentação: extratos de seus cartões de crédito, anexados a processos por corrupção na França e no Reino Unido, sugerem uma rotina de extravagâncias na compra de roupas no circuito Paris-Mônaco-Marbella-Dubai. Para a Justiça britânica é óbvio que ele é financiado “pelos lucros secretos obtidos em negociações da estatal de petróleo”, como afirmou o juiz Stanley Burnton em sentença.

Os Nguesso têm intensificado seus laços com o Brasil. Com o perdão da dívida caloteada nos anos 70, o clã congolês já entregou US$ 1 bilhão em contratos ao grupo Asperbrás, controlado pelos empresários José Roberto e Francisco Carlos Jorge Colnaghi, de Penápolis (SP), cuja receita com a venda de tubos e conexões no mercado brasileiro foi de US$ 15 milhões no ano passado.

Do total contratado, US$ 400 milhões foram para perfuração de quatro mil poços artesianos. O preço médio (US$ 100 mil por furo) ficou dez vezes acima do que é pago pelos países vizinhos. Outros US$ 200 milhões foram destinados a um mapeamento geológico por fotografia, nove vezes mais caro do que o similar executado em Camarões com crédito do Banco Mundial. E houve mais US$ 500 milhões para a construção de alguns galpões industriais em área próxima da capital.

A oposição e organizações civis internacionais com atividade no país estão convencidas de que os Nguesso agregaram a Asperbrás aos seus interesses patrimoniais. Os Colnaghi têm crescido em negócios centro-africanos, às vezes apoiados pelo empresário Maxime Gandzion, predileto dos Nguesso para contratos de petróleo. No Brasil mantêm relações fluidas com Palocci, um dos mais discretos caciques do PT, ex-ministro e chefe da campanha eleitoral de Lula em 2002 e de Dilma em 2010. Costumam emprestar-lhe aviões da frota familiar, especialmente um modelo Citation (prefixo PT-XAC).





11 de junho de 2014
José Casado, O Globo

OPORTUNIDADES PERDIDAS

Esta semana recebi mensagem de uma pessoa que participou de uma palestra sobre as perspectivas da economia brasileira para o período pós-Lula, por mim proferida em setembro de 2010, na Escola Nacional de Seguros-RJ. Diz ela: "Professor, infelizmente o sr. não acertou quase nada (e o quase é porque não quero parecer agressivo!) e seu otimismo revelou-se ingênuo". O momento era de euforia e já estava claro que 2010 fecharia com forte crescimento do PIB. Também estavam claros os desajustes imediatos que precisariam ser corrigidos: ameaça inflacionária, sobrevalorização do câmbio, baixa taxa de investimentos e pressão sobre os gastos públicos. Ingênuo, considerei que estes problemas poderiam ser enfrentados com custos políticos baixos e aceitáveis, uma vez que não há melhor bálsamo que o crescimento que não precisaria ser interrompido para arrumar a casa. Otimista, projetei um período de crescimento robusto e errei feio.

E qual era a fonte do otimismo? O enfrentamento dos problemas da economia e da sociedade, quase todos relacionados aos déficits de infraestrutura das políticas públicas, formatava uma agenda virtuosa e viável para guiar a política econômica e social nos anos seguintes. O crescimento havia sido acionado pelo consumo público (gasto dos governos) e privado (crédito e crescimento da renda descolado da evolução da produtividade), e o desafio era elevar o investimento sem o que nenhum crescimento se sustenta. Em um mundo em crise, o Brasil aparecia como uma fronteira de oportunidades para capitais ociosos em busca de bons negócios. Democracia estável, com instituições cuja respeitabilidade havia sido restaurada com o Plano Real e com as conquistas sociais consolidadas na gestão do presidente Lula, tinha quase tudo por construir: novos aeroportos e portos, rodovias, ferrovias e hidrovias, usinas hidrelétricas, armazéns, presídios, hospitais e até escolas. O potencial na área de energia renovável aparecia como quase "infinito", e o pré-sal afigurava-se muito promissor. E, claro, acreditei nas promessas relacionadas à Copa e Olimpíada.

Não se tratava de entregar o País e suas riquezas à sanha do "capital imperialista internacional", mas de confirmar e estabelecer marcos regulatórios pautados em duas premissas simples e conciliáveis, como demonstra a história dos países desenvolvidos: o capital busca o lucro e a sociedade quer bem-estar. A resolução desta equação simples teria inundado o País de investimentos, já em 2011, assegurando a continuidade sustentável do crescimento quase chinês de 2010, com redistribuição e inclusão social. E uma economia movida a investimentos privados era, sem dúvida, a melhor solução para o governo concentrar seus recursos e atenção na melhoria das políticas públicas e da qualidade de vida da população, aproximando a realidade da propaganda oficial.

O governo eleito fez o contrário: paralisou os marcos regulatórios que funcionavam, não definiu os que faltavam e, quando o fez, errou ao considerar que o Brasil era tão importante a ponto de impor aos capitais um novo paradigma: investir sem lucro! Deixou passar a oportunidade: quando iniciou o programa de concessões "envergonhadas", já havia perdido o sincronismo dos investimentos com o ciclo ascendente da economia e a euforia já se transformara em pessimismo e desconfiança com tanta capacidade de errar.

Quando no futuro o mandato da Presidente Dilma for avaliado, provavelmente não será condenada por ter produzido pibinhos, mas sim pelas oportunidades "irrepetíveis" perdidas. E o pior é que recolocar o País em marcha implicará custos que já começam a se manifestar no iminente desemprego de trabalhadores de vários setores e na revolta da população com a situação dos serviços públicos. Resta saber se será possível, neste novo contexto de crescente irracionalidade alimentada por ferrenha militância, fazer um ajuste racional e consistente, ou se teremos que amargar mais um ciclo longo de deterioração e crise para criar condições para um novo Plano Real.


11 de junho de 2014
Antônio Márcio Buainaim, O Estado de S.Paulo

VIOLÊNCIAS CONJUGAIS

Estudo recente traz avisos para a Copa: quando a Inglaterra joga, aumenta a violência doméstica

1. Confesse, leitor: sempre que a seleção joga, você sente a adrenalina a correr mais forte. O álcool é bebido com outra intensidade. E quando o jogo termina, surge a velha e shakespeariana pergunta: bater ou não bater, eis a questão.

Resumindo, aqui está um estudo recente do Reino Unido, divulgado pelo "Guardian", que traz avisos sérios para a Copa do Mundo: sempre que a Inglaterra joga, a violência doméstica aumenta. E aumenta em qualquer dos cenários: se a Inglaterra perde, alguém apanha; se a Inglaterra ganha, alguém apanha também.

Claro que existem diferenças: nas derrotas, há um crescimento de 38% na violência entre o casal; em caso de vitória, o crescimento é de 26%. Mas a conclusão é unívoca: futebol traz violência dentro de casa. E nem sequer discrimina sexualmente: eles batem nelas, sim; mas elas também batem neles.

E, para que as minorias não sejam esquecidas, a orientação sexual não altera o pugilato: eles batem neles; elas batem nelas.

Por isso as autoridade nativas estão atentas: o primeiro jogo da Inglaterra na Copa será contra a Itália. O que significa que as autoridades policiais já identificaram várias famílias nas quais esse tipo de violência tem histórico e pode irromper de forma selvática.

Não sei, honestamente, que tipo de intervenção está prevista para o dia da partida. Boicotar a transmissão do jogo --via rádio ou TV-- para residências problemáticas? Separar preventivamente o casal em jaulas eletrificadas? Arrombar a porta ao mínimo sinal de discussão e louça quebrada?

Esperemos para ver. Mas o futuro promete: se o estudo ganha dimensão internacional, não será de excluir que apareça algures um comitê politicamente correto, de preferência sob o alto patrocínio das Nações Unidas, propondo seriamente a criminalização do futebol por suas influências nocivas na harmonia do lar.

Depois da Lei da Palmada infantil, só falta uma Lei da Porrada conjugal.

2. Provocou comoção a atitude do papa Francisco de rezar pela paz com os presidentes israelense e palestino. Pena que, no encontro histórico do Vaticano, não tenha havido a mais vaga menção aos obstáculos reais (e tradicionais) que definem o conflito. E que, hoje, em 2014, ainda não têm qualquer solução à vista.

Ninguém sabe o que fazer com Jerusalém, cidade reivindicada pelos dois povos para futura capital dos dois Estados.

Ninguém sabe o que fazer com os 4 milhões de refugiados palestinos (estimativa conservadora) que a Autoridade Palestina exige que regressem a Israel (e que Israel, logicamente, recusa, por ver nesse regresso o seu suicídio demográfico como "Estado judaico").

Ninguém sabe como convencer Israel a retirar da Cisjordânia depois da experiência traumática da Faixa de Gaza, quando Ariel Sharon retirou do território e o Hamas passou a usá-lo como rampa de lançamento de foguetes para o interior de Israel.

E, por falar em Hamas, ainda ninguém sabe se, no novo governo de unidade palestino, o Hamas está disposto a renunciar totalmente ao terrorismo e a reconhecer, pela primeira vez na sua história, a existência da "entidade sionista" com a qual terá de dividir o território.

Uma oração pela paz talvez seja uma forma de pedir um milagre para o conflito israelense-palestino. O papa Francisco, com a sua habitual sabedoria, sabe bem que só um milagre pode ressuscitar um "processo de paz" sepultado.

3. Leitores vários não gostaram das comparações abusivas que fiz nesta Folha entre as campanhas antifumo de hoje e as utopias sanitárias do fascismo e do nacional-socialismo ("Fascismo light", 3/6/2014).

Entendo o desconforto: também eu abomino a ligeireza das analogias históricas, sobretudo quando abusivas e ofensivas.

Acontece que, desta vez, não há ligeireza alguma. E aos leitores indignados só posso aconselhar, pela milésima vez, a leitura de "The Nazi War on Cancer" (a guerra nazista contra o câncer), o estudo magistral de Robert N. Proctor sobre a primazia do Terceiro Reich na luta contra o fumo.

A propaganda que hoje domina essa luta, no estilo e no tom (o fumante como ser infecto; o culto do físico perfeito; etc.) foi uma moda iniciada pela Alemanha nazista, 80 anos atrás.





11 de junho de 2014
João Pereira Coutinho, Folha de SP

NELSON RODRIGUES AO TELEFONE

Ele me dá bons conselhos lá do céu de papelão

Quando fico angustiado com as notícias brasileiras, ligo para o Nelson Rodrigues. Ele me dá bons conselhos lá do céu de papelão, entre nuvens de algodão e estrelas de papel prateado — seu paraíso é um cenário de teatro de revistas. O telefone toca como uma trombeta suave.

Ele já sabe quem é:

— Você, hein? Só me liga quando está encalacrado.

— Estou mesmo, Nelson, mas não sei se sou eu ou o Brasil.

— Deixa de frases, rapaz, você e o Brasil são a mesma coisa. O Brasil não é feito de florestas e cachoeiras. O Brasil é uma região dentro de nossas cabeças. Você é o Brasil. Levaram séculos para aperfeiçoar nosso atraso e você me vem com essa. Subdesenvolvimento não se improvisa. É uma obra de séculos.

— Ninguém entende mais nada... Eu nunca vi o Brasil assim...

— Eu sempre vi assim. O Brasil não mudou nada. O problema é que você quer “entender” e o país é muito maior que seu entendimento. Não mudou nada; só está vindo a furo, como um bom furúnculo. Você está nervoso porque sempre achou que havia salvação. Não existe isso. Nunca vamos chegar a lugar nenhum, porque não há ponto final... a não ser aqui em cima, claro. O que muda mesmo não são os fatos, como querem os idiotas da objetividade. O que nos muda não são as famosas “relações de produção” não; são bobagens nas brechas dos fatos. Quais foram as grande mudanças do país, nos últimos 50 anos? Getúlio se matou, o Jânio tomou um porre e se foi, o Tancredo morreu de nó na tripa, o Collor caiu porque não respeitava nem as cunhadas (como o meu Palhares), o Lula foi eleito por um publicitário, como uma boa margarina. É isso. O Brasil não é épico; nunca tivemos um Stalingrado, um Waterloo... Nem a Batalha de Itararé.

— Mas por que esta estagnação, esta zona geral?

— O Brasil não vai para a frente com planos messiânicos ou “epopeias de Cecil B. de Mille”, sejam elas epopeias “socialistas” ou liberais. O “óbvio ululante” é que os brasileiros odeiam justamente o óbvio. Bastava fazer umas reformas, não jogar dinheiro fora, amarrar os corruptos no pé da mesa, diminuir impostos, chupar a carótida dos chefes das Estatais como tangerinas. Mas, não; só querem apoteoses ou dilúvios de quinto ato do “Rigolleto”.

— Mas o cinismo dos políticos está cada vez maior!

— Não veja os políticos como gênios do bem ou do mal, Stalins ou Josés Bonifácios. São apenas uns sujeitinhos de cabelo pintado de preto ou acaju. Uns fingem de socialistas, outros de conservadores. Mas todos querem é o poder, as mãos dentro das cumbucas do Estado. Esses que estão aí querem criar “sovietes”, grupos corporativos como na Rússia. Já pensaram em Dirceu e Genoino dirigindo o país? Na época da ditadura ainda dava. Todos nós babávamos na gravata, imbecilizados, sem informação. O que nos salva é que eles são muito ignorantes. Antigamente, os cretinos se escondiam pelos cantos, babando pelos inteligentes de carteirinha. Agora estão aí, achando que vão mudar o país. Para eles, o capitalismo ainda é tratado como uma pessoa. “Hoje o capitalismo acordou de mau humor” ou “o capitalismo é muito egoísta, só pensa em lucro.” Nunca ninguém leu nada. Eu os chamava de marxistas de galinheiro. Eles me odiavam. Eu era chamado de pornográfico e depois virei o reacionário fundamental. Mas perdem sempre, pois a burrice é uma força da natureza. A burrice é a Pedra da Gávea.

— Querem controlar a imprensa...

— Querem controlar os brasileiros, fazê-los obedientes... Mas esquecem que os brasileiros têm a alma de feriado. Somos incontroláveis. Tem um Brasil sob as calçadas, nas sarjetas, nos bueiros que renasce e reage. E o pior dessa turma é que eles têm certezas profundas e isso os destruirá em breve. A dúvida sempre me pareceu mais sábia, mais clarividente.

— Deus queira.

— Eu nunca vejo Deus por aqui. Parece que anda deprimido por ter inventado o “livre arbítrio” dos homens, que está gerando essa esculhambação aí embaixo. Mas, se Deus me perguntasse o que eu fiz de bom na vida, eu responderia: “Senhor, eu descobri o óbvio!”. Sempre vi o que ia acontecer. Essa gente é muito óbvia. Você veja o Zé Dirceu, por exemplo, bom rapaz, era o Marlon Brando das comunistas, mas ele só amava os postes. Via um poste, subia nele e começava a falar da Utopia. Os passantes ouviam e perguntavam: “Quem é essa tal de d. Utopia? É mulher dele?”. A Dilma, coitada, é uma boa senhora que amava o Brizola, amava o Lula. Ela queria ser uma dona de casa, uma mãe de família “revolucionária”. Foi corajosa na juventude e hoje está aí... É uma Dilma que não existe, é um clone de si mesma. Mas estou te achando muito pessimista, rapaz...

— Nada. Sou um otimista bem informado...

— Não faz frase, rapaz... Não adianta se atolar em euforias brutais nem viver com complexo de vira-latas. Um retrato bom do país é o PMDB, feliz em sua mediocridade. O Brasil é o PMDB. O Brasil não é épico; é coloquial.

— E a Copa?

— Talvez ganhemos porque estamos com medo até das manifestações. Sem medo não há vitórias. Em 1950, perdemos porque estávamos mascarados.... Máscara é fogo... rapaz...

— Mas está morrendo mais gente aqui do que na Síria, Nelson...

— Vocês achavam que iam escapar? Ninguém escapa. O Brasil se achava uma ilha protegida, mas o mundo invade tudo. O Oriente, a África, o mundo quase em guerra e o Brasil numa boa? Impossível. Não há piedade na História... O Hegel e o Nietzsche vivem brigando aqui dentro. Ontem o Nietzsche disse isso: “A História não tem hora; é intempestiva! Cai feito um raio!”. O Hegel não gostou nada e anda deprimido pelos cantos. Agora a história do mundo atual está nos contaminando. Mas isso é bom. Sabe por quê? Porque teremos de assumir nossa miséria, assumir a nossa lepra, que o mundo agora vai ver. Não sabemos o que fazer com o Brasil, mas ao menos estamos conhecendo nossa cara...

— É isso aí, Nelson.

— Não se preocupe. Daqui a alguns anos, vão lembrar desta época como um “fascismo de galinheiro” disfarçado de “marxismo de galinheiro”. Fascismo é a burrice no poder, rapaz...

E desligou.


11 de junho de 2014
Arnaldo Jabor, O Globo

RAINHA DE COPAS

BRASÍLIA - Seremos palco, neste ano, de dois megatorneios. A Copa começa nesta semana --em jogo, nossa grande paixão, o futebol. A eleição presidencial tem início oficial em julho --definirá o destino do país nos próximos quatro anos.

Técnico da seleção, Felipão tem um craque espetacular em seu time. Inspirado, Neymar pode nos levar ao hexacampeonato. Já Dilma Rousseff tem uma equipe que não empolga nem um pouquinho e joga um feijão com arroz básico.

Seu principal jogador é bastante questionado pela torcida. Titular da Fazenda, Guido Mantega é alvo de campanha para ser colocado na reserva. Foi destaque na equipe de Lula, mas perdeu rendimento.

Seu beque Alexandre Tombini, contam as más línguas, jogou a toalha e arma seu esquema apenas para evitar que a inflação estoure as redes da meta, de 6,5% ao ano.

Resultado, o placar da economia vai mal. Crescimento fraco, com risco até de recessão. E inflação pressionada, minando o poder de compra dos eleitores, que já ameaçam abandonar a torcida da petista.

Nos vestiários do poder, a culpa pelo jogo feio é colocada nas costas de Dilma. Centralizadora e adepta da terapia da bronca, ela não deixa sua equipe dar um drible a mais, armar jogadas novas. Seus jogadores acabam na retranca, com medo de perder a cabeça, ops, o cargo.

Sem falar que o esquema tático não é de Mantega nem de Tombini, mas dela, a dona da bola. Daí o desejo do empresariado e de petistas de substituí-la pelo reserva de luxo Luiz Inácio Lula da Silva.

Só que, ao melhor estilo Zagallo, Dilma parece dizer a seus companheiros: "Vocês vão ter de me engolir". Só que, se seu time continuar a decepcionar, o coro do "volta, Lula" pode ficar ensurdecedor.

Bem, a bola vai rolar. Vamos torcer pelo Brasil. Principalmente os petistas. A Copa --dentro e fora dos gramados-- pode ser mais decisiva do que se imaginava para a eleição.




11 de junho de 2014
Valdo Cruz, Folha de SP


AINDA FALTA MUITO

Corrupção a céu aberto na política e estagflação na economia são claros sintomas de uma travessia inacabada rumo à Grande Sociedade Aberta

A transição do antigo regime militar para a Grande Sociedade Aberta segue incompleta. A corrupção a céu aberto na política e a estagflação na economia são claros sintomas de uma travessia inacabada. Mas não há razão para desespero.
Afinal, esta viagem histórica de aprofundamento nas práticas de democracia e mercado é a própria síntese de nossa marcha civilizatória. "A civilização ocidental começa com os gregos, os primeiros a iniciarem a transição de uma sociedade tribal submetida a poderes mágicos para a sociedade baseada na liberdade e na racionalidade humana.


Começou na Grécia antiga esta grande revolução, que mesmo após milênios parece estar ainda em seu início: a transição para a Grande Sociedade Aberta" registra o formidável filósofo da ciência Karl Popper, em seu clássico "A sociedade aberta e seus inimigos" (1945).
Globalização, telecomunicações e internet? "A causa mais poderosa da ruptura das sociedades fechadas foi sempre o desenvolvimento do comércio e das comunicações. Muita evidência disso pode ser encontrada na história da Guerra do Peloponeso de Tucídides, o choque entre a democracia de mercado ateniense e o tribalismo oligárquico de Esparta" observa Popper.



Outro episódio de proporções épicas nesta marcha evolucionária por aperfeiçoamento é descrito por Joseph Ellis, em "Verão revolucionário: o nascimento da independência americana" (2014): "As colônias acreditavam no princípio de que nenhum cidadão britânico teria de pagar tributos legislados sem seu consentimento. Como os americanos não tinham representação no Parlamento, revoltaram-se contra os impostos.
Em 1774, em resposta ao quebra-quebra no porto de Boston, os britânicos impuseram lei marcial, transformando uma disputa constitucional em um conflito militar. Em 1775, o rei George III bloqueou ativos americanos, fechou portos e convocou extraordinária força militar para esmagar a incipiente rebelião.
A incompetência dos britânicos e de seu rei foi uma providencial oportunidade para um script que seria intitulado a Grande Revolução Americana". Os desafios da globalização, das comunicações e do excesso de impostos são, como se vê, históricos. O importante é transformar tais desafios em oportunidades de aperfeiçoamento nessa longa travessia.


11 de junho de 2014
Paulo Guedes, O Globo



NÓS QUEM?

NOVA YORK - O cenário era belíssimo, uma casa de fim de semana em Long Island. Caí de paraquedas numa festa, levada por uma convidada da anfitriã, matriarca de uma família abastada de Nova York. Sem saber - e pouco se importando - em descobrir quem eu era, ela desabafou em voz alta: "Ainda bem que não vieram jornalistas. Eles são tão sujos". Não contive uma gargalhada discreta, um privilégio que ela parecia não ter mais, com seu rosto imobilizado por cirurgiões plásticos.

A pessoa que me levou ficou mortificada e se preocupou, sinceramente, com o meu desconforto. Que era nenhum. Minha reação, uma vez que a opinião da socialite não respingou na minha pessoa asseada, foi evitar seu constrangimento e pedir que não lhe revelassem o meu ganha-pão.

Não arrasto comigo uma categoria profissional, uma identidade corporativa, como uma longa cauda de vestido de noiva. Porcaria e maravilha não fazem discriminação na medicina, na engenharia ou no jornalismo.

Defendo minha atividade como necessária à democracia, denuncio quando jornalistas são censurados, presos, mortos, mas não ponho a mão no fogo por nenhum estranho só porque ele se diz membro de uma profissão. E costumava encolher, defensiva, quando era chamada de "coleguinha" em reuniões de sindicato.

O incidente na festa aconteceu há uns 15 anos, mas a cena me voltou à memória na semana passada. Leitoras que se declararam representantes de uma categoria - a de organizadores profissionais - se sentiram insultadas porque descrevi a atividade, tal como a testemunhei em Manhattan, como "uma pérola de charlatanismo". Eu me referia a pessoas que cobram US$ 125 por hora para arrumar o closet, gavetas e estantes de gente como um conhecido meu, que mora num conjugado. Reconheço que ele fica pior na foto por ter desperdiçado dinheiro terceirizando sua vida pessoal. Minha insensibilidade foi recebida com longas explicações, entre elas o fato de que 300 organizadores profissionais se encontraram em São Paulo para debater a defesa de sua categoria. Tentei explicar que não estava insultando as leitoras mesmo por que desconhecia a existência de tal agrupamento corporativo no Brasil, agrupamento que há de ser composto por pessoas idôneas e nem tanto, como a sociedade em geral.

Se tivesse usado "frivolidade" e não "charlatanismo" a indignação teria sido menor? Não sei. Como expliquei a uma leitora gentil: Um cirurgião plástico que continua a operar uma cliente insegura e progressivamente deformada pode não estar violando nenhum código de seu Conselho Regional de Medicina. Mas, aqui neste canto opinativo, ele é um vocês sabem o quê. Lembrei da cena na festa quando me pediram para "me retratar" pela opinião que expressei. Não só lamento como não questiono a sinceridade da mágoa de quem fez a sugestão. E não duvidem da minha surpresa.

O Brasil que eu deixei era um país autoritário, em transição para um governo civil. O Brasil que reencontro hoje é uma democracia constitucional, mas, além de importar a categoria de organizadores profissionais dos Estados Unidos, importou também uma forma peculiar de autoritarismo cultural marcado pela vitimização e extrema litigiosidade. Vivemos uma espécie de embotamento cívico sob o qual somos tão vulneráveis que uma opinião sobre ter seu armário arrumado por estranhos requer retratação. É um mal-estar só aplacado por corporativismo e unguentos governamentais.

Reconheço este Brasil no país que produziu o Decreto 8243. A presidente Dilma Rousseff viu por bem criar uma nova casta na sociedade brasileira. Não contente com a Constituição, os três poderes e o exercício do voto, a presidente, de uma só canetada, nos separou. Agora há a turma da arquibancada e uma tal sociedade civil que vai ganhar camarotes no Executivo. Numa linguagem que é um modelo de contorção semântica, o decreto define grupelhos para dialogar com o governo. Gente não eleita que não me representa.

Como bem explicou o acadêmico Oliveiros Ferreira num excelente artigo neste jornal, o decreto invade também o território da Justiça, atribuindo a "mesas de diálogo" a função de prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais. O governo vai escolher os frequentadores dos camarotes para avançar o espetáculo de "políticas públicas". Quem achava que seu título de eleitor bastava para a participação democrática acordou no dia 24 de maio como membro de uma casta inferior, os que não entraram para o clube da "sociedade civil".

Nem vou entrar aqui na questão de se tratar de uma iniciativa que propicia a perpetuação de apparatchniks na máquina governamental. Mas a falta de indignação inicial com o decreto me pareceu afinada com o embotamento cívico em que enfraquecemos nosso poder individual. Delegar a arrumação do closet a terceiros pode ser uma frivolidade. Mas terceirizar o exercício da democracia constitucional é uma temeridade.

11 de junho de 2014
Lúcia Guimarães, O Estadão

OS MILAGRES DE TODOS OS DIAS

Na noite de sábado, fomos surpreendidos, Letícia e eu, com a chegada antecipada de Julia e Bernardo, meus filhos caçulas. Apreensões à parte, sempre irremediáveis no coração dos pais e das mães, é como se o tempo tivesse parado de repente à nossa volta, como que reverenciando aquele que é o mais importante milagre humano --a vida que floresce e se renova todos os dias.

Tomado pela emoção de ser pai novamente, faço uma pausa nos temas, preocupações e reflexões que venho tratando nesse espaço, para dividir com cada um de vocês um sentimento muito especial. Dizem que quanto mais íntima a alegria ou a dor, mais universal ela é. É o nosso sentimento mais pessoal que nos conecta com toda a humanidade.

Como já havia acontecido comigo antes, com a minha filha Gabriela, os gêmeos trouxeram consigo o poder mágico e indescritível de fazer emergir o que há de mais essencial em cada um de nós, lembrando-nos de quem somos, de onde viemos e o significado maior de nossa jornada aqui.

Mesmo sem saber, Julia e Bernardo tocam, de uma forma extraordinária, o coração de um pai mergulhado em diferentes universos e grandes desafios coletivos, que neste momento, se misturam à pessoal e intensa felicidade da suas chegadas.

Observando os nossos dois bebês, impossível não me emocionar com o precioso sentido do valor da família, resumido na imagem de minha mãe pedindo à Nossa Senhora --como um dia pediu pelos seus filhos-- que receba e envolva os netos em seu manto protetor. Ou lembrar, com saudade, da voz do meu pai, contando casos e histórias, que pretendo um dia contar a eles ao redor da nossa mesa. Porque família é quem veio antes, quem está conosco e quem vem depois. Me tornei o homem que sou pelo exemplo que tive dos meus avós e de meus pais. Deles recebi valores que me esforcei para passar à Gabriela e que pretendo transmitir ao Bernardo e à Julia.

A presença dos meus filhos me rejuvenesce em esperança ao mesmo tempo em que fortalece o meu sentido de responsabilidade com o mundo em que vivemos. E com o legado que cada um de nós está deixando para as novas gerações. Aumenta minha responsabilidade com a luta para que eles possam crescer em um Brasil melhor, mais honesto e que encha a todos nós de orgulho e de esperança. Quem vê o mundo com olhos de pai, o vê com mais cuidado. Mas também com mais vontade de lutar.

Em meio a tantos desafios e preocupações, o relógio da minha vida parou por alguns instantes. São esses pequenos milagres do cotidiano que nos revelam o que é essencial, verdadeiro e transformador. Tempo é dádiva. Vida é dádiva. É preciso fazer a nossa parte para merecê-los.




11 de junho de 2014
Aécio Neves, Folha de SP

GASTO PÚBLICO ERRADO

O Brasil é um país onde, historicamente, nos três níveis de governo, houve irregularidades aos borbotões

No delicioso documentário sobre Vinicius de Moraes, que passou no cinema há uns 3 anos, há uma anedota contada por Chico Buarque, referente à época em que o poetinha ganhava a vida fazendo shows, muitos deles no exterior, quando Chico estava no exílio. Ele foi ver o show do amigo, que, com sua graça particular, começou a contar uma história que fazia a plateia gargalhar sem parar. No meio desse processo, lacrimejando de tanto rir, mas sem captar uma palavra do que o Vinícius dizia numa mistura ininteligível de italiano, português e inglês, um italiano se vira para o Chico e pergunta: “Bravissimo, ma scusi, che língua parla?” (“Espetacular, mas, me desculpe: que língua é essa?”).

Sempre me lembro da frase quando acompanho o debate sobre a “gastança”. Em relação a isto, a crítica de certa forma une tanto a chamada “direita” como a “esquerda”. A primeira tende a considerar que há um processo populista em curso e que um governo mais comprometido com a austeridade poderia rapidamente reduzir a relação entre o gasto público e o PIB. A segunda, por sua vez, tende a considerar que o gasto vai para os “os ricos”, “a elite” ou “os privilegiados”, em vez de ser direcionada para “nós, o povo”.

Somando-se a crítica à “gastança”, quem se deixa levar por esses argumentos toscos se assemelha ao italiano da anedota diante do show do Vinicius: aplaude o argumento, mas não consegue entender o que se passa.

O drama do gasto público é que o pressuposto da crítica — de que o dinheiro está sendo desviado para fins escusos — está equivocado. O Brasil é um país onde, historicamente, nos três níveis de governo, houve irregularidades aos borbotões. Basta ler qualquer jornal. Na época do Getúlio, nos anos JK, com os militares ou nos governos civis que se seguiram, na União, no estado A ou no município B, em qualquer ano ou instância de governo, com o partido X ou Y, qualquer historiador terá material para encher páginas e páginas com os escândalos de cada época. Entretanto, quando se tenta entender por que o gasto primário federal passou de 13,7% do PIB em 1991 para 22,8% do PIB em 2013, não são os escândalos que explicam isso. São todas coisas que estão diante de nosso nariz — e o país teima em não enxergar. A “gastança” é fruto de decisões tomadas com o beneplácito da grande maioria dos parlamentares — quando não da própria população — que, tempos depois, revela o seu impacto financeiro em toda a sua plenitude, com escasso efeito sobre a melhoria de bem-estar do país. É por esse tipo de coisas que, no fim da vida, exasperado pelos absurdos recorrentes década após década em matéria econômica, Roberto Campos concluía que “a burrice nacional não associa o efeito com as causas”.

Um esclarecimento: a despesa federal com pessoal ativo era de 2,7 % do PIB em 1991 — e caiu para 2,3 % do PIB em 2013. O cidadão tem todo o direito de achar que há muitas repartições onde sobra gente, mas, se pagamos mais impostos hoje do que há 20 anos, não é porque há mais gente trabalhando nos ministérios: o peso relativo dessa conta caiu.

O que foi que aumentou? Três coisas. A primeira, as despesas com benefícios do INSS, de 3,4% do PIB em 1991 e de 7,4% do PIB em 2013 — e os aposentados se queixam de abandono. A segunda, as transferências a estados e municípios, que passaram de 2,7% para 3,9% do PIB nesse período — e governadores e prefeitos vivem de pires na mão. E a terceira, o gasto com o “OCC”, as “outras despesas de custeio e capital”, que pularam de 3,9% para 7,3% do PIB nesses 22 anos. Nessa rubrica, há desde o justificado Bolsa Família, inexistente no passado e que hoje consome em torno de 0,6% do PIB, até o inacreditável gasto com seguro-desemprego de 0,5% do PIB em 2003 quando o desemprego do país era de 12% e de 0,9% hoje, quando o desemprego é da ordem de 5%, no que talvez seja um dos melhores exemplos da incúria nacional, passando pelo aumento das despesas da Lei Orgânica da Assistência Social. No dia em que “gestão” deixar de ser bordão de marqueteiro, será preciso fazer um raio X das contas públicas para verificar a quantidade de recursos que estão sendo gastos de forma torpe, na frente de nosso nariz, como se fosse a coisa mais natural do mundo. É tarefa para estadista.



11 de junho de 2014
Fábio Giambiagi, O Globo

POLÍTICA E CRIME ORGANIZADO

Deputado deve explicações à sociedade

Depois de o secretário municipal de Transportes de São Paulo, Jilmar Tatto, acusar a Polícia Militar de falta de empenho para conter a baderna dos grevistas das empresas de ônibus, o governo do estado revelou o conteúdo de um inquérito policial que apurava uma série de incêndios de ônibus na capital paulista desde o início do ano. Segundo matéria da revista “Veja”, a polícia descobriu que um aliado de Tatto, o deputado estadual Luiz Moura (PT), havia participado de uma reunião, no dia 17 de março, na cooperativa Transcooper com 13 integrantes da facção criminosa PCC.

Nos anos 90, Moura foi condenado a cumprir 12 anos de prisão por assalto à mão armada. O deputado foi preso e, após um ano e meio de pena, fugiu da cadeia. Passou um longo período foragido e só se reapresentou à Justiça quando seus crimes prescreveram. Entrou, então, para o PT.

O deputado deve algumas explicações à sociedade. E a primeira delas está relacionada com seu aumento patrimonial. Luiz Moura, em cinco anos, saiu de um situação de pobreza para ser dono de um patrimônio de R$ 5,1 milhões. Em janeiro de 2005, para solicitar sua reabilitação criminal à Justiça catarinense — que o condenara por roubo —, além de afirmar que praticara os crimes porque usava drogas, mas se regenerara, Moura assinou um atestado de pobreza no qual sustentava não ter “condições financeiras de ressarcir a vítima”, no caso, um supermercado. Além disso, apresentou uma declaração de Imposto de Renda de 2004 (referente ao ano de 2003) na qual afirmava que, em todo o ano anterior, tivera rendimentos que somaram R$ 15.800.

Em 2010, contudo, quando se apresentou pela primeira vez como candidato, Luiz Moura, em sua declaração de bens, apresentou um patrimônio de R$ 5,1 milhões, dos quais R$ 4 milhões em cotas de uma empresa de ônibus — a Happy Play Tour —, cinco postos de gasolina, quatro casas e um ônibus. A sociedade e o próprio PT têm o direito de conhecer as justificativas para tão brilhante crescimento patrimonial.

Além disso, cabe ao deputado dar explicações concretas a respeito de sua participação na reunião que foi interrompida pela ação policial. Na tribuna da Assembleia Legislativa, Moura disse que participou do encontro por causa de sua militância na área de transportes e que tentava evitar uma greve na Zona Leste de São Paulo. Não resolve a questão. A explicação que continua devendo é bem concreta. Como explicar que um homem público, “militante da área de transportes”, certamente conhecedor do setor e dos seus pares, tenha participado de uma reunião que contou com a presença de 13 integrantes do PCC? Estamos falando de mais de 30% dos participantes.

Não é de hoje que pairam suspeitas sobre eventuais incursões do crime organizado na área de transportes na capital paulista. Incêndios de ônibus não podem ser encarados como algo normal. É preciso investigar quem são os mandantes e tomar as oportunas providências de combate ao crime. Trata-se de assunto de interesse público relevante. É preciso apurar, empunhar o bisturi e ir fundo.





11 de junho de 2014
Carlos Alberto Di Franco, O Globo

A VERDADEIRA REFORMA POLÍTICA

Durante os governos do presidente Castelo Branco ao de João Figueiredo, os líderes e militantes políticos foram estimulados a sobreviver em razão das dificuldades a eles impostas. As Câmaras Municipais eram atuantes e com frequência recebiam líderes políticos que, sabiamente, repassavam seus conhecimentos aos membros dessas respeitadas Casas legislativas. Os vereadores vocacionados sonhavam com o poder e lutavam para conquistar novos mandatos nos Legislativos e Executivos, orgulhando, assim, suas cidades, seus Estados e a Nação.

Em 1982, com a eleição de governadores, reconquistamos a liberdade e a democracia. Infelizmente, com o passar do tempo inibiu-se a formação de novas lideranças políticas partidárias. Em 1988 e 1989 o processo de elaboração das Cartas Constitucionais federal e dos Estados foi um divisor de águas na História do Brasil, momento em que a sociedade depositou suas esperanças no Poder Legislativo. Buscava-se uma reordenação institucional que enterrasse de vez o chamado "entulho autoritário" produzido por 21 anos de leis arbitrárias, ditatoriais. Foi esse o motivo que levou Ulysses Guimarães, na promulgação da Carta federal de 1988, a identificá-la como a "Constituição cidadã", pois devolvia e ampliava as prerrogativas essenciais ao pleno exercício da cidadania.

Podemos afirmar que a desmoralização da classe política foi a causa principal da não formação de novos líderes e, como consequência, os vereadores foram atingidos diretamente, por conviverem diariamente com os eleitores. A Câmara Municipal é a base da instituição legislativa no Brasil e, sem dúvida, a principal escola política do País. Ali a democracia é praticada pelos legítimos representantes escolhidos pelo povo.

Com a frequência de escândalos no mundo político, os eleitores, revoltados, pararam de ofertar novos nomes para concorrer às eleições. Ficou difícil para eles escolherem com seu voto e arregimentar novos eleitores para elegerem os verdadeiros dirigentes dos destinos da sua cidade. Essa posição adotada teve como causa a pior das corrupções, a ausência de idealismo.

Entendo que os maiores responsáveis por esse desastre institucional foram os prefeitos. Com a surrada desculpa da governabilidade, conquistam os votos dos vereadores usando expedientes não convencionais. Entristecido, registro que os governos dos Estados e a Presidência da Republica também fazem composições com os legisladores de forma condenável, não republicana.

Ao generalizar essas informações posso ser tachado de leviano. Logo, faço a ressalva de que há prefeitos, governadores e presidentes que pensam e agem com seriedade, respeitam o Legislativo e merecem a nossa admiração.

A partir dessa ação impatriótica de prefeitos, sentimos que as Câmaras Municipais estão transformando seus legisladores em líderes envergonhados e preocupados somente com a reeleição. A postulação de mandato nas esferas superiores foi abandonada pelos vereadores.

Os vereadores são obrigados a respeitar a Constituição brasileira, a Constituição estadual e a Lei Orgânica do Município. O principal trabalho dos senadores, deputados federais, estaduais e vereadores é aprovar o orçamento, "dinheiro que entra no cofre", e fiscalizá-lo. Outra atribuição é convocar membros do Executivo para esclarecer dúvidas, encaminhar denúncias com fundamento aos Tribunais de Contas para averiguação, legislar, atender seus eleitores, estar presente em reuniões representando com dignidade o Poder Legislativo.

A Câmara Municipal, a base da instituição legislativa no Brasil, mais antiga que o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas, é o principal viveiro nacional de formadores de líderes políticos, mas parece que passou a nos fornecer frutos com desvio de formação.

É importante ressaltar que o Legislativo praticou atos que nos orgulham. O Congresso cumpriu a Constituição ao cassar o mandato do presidente Fernando Collor e dar posse a Itamar Franco, fazendo saber que no nosso país a democracia era verdadeira e as instituições estavam consolidadas. Governadores, prefeitos, senadores, deputados federais e estaduais, vereadores foram cassados, presos e tiveram seus direitos políticos suspensos.

A Constituição brasileira expressa que o salário mínimo deve ser aprovado anualmente por lei. Medidas provisórias e decretos têm retirado dos legisladores o seu direito de legislar. O Supremo Tribunal Federal tem legislado por causa da omissão do Legislativo. O esteio da democracia está nos três Poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário - independentes e harmônicos entre si. Essa usurpação de função é perigosa e parece-nos ser o princípio do "entulho autoritário" ou a busca de governos autoritários. Conspirar é nossa vontade e você pode ser o ator desta revolução participando com seu voto e ousando nestas mudanças históricas.

Em 2012 você elegeu o prefeito e os vereadores de sua cidade. Agora em outubro teremos eleições para presidente, governador, senador e deputados. Agrupe-se ideologicamente. Faça reuniões para discutir política. Fale com entusiasmo de uma boa política partidária por onde passar. Procure um bom candidato para apoiar ou apoie um líder competente para representá-lo. Ele deve assumir o compromisso de defender o interesse municipal, estadual e nacional, independentemente de partido político.

Podemos fazer uma verdadeira reforma política e de líderes, mesmo sabendo que levará décadas para alcançá-la. Os 20 centavos foram apenas o estopim de um movimento que tomou conta do País em junho de 2013, de forma surpreendente! Ele mostrou que a sociedade deve e pode mudar o destino do País. Ele é a base dos movimentos atuais, mas que devem ser feitos de forma ordeira e sem vandalismos.

"Nunca é cedo para começar" e, caso você entenda que deve iniciar essa reforma hoje, agora, saiba que certamente ela será mais rápida.





11 de junho de 2014
Tonico Ramos, O Estado de S.Paulo

ENCALHADO

O Brasil atravessa momento impreciso, praticamente estacionado, tão mofino tem sido seu crescimento, coisa de 2% ao ano, dá a ideia de um navio encalhado. A perspectiva de melhoria significativa parece remota, enquanto a menos boa, lastimavelmente, é mais plausível, considerando a queda no crescimento do PIB e os dados internos e externos.
Em ano anterior, o resultado não fora bom e o governo se limitou a projetar aumento espetacular, de um “pibinho” prometia um “pibão”. O resultado, mais que pífio, foi deplorável.


Nesse quadro nenhum sinal promissor aparece, nem mesmo na linha do horizonte. Mas a senhora presidente é candidata à sua reeleição. Alvíssaras!
Quem pretende a reeleição sem nada dizer a respeito leva a supor que continuará as linhas da sua atual gestão.

Afinal de contas, quem diz reeleição sem nada esclarecer faz crer a continuidade do que fez e do que deixou de fazer em quatro anos de governo.

Compreende-se que um grande governo possa motivar a reeleição do governante, mas ainda não se vira que chegue ao cabo o quadriênio menos feliz da gestão e alguém possa pensar em continuidade. Seria o paradoxo dos paradoxos.


Agora, por exemplo, a senhora presidente sem lei, por arbítrio seu, surpreendeu o seu mutismo com um decreto que literalmente desmancha a administração pública; esta é regida por lei e a senhora presidente, revogando a Constituição, abre as portas da administração a quem nela queira entrar e mexer como lhe aprouver.

Seria o conúbio da legalidade administrativa com a licenciosidade do anonimato. Trata-se de uma fuga à realidade nunca vista, expediente com que a senhora presidente pretenderia superar a atrofia politica e administrativa chegada ao descalabro do encalhe. Daí porque, não seria surpresa se o resultado viesse a ser a retração do país, e esta tem sido a opinião de doutos.

Nenhum alvitre, ainda que mediocremente razoável. A reeleição seria o segredo do milagre, mas este é por demais escarninho. Com devaneios não se desencalha uma jangada, muito menos uma nação.




11 de junho de 2014
Paulo Brossard, Zero Hora

O LEGADO DA DILMA

A modéstia, convenhamos, nunca foi o ponto forte de Lula. Mas em relação a Dilma, sua invenção para presidir o país, ele guardava um certo recato. De público, cuidava para não reforçar a impressão de que a tutelava. Na semana passada, em Porto Alegre, Lula mandou às favas todos os escrúpulos e fez o impensável - criticou a política econômica do governo. E na frente de um dos seus responsáveis.

POBRE ARNO AUGUSTIN, Secretário do Tesouro. Ouviu poucas e boas diante de um auditório inclinado a concordar com tudo o que Lula dissesse. Por uma questão de estilo e temperamento, Lula e Dilma são famosos por tratarem com grosseria seus subordinados. Mas isso sempre ocorre em particular. E, no caso de Lula, quando ele reconhece que foi cruel, costuma pedir desculpas sem pedi-las diretamente.

POIS FOI CONSTRANGEDOR. Depois de, na véspera, reunido com empresários, ter chamado a atenção do governo para o risco de perder o controle da inflação, Lula valeu-se do seu próprio exemplo para ensinar a Arno - e, por tabela, a Dilma - como esquentar a economia. Defendeu a expansão do crédito, um meio de aumentar o consumo. E lamentou: "Se depender do pensamento de Arno, você não faz nada".

VOLTOU À CARGA: "Uma medida que tomamos foi aumentar a oferta de crédito. O Arno nem sempre gosta disso" alfinetou. Arno sorriu meio sem graça. "Eu acho, Arno, que um dia você vai ter que me explicar, por que, se a gente não tem inflação de demanda, por que a gente está barrando o crédito? O crédito precisa chegar" cobrou Lula. "Com crédito todo mundo vai à luta." Depende.

NO MEIO DO segundo mandato de Lula, a receita soprada por Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda da ditadura de 64, funcionou de fato. O governo tinha dinheiro para ampliar o crédito via bancos oficiais. A taxa de juros havia baixado, tornando os empréstimos mais atraentes. Disparava a boa avaliação do governo. E a indústria tinha capacidade ociosa e podia aumentar a produção para atender ao consumo.

HOJE É TUDO o contrário. Agravado pelo fato de que o pessimismo do brasileiro está em alta - e a culpa não é da oposição, como sugere Dilma. A culpa é de um governo medíocre, centralizado em excesso na figura da presidente, e que realizou pouco. A herança maldita que deixará é a frustração dos que acreditaram na palavra de Lula de que Dilma como gestora era superior a ele. Isso se chama estelionato eleitoral.

O TROCO ESTÁ vindo a galope. Desmancha-se a confiança no governo e nas suas políticas. Pela primeira vez desde 2007, a maior parte dos eleitores (36%) acha que a situação econômica só tende a piorar, segundo a mais recente pesquisa de opinião do instituto Datafolha. Para 64%, a inflação vai crescer - eram 58% há um mês. O desemprego, também, acreditam 48% - eram 42% há um mês.

JOÃO SANTANA, marqueteiro das campanhas de Lula e de Dilma em 2006 e 2010, terá pela frente três tarefas de grande porte: reverter a expectativa negativa dos brasileiros quanto à economia; tornar positiva a avaliação do governo, e convencer a maioria dos que pedem um presidente diferente do atual que a continuidade com Dilma é melhor. Ou de que a mudança pode ser feita com ela.

O ANO COMEÇOU com Dilma como favorita para se reeleger no primeiro turno. Depois, as pesquisas indicaram que ela disputaria o segundo turno ainda na condição de favorita. Agora, o favoritismo de Dilma está ameaçado. Chamem Lula... Para tentar salvá-la - e ao PT.

11 de junho de 2014
Ricardo Noblat, O Globo

UMA CONTRADIÇÃO

Sem reservas expressivas de carvão mineral ou de petróleo (essas últimas somente descobertas a partir da década de 1970), o Brasil calcou no século XX sua matriz de energia elétrica no aproveitamento de recursos hídricos. Junto a quedas naturais, e preferencialmente próximas aos centros de consumo, foram construídas várias hidrelétricas. Mas uma matriz com essas características precisa armazenar água para os anos seguintes, pois o regime de chuvas que alimentam os mananciais não é totalmente previsível. Assim, nos anos de chuvas mais abundantes, armazena-se água para utilização no chamado período seco, quando a vazão dos rios diminui.

Os aproveitamentos hídricos próximos aos centros de consumo foram se esgotando e, além disso, por restrições ambientais, as novas hidrelétricas passaram a ser construídas sem reservatórios de acumulação de água. Ou seja, as novas usinas são a “fio d’água”, e dependem da vazão natural dos rios. O desenvolvimento tecnológico permitiu incorporar à matriz os aproveitamentos hídricos na Amazônia, embora lá as restrições para a construção de reservatórios que acumulem água sejam ainda maiores, pelo fato de a topografia da região não contar com vales relativamente estreitos, o que aumentaria a necessidade de se ampliar as áreas inundáveis. Há, sem dúvida, um exagero nessas restrições, pois nos períodos de cheias as margens de muitos rios são ocupadas pelas águas, impedindo a utilização dessas áreas para outros fins.

O fato é que as distâncias entre as regiões brasileiras e os diferentes regimes de chuvas ao longo do ano exigiram a formação de um complexo sistema interligado, com milhares de quilômetros de linhas para transmissão da energia. Pela ausência de reservatórios de acumulação de água, esse sistema é mais dependente do humor de São Pedro. A forma de torná-lo menos vulnerável é incorporar a essa matriz usinas termelétricas, que complementam as hidrelétricas (no caso das nucleares ou que utilizam biomassa) ou constituem uma reserva para momentos críticos (usinas que queimam óleo, gás natural, carvão).

As peculiaridades da matriz brasileira vêm exigindo uma participação crescente das termelétricas. E nisso há uma contradição na política energética, pois a matriz está ficando mais “suja” devido às restrições ambientais que impedem a construção de hidrelétricas com reservatórios de acumulação de água.

Investimentos expressivos têm sido feitos nas chamadas fontes alternativas, haja vista o grande número projetos de usinas eólicas que se candidatam aos leilões de fornecimento de energia. No entanto, mesmo com todo esse esforço, as usinas eólicas ainda não atingiram 2% de toda a capacidade de geração de eletricidade do país, e respondem por menos de 1% da carga consumida. As usinas eólicas não acumulam energia e dependem inteiramente da continuidade dos ventos. Uma matriz baseada nessas fontes alternativas precisa de uma enorme reserva de usinas termelétricas, encarecendo brutalmente todo o sistema.





11 de junho de 2014
Editorial O Globo

NOVA AMEAÇA À DEMOCRACIA




A jovem democracia brasileira não para de correr risco. Não se trata mais dos antiquados e grosseiros golpes armados para derrubar presidentes. Os perigos atuais são mais sofisticados, mais bem urdidos e, não raro, evocam a defesa e a ampliação da democracia com o oculto propósito de golpeá-la. Por exemplo: propor e defender a criação de canais que facilitem a manifestação da vontade popular.




Mas a cidadania deve verificar com cuidado se essa proposta não é apenas uma embalagem falsa, um cavalo de Troia. Ao trocar o totalitarismo dos regimes centralizadores pelo poder emanado do povo e exercido por representantes eleitos por ele, a democracia acabou criando caminhos de dominação. São o resultado da manipulação mal-intencionada dos mecanismos que deveriam ser acionados apenas para fazer valer a legítima vontade da maioria.



É com essa preocupação que deve ser encarada a mais nova manobra engendrada pelo grupo político que hoje governa o país. A presidente Dilma Rousseff baixou decreto criando o que parece ser um inocente mecanismo de auscultação popular, ao instituir uma Política Nacional de Participação Social. Essa política, conforme o Decreto nº 8.243, consiste na criação de conselhos temáticos de participação popular, os quais os órgãos da administração direta e indireta terão de levar em conta ao formular, executar e monitorar seus programas e políticas públicas.





Alega o governo que a existência de conselhos na administração pública é antiga e que o que fez foi regulamentar seu funcionamento. Não é bem assim. A estrutura prevista no decreto presidencial, por sua amplitude e força de intervenção na condução do país, abre o caminho para a formação de blocos de poder a serem dominados por movimentos e corporações politicamente atrelados ao governo e a ele submissos.



A ideia é passar por eles a velha aspiração de políticos brasileiros que sonham com a perpetuação de seu grupo no poder, livre dos riscos de uma eventual derrota em pleitos verdadeiramente democráticos. Por essa via, que seria tida como legítima representante da vontade popular, poderão transitar mudanças perigosas para o regime democrático, que pressupõe a alternância no poder e a submissão incondicional às leis aprovadas pelos representantes eleitos pela maioria da população (deputados e senadores).





É uma clara sobreposição ao Congresso Nacional por mecanismo típico da democracia direta, que torna o regime refém de grupos organizados da sociedade, porém submetidos à vontade oficial. Confrontado, o governo argumenta que o decreto foi elaborado com a participação de movimentos sociais e representantes da sociedade civil. Mas a surpresa que sua publicação provocou na maioria da base aliada no parlamento desmente que tenha havido debate amplo e que não se pretendeu atropelar o Legislativo.





Assim como na fracassada tentativa do governo de aprovar a convocação de um plebiscito para votar uma assembleia constituinte exclusiva para modificar o marco político em junho de 2013, o que pode salvar o país de mais essa armação é, além da permanente vigilância da cidadania, mais uma vez a experiência e o bom senso do vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP). "Os conselhos são sempre úteis, mas vale um Projeto de Lei para integrar o Congresso Nacional nessa discussão", ponderou.


11 de junho de 2014
Editorial Correio Braziliense

DANDO BOM-DIA A CAVALO

A crônica política brasileira é pródiga em episódios com os quais Luiz Inácio Lula da Silva ilustra o aforismo segundo o qual quem fala muito acaba dando bom-dia a cavalo. Em longa entrevista concedida a uma revista semanal, o ex-presidente exercita sua megalomania, insiste em conhecidas mistificações sobre os governos petistas e o papel de seu partido na vida política brasileira, repete ataques à imprensa e sofismas sobre o "controle social da mídia", não se constrange em praticar o jogo do "faça o que eu digo, não o que eu faço".

Aflora em toda a extensão da entrevista a obsessão pelo confronto maniqueísta com uma "elite" retrógrada, inominada, a qual acusa de conspirar contra todas as fabulosas conquistas dos governos petistas. É o velho "nós" contra "eles".

É interessante a visão de Lula dos problemas de comunicação de que, entende, padece o governo Dilma. Problemas esses veladamente atribuídos em parte à incompetência do próprio governo, mas agravados pelo comportamento de uma mídia que tem mal-intencionada "predisposição ao negativismo".

Lula cultiva, como se sabe, uma espetacular imagem de si próprio e do modo petista de governar. Mas não se conforma com o fato de essa visão não ser compartilhada pela mídia. Mas tem remédio para isso. Não adianta reclamar que "(...) 'a Globo não me dá espaço'. A gente tem outros instrumentos para dizer o que quer". Como assim? "Tenho dito com a Dilma que não tem de dar ouvidos a quem fala que gastamos muito com publicidade. Eu acho que, se foi anunciado um programa hoje e no segundo dia não houve repercussão, vai em rede nacional. O governo tem de dizer que a mídia não divulgou, porque se não disser, o silêncio se fecha sobre o fato. Dois dias de tolerância e coloca um ministro em rede nacional, não precisa ir a presidenta todo dia".

Se dependesse de Lula, portanto, entre outras providências "democratizantes", dia sim e outro também as redes de televisão, que são o que interessa, abririam espaço para autoridades do governo revelarem todas aquelas realizações importantíssimas para as quais os jornalistas não dão a menor bola. O que significa que, pelo menos enquanto o lulopetismo não conseguir impor seu ambicionado "controle social da mídia", haja verba para publicidade oficial.

São inegáveis, principalmente no campo social, importantes conquistas de 2003 para cá. Mas Lula não deixa por menos do que o delírio absoluto: "Tudo que você imaginar, o Brasil está entre os cinco (melhores/maiores, supõe-se) do mundo". Isso apesar de que "lá fora já não se fala bem da gente". Na vida real, nosso Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo a ONU, é o 84.º no ranking mundial. Em educação, ficamos também no fim da fila.

No capítulo de sua inestimável contribuição para melhorar o mundo, Lula recorreu a um péssimo exemplo: "O Mercosul, quando cheguei à Presidência, não valia nada". Hoje, dominado pelos bolivarianos, vale menos ainda, enquanto a Aliança do Pacífico caminha a passos largos para se tornar o maior polo de atração de investimentos da América Latina.

Lula tem uma receita de "faça o que eu digo..." para avançar no desenvolvimento econômico: "O que o governo tem de garantir é o aumento da poupança interna (não explicou como conciliar isso com o forte estímulo ao consumo), mais investimento do Estado (preferiu ignorar a clamorosa ineficácia na execução dos PACs), mais junção entre empresa privada e pública (desconsiderou o arraigado preconceito petista contra a iniciativa particular), mais capital externo para investir no setor produtivo" (omitiu as dificuldades criadas pelo Mercosul a acordos comerciais bilaterais, sem falar na crescente desconfiança dos investidores internacionais sobre as regras do jogo por aqui).

Lula fala ainda, como não poderia deixar de ser, sobre política. Garante que o PT "é um partido que o próprio povo dirige". Apesar disso, "a gente não pode permitir que meia dúzia de pessoas deformem esse partido". E "o povo"?

Agora, admite Lula, o negócio é campanha eleitoral. Mas confessa: "No primeiro turno todo mundo fala a mesma coisa, promete tudo para o povo".



11 de junho de 2014
Editorial O Estadão

COPA E ELEIÇÕES AUMENTAM A IMPRODUTIVIDADE DO CONGRESSO




Antes mesmo do início da Copa do Mundo, previsto para a próxima quinta-feira, o Congresso já entrou em ritmo de "recesso branco" no qual poucos projetos serão votados. Na última quinta-feira, a Câmara dos Deputados conseguiu votar apenas 12 dos 37 projetos em pauta. No Senado, somente oito das 17 questões foram apreciadas.


Os protestos de junho de 2013, durante a Copa das Confederações, levaram parlamentares e representantes do governo federal a debater 25 projetos de lei como resposta para atender aos anseios da população. Levantamento feito pelo Valor, na segunda-feira, mostrou que apenas sete foram aprovados. Há, portanto, muito trabalho à espera do Parlamento, que, com a Copa e as eleições, deve reduzir as suas atividades.



Eleita pela presidente Dilma Rousseff como principal resposta às manifestações de junho, a realização de um plebiscito para a reforma do sistema político-eleitoral sequer tramitou no Congresso. A definição de regras de proteção a usuários de serviços públicos também não andou, assim como os debates sobre a vinculação de receitas da União para segurança pública e a criação de passe livre para estudantes em todo o país.



Na lista dos projetos discutidos após os protestos de junho, poucos viraram leis. A responsabilização de pessoas jurídicas por corrupção e o fim do voto secreto nas cassações de mandatos foram, enfim, aprovados. O Congresso também desonerou as empresas de transporte coletivo do PIS-Pasep sobre o faturamento, destinou royalties do Pré-Sal para educação e saúde e deu aval ao programa Mais Médicos.



Outros projetos, como o Regime Especial de Incentivos para o Transporte Coletivo Urbano e Metropolitano de Passageiros (Reitup), a exigência de ficha limpa para servidores públicos, a caracterização da corrupção como crime hediondo e a destinação de 15% da receita líquida da União para a saúde, foram aprovados apenas em uma das casas legislativas. Com isso, ainda não tiveram votação final. Esses projetos estão, portanto, numa lista de respostas dos parlamentares que, como a totalidade das demandas feitas ao Executivo, pelos que foram à rua protestar, ainda não chegaram à população.



A tendência é que, durante o segundo semestre, o Legislativo vote projetos apenas em semanas de "esforço concentrado". A desaceleração das votações no Congresso pode fazer com que o Supremo tribunal Federal (STF) ocupe o espaço de dar respostas às demandas da população e seja novamente acusado de assumir prerrogativas do Parlamento.



Em 1º de julho de 2013, no primeiro dia do recesso do Judiciário, o ministro José Toffoli concedeu liminar dando 120 dias para o Congresso aprovar lei de proteção dos usuários de serviços públicos. Toffoli - que, hoje, preside o Tribunal Superior Eleitoral - atendeu a um pedido feito pela Ordem dos Advogados do Brasil no auge das manifestações de junho. "É inevitável observar que o caso em tela coincide com a atual pauta social por melhorias dos serviços públicos", disse o ministro.



A lei que beneficia os usuários de transporte deveria ter sido aprovada 120 dias depois da Emenda Constitucional no 19, que é de 1998. Ela está com um atraso de 16 anos.



Dois dias após a decisão, a Câmara aprovou com urgência um projeto sobre o assunto do ex-senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE) que estava parado desde 2002. O requerimento permitia levar o texto diretamente ao plenário, o que não foi feito. O relator do projeto, deputado Anthony Garotinho (PR-RJ), afirmou que está com o texto pronto, esperando pelo ingresso na pauta de votações.



As manifestações de junho levaram o Congresso a acelerar alguns projetos de lei que, em seguida, com o fim do calor diário dos protestos, voltaram a tramitar em ritmo mais lento. O Reitup foi aprovado em duas semanas, no auge das manifestações durante a Copa das Confederações. Depois, o texto foi para a Câmara e, sob pressão dos governos estaduais, não andou. A transformação da corrupção como crime hediondo também passou no Senado e parou na Câmara.

Amanhã, começam as convenções partidárias e, no segundo semestre, o Legislativo será esvaziado pelas campanhas.



Essas criam a possibilidade de novas manifestações, com novas demandas. A população deve voltar a fazer cobranças e espera-se que o Parlamento e o Executivo encontrem espaço para retomar votações, obras e projetos importantes para o país.


11 de junho de 2014
Editorial Valor Econômico