Ninguém precisa escrever pelos cotovelos para construir uma grande obra - e Aníbal Machado aí está para prová-lo. Ao morrer, faz hoje meio século, aos 69 anos de idade, o escritor mineiro não havia publicado mais do que uma dúzia de contos, reunidos em A Morte da Porta-estandarte e Outras Histórias, e um volume de poemas em prosa, relatos curtos e reflexões, Cadernos de João. Um mês antes, terminara seu livro mais ambicioso, o romance João Ternura, escrito ao longo de quatro décadas e editado postumamente, em 1965. Nos anos 90, inéditos e esparsos seriam recolhidos em Parque de Diversões e A Arte de Viver e Outras Artes.
Foi só - e foi bastante: cambaleante em sua magreza física (proporcional à do autor, diga-se), a obra de Aníbal Machado definitivamente para em pé na paisagem da literatura brasileira, e com muito mais firmeza do que tantas, imoderadas, enxundiosas, que nelas se esparramam. Meu predileto, mesmo não sendo o melhor (nada supera os contos), na cabeceira desde a adolescência: Cadernos de João, naquela esplêndida edição de 1957 que a José Olympio deveria relançar tal e qual, com as vinhetas ocre de Manuel Segalá. Quando acho no sebo, compro - e vou atrás de quem mereça.
À obra em papel se junta outra, imaterial porém não menos relevante: o generoso trabalho de divulgação de ideias e autores a que Aníbal Machado obstinadamente se entregou a vida inteira. Esforço difuso cuja face visível ficariam sendo as famosas "domingueiras" de Aníbal: as reuniões semanais que, de 1935 às vésperas da morte, ele promoveu em sua casa, primeiro na Francisco Sá, 12, em Copacabana, depois no 487 da Visconde de Pirajá, em Ipanema, ao lado das seis filhas (entre elas, Maria Clara Machado) e de Selma, a cunhada com quem se casou ao enviuvar de Aracy.
"Muitos novos receberam ali a iniciação literária e muito livro foi ali batizado", escreveu um dos habitués daquelas noitadas, Otto Maria Carpeaux. "Nenhuma estatística verificará jamais quantos livros importantes, bons ou sofríveis, qual parte da literatura brasileira entre 1930 e 1960, foram concebidos nas conversas daquela sala da rua Visconde de Pirajá; e quanta música boa se inspirou nos cantos folclóricos ali ouvidos."
Carpeaux dizia que Aníbal Machado, "animador sem-par", foi para o Brasil "o Colombo de novos continentes poéticos". Continentes que não se limitavam à poesia posta em versos: a sensibilidade e a inteligência do antenado Aníbal se interessaram igualmente pelas outras artes - em especial, as artes plásticas, o cinema e o teatro. Também nesse terreno foi ele um aplicado divulgador.
As domingueiras começaram sob a forma de jantares íntimos que a multiplicação de convivas logo tornou impraticáveis. O uísque e o garfo-e-faca deram lugar aos salgadinhos, à cerveja, à batida de limão e de maracujá. Não havia visitante ilustre que passasse pelo Rio sem ali fazer escala. Escritores como Albert Camus, a caminho da fama em 1949. Pablo Neruda, já celebridade em 1945. Gente de teatro, como o diretor Jean-Louis Barrault. Orson Welles, filmando no Brasil de 1942. Atrizes do porte de Janette Gaynor e Martine Carol.
Estrelas ou não, todos eram bem acolhidos. "Amigo de Aníbal Machado era quem chegasse, de qualquer país, de qualquer idade, de qualquer cor, de alta ou reduzida voltagem intelectual", escreveu Paulo Mendes Campos ao rememorar os forrobodós de Aníbal, a que não faltavam atrações como Vinicius de Moraes dançando boogie-woogie, Fernando Sabino impressionando a meninada com uma sessão de mágicas e Tônia Carrero, para todos a Mariinha, cintilando no auge de seus encantos. Quando ela entrava na sala, lembra Paulo, "só por um denodado esforço de compostura social a gente podia olhar para outra pessoa".
Não é de espantar que mesmo os penetras fizessem dos fuzuês anibalinos um programa sem erro nas noites cariocas de domingo. Em seu livro sobre Ipanema, Ruy Castro recuperou a deliciosa história de um desses bicões, que, sem saber com quem falava, propôs ao anfitrião um chope em lugar mais animado. "Não posso", explicou o escritor, "tenho que dormir com a dona da casa..."
Foi só - e foi bastante: cambaleante em sua magreza física (proporcional à do autor, diga-se), a obra de Aníbal Machado definitivamente para em pé na paisagem da literatura brasileira, e com muito mais firmeza do que tantas, imoderadas, enxundiosas, que nelas se esparramam. Meu predileto, mesmo não sendo o melhor (nada supera os contos), na cabeceira desde a adolescência: Cadernos de João, naquela esplêndida edição de 1957 que a José Olympio deveria relançar tal e qual, com as vinhetas ocre de Manuel Segalá. Quando acho no sebo, compro - e vou atrás de quem mereça.
À obra em papel se junta outra, imaterial porém não menos relevante: o generoso trabalho de divulgação de ideias e autores a que Aníbal Machado obstinadamente se entregou a vida inteira. Esforço difuso cuja face visível ficariam sendo as famosas "domingueiras" de Aníbal: as reuniões semanais que, de 1935 às vésperas da morte, ele promoveu em sua casa, primeiro na Francisco Sá, 12, em Copacabana, depois no 487 da Visconde de Pirajá, em Ipanema, ao lado das seis filhas (entre elas, Maria Clara Machado) e de Selma, a cunhada com quem se casou ao enviuvar de Aracy.
"Muitos novos receberam ali a iniciação literária e muito livro foi ali batizado", escreveu um dos habitués daquelas noitadas, Otto Maria Carpeaux. "Nenhuma estatística verificará jamais quantos livros importantes, bons ou sofríveis, qual parte da literatura brasileira entre 1930 e 1960, foram concebidos nas conversas daquela sala da rua Visconde de Pirajá; e quanta música boa se inspirou nos cantos folclóricos ali ouvidos."
Carpeaux dizia que Aníbal Machado, "animador sem-par", foi para o Brasil "o Colombo de novos continentes poéticos". Continentes que não se limitavam à poesia posta em versos: a sensibilidade e a inteligência do antenado Aníbal se interessaram igualmente pelas outras artes - em especial, as artes plásticas, o cinema e o teatro. Também nesse terreno foi ele um aplicado divulgador.
As domingueiras começaram sob a forma de jantares íntimos que a multiplicação de convivas logo tornou impraticáveis. O uísque e o garfo-e-faca deram lugar aos salgadinhos, à cerveja, à batida de limão e de maracujá. Não havia visitante ilustre que passasse pelo Rio sem ali fazer escala. Escritores como Albert Camus, a caminho da fama em 1949. Pablo Neruda, já celebridade em 1945. Gente de teatro, como o diretor Jean-Louis Barrault. Orson Welles, filmando no Brasil de 1942. Atrizes do porte de Janette Gaynor e Martine Carol.
Estrelas ou não, todos eram bem acolhidos. "Amigo de Aníbal Machado era quem chegasse, de qualquer país, de qualquer idade, de qualquer cor, de alta ou reduzida voltagem intelectual", escreveu Paulo Mendes Campos ao rememorar os forrobodós de Aníbal, a que não faltavam atrações como Vinicius de Moraes dançando boogie-woogie, Fernando Sabino impressionando a meninada com uma sessão de mágicas e Tônia Carrero, para todos a Mariinha, cintilando no auge de seus encantos. Quando ela entrava na sala, lembra Paulo, "só por um denodado esforço de compostura social a gente podia olhar para outra pessoa".
Não é de espantar que mesmo os penetras fizessem dos fuzuês anibalinos um programa sem erro nas noites cariocas de domingo. Em seu livro sobre Ipanema, Ruy Castro recuperou a deliciosa história de um desses bicões, que, sem saber com quem falava, propôs ao anfitrião um chope em lugar mais animado. "Não posso", explicou o escritor, "tenho que dormir com a dona da casa..."
19 de janeiro de 2014
Humberto Werneck, O Estado de S. Paulo