Se os inventores do rolezinho se associarem aos ideólogos do blackbloquismo, melhor nem pensar
A palavra rolezinho logo entrará nos dicionários. Substantivo masculino. Modalidade de manifestação pública instantânea – inventada por adolescentes de bairros pobres de São Paulo e normalmente convocada por meio das redes sociais –, que reúne dezenas ou centenas de participantes em shopping centers para confraternizar, chamar a atenção e se divertir; um rolezinho, como um elefante, incomoda muita gente; dois rolezinhos, como dois elefantes, incomodam muito mais, podendo mesmo tirar o sossego de dirigentes de associações comerciais e de Estado, apavorados(as) diante da possibilidade de que meia dúzia de rolezinhos, ou mesmo, sejamos paranoicos, milhares de rolezinhos, atrapalhem eventos esportivos de caráter internacional, como a Copa do Mundo, por exemplo. Etimologia: do francês roulê, particípio passado de rouler (sXII roueller ‘enrolar’) (mas aqui com o sentido de “dar um rolê”, significando “dar um passeio”, i.e., “dar uma banda por aí”, se é que você me entende, mas uma banda em grupo, com a molecada pisando forte e cantando rap), de rouelle, “rodela”, do latim rotella.
O rolezinho chega como a mais forte tendência do verão, rivalizando com os protestos de junho e com os black blocs, que escaldaram a temporada de inverno. O medo das autoridades está justamente nessa aproximação. Elas temem que os insufladores de rolezinhos se aliem às figuras cavernosas do blackbloquismo, gerando um híbrido dedicado a depredar vitrine e saquear geral. Aí, aconteceria nas ruas e nos shoppings do Brasil de hoje um casamento semelhante ao que se deu dentro das cadeias nos anos 1970. Naquela época, ao menos de acordo com alguns relatos, os presos políticos ensinaram rudimentos da disciplina bolchevique aos presos comuns e deram origem a crime organizado que hoje domina os presídios, o tráfico e as milícias. Se os inventores dos rolezinhos se associarem aos ideólogos do blackbloquismo, bem, melhor nem pensar (mas as autoridades não pensam em outra coisa).
Eis aí a contradição: a folia juvenil que anima os finais de semana da juventude das periferias é um filme de terror na imaginação daqueles que são encarregados de assegurar a ordem. As duas expectativas não têm como se conciliar. Possivelmente, o pau vai comer.
Aliás, já come. Imagens de policiais fustigando garotos com seus cassetetes (que já saem de fábrica dotados de preconceito de classe) estampam fartamente o noticiário. Não vem boa coisa por aí. Os shopping centers, templos do consumo sem janela alguma, iluminados o tempo todo por luzes ubíquas, lugares em que os corpos humanos não projetam sombra, posto que a luz brota de todas as paredes, vivem dias de apreensão. Império da mercadoria em que o sol (artificial) nunca se põe, espaços de confinamento voluntário em que os internos, como os prisioneiros de solitárias, não sabem se é dia ou se é noite lá fora, correm o risco de virar ringues dessa coisa disgusting e fora de moda que é a luta de classes. De um lado, a garotada que mal completou 18 anos; de outro, os brucutus da PM ou aqueles sujeitos de terno preto, treinados a dizer amém aos endinheirados e dirigir insultos (inclusive físicos) aos descapitalizados.
Diante de um simples rolezinho, a monumental empáfia das caixas-fortes do fetichismo se desfaz como fumaça. As torres inexpugnáveis, os caixotões de concreto armado, vigas de aço e vidro blindado, as fortalezas ultravigiadas que acomodam as grifes mais caras – e as mais bregas também – prometem segurança total aos clientes, mas não têm defesa contra meninos e meninas que, mesmo sem nadar em dinheiro, trafegam de cabeça erguida pelas galerias que existiriam para sentenciar sua exclusão.
Nesse ponto, a contradição vira fratura exposta. A menos que passem a cobrar ingresso na porta – R$ 50 por cabeça, que tal? –, os shoppings não têm como impedir legalmente a entrada de ninguém. Se, de uma hora para outra, as multidões que não compram naquelas lojas (supostamente chiques) resolvessem desfilar entre as vitrines, o ritual do consumo ficaria inviável. A clientela fugiria. As vendedoras baixariam as portas dos estabelecimentos. Os ricos teriam vergonha de comprar e os lojistas não teriam coragem de vender.
Por aí a gente entende: os shopping centers são como são, tão fechados, fortificados, ilhados, para segregar e, principalmente, para se esconder. Se os rolezinhos virarem um imenso rolezaço, muitos biombos virão abaixo. O temor das autoridades não é de todo infundado.
A palavra rolezinho logo entrará nos dicionários. Substantivo masculino. Modalidade de manifestação pública instantânea – inventada por adolescentes de bairros pobres de São Paulo e normalmente convocada por meio das redes sociais –, que reúne dezenas ou centenas de participantes em shopping centers para confraternizar, chamar a atenção e se divertir; um rolezinho, como um elefante, incomoda muita gente; dois rolezinhos, como dois elefantes, incomodam muito mais, podendo mesmo tirar o sossego de dirigentes de associações comerciais e de Estado, apavorados(as) diante da possibilidade de que meia dúzia de rolezinhos, ou mesmo, sejamos paranoicos, milhares de rolezinhos, atrapalhem eventos esportivos de caráter internacional, como a Copa do Mundo, por exemplo. Etimologia: do francês roulê, particípio passado de rouler (sXII roueller ‘enrolar’) (mas aqui com o sentido de “dar um rolê”, significando “dar um passeio”, i.e., “dar uma banda por aí”, se é que você me entende, mas uma banda em grupo, com a molecada pisando forte e cantando rap), de rouelle, “rodela”, do latim rotella.
O rolezinho chega como a mais forte tendência do verão, rivalizando com os protestos de junho e com os black blocs, que escaldaram a temporada de inverno. O medo das autoridades está justamente nessa aproximação. Elas temem que os insufladores de rolezinhos se aliem às figuras cavernosas do blackbloquismo, gerando um híbrido dedicado a depredar vitrine e saquear geral. Aí, aconteceria nas ruas e nos shoppings do Brasil de hoje um casamento semelhante ao que se deu dentro das cadeias nos anos 1970. Naquela época, ao menos de acordo com alguns relatos, os presos políticos ensinaram rudimentos da disciplina bolchevique aos presos comuns e deram origem a crime organizado que hoje domina os presídios, o tráfico e as milícias. Se os inventores dos rolezinhos se associarem aos ideólogos do blackbloquismo, bem, melhor nem pensar (mas as autoridades não pensam em outra coisa).
Eis aí a contradição: a folia juvenil que anima os finais de semana da juventude das periferias é um filme de terror na imaginação daqueles que são encarregados de assegurar a ordem. As duas expectativas não têm como se conciliar. Possivelmente, o pau vai comer.
Aliás, já come. Imagens de policiais fustigando garotos com seus cassetetes (que já saem de fábrica dotados de preconceito de classe) estampam fartamente o noticiário. Não vem boa coisa por aí. Os shopping centers, templos do consumo sem janela alguma, iluminados o tempo todo por luzes ubíquas, lugares em que os corpos humanos não projetam sombra, posto que a luz brota de todas as paredes, vivem dias de apreensão. Império da mercadoria em que o sol (artificial) nunca se põe, espaços de confinamento voluntário em que os internos, como os prisioneiros de solitárias, não sabem se é dia ou se é noite lá fora, correm o risco de virar ringues dessa coisa disgusting e fora de moda que é a luta de classes. De um lado, a garotada que mal completou 18 anos; de outro, os brucutus da PM ou aqueles sujeitos de terno preto, treinados a dizer amém aos endinheirados e dirigir insultos (inclusive físicos) aos descapitalizados.
Diante de um simples rolezinho, a monumental empáfia das caixas-fortes do fetichismo se desfaz como fumaça. As torres inexpugnáveis, os caixotões de concreto armado, vigas de aço e vidro blindado, as fortalezas ultravigiadas que acomodam as grifes mais caras – e as mais bregas também – prometem segurança total aos clientes, mas não têm defesa contra meninos e meninas que, mesmo sem nadar em dinheiro, trafegam de cabeça erguida pelas galerias que existiriam para sentenciar sua exclusão.
Nesse ponto, a contradição vira fratura exposta. A menos que passem a cobrar ingresso na porta – R$ 50 por cabeça, que tal? –, os shoppings não têm como impedir legalmente a entrada de ninguém. Se, de uma hora para outra, as multidões que não compram naquelas lojas (supostamente chiques) resolvessem desfilar entre as vitrines, o ritual do consumo ficaria inviável. A clientela fugiria. As vendedoras baixariam as portas dos estabelecimentos. Os ricos teriam vergonha de comprar e os lojistas não teriam coragem de vender.
Por aí a gente entende: os shopping centers são como são, tão fechados, fortificados, ilhados, para segregar e, principalmente, para se esconder. Se os rolezinhos virarem um imenso rolezaço, muitos biombos virão abaixo. O temor das autoridades não é de todo infundado.
19 de janeiro de 2014
Eugênio Bucci, Revista Época
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