Dos repetidos rompimentos das barragens de contenção de rejeitos de mineração “a montante de comunidades” soterrando populações indefesas aos repetidos rompimentos das barragens de contenção de gastos públicos criminosos “a montante de economias nacionais” soterrando vidas inteiras de trabalho duro de uma ou mais gerações de inocentes; para todos os seus fracassos e para todas as suas catástrofes, seja qual for a área envolvida, o brasileiro, como um autômato com defeito no software, repete mecanicamente a mesma resposta: precisamos de mais leis, precisamos de mais regulamentos, precisamos de mais fiscalização, precisamos de mais verbas (e impostos)...
Precisamos, enfim, de mais Estado.
Quatro meses antes do desastre de Mariana o Ibama ordenou o embargo da barragem do Fundão. Ha 14.966 “bombas” semelhantes espalhadas pelo território nacional, segundo a última contagem que encontrei na imprensa.
Dezesseis delas, em 14 municípios de quatro estados diferentes, já oficialmente catalogadas como “de alto risco” ameaçando diretamente 540 mil pessoas nas bacias do Amazonas, do Paraguai e do moribundo São Francisco.
Entre todos os brasileiros que assistem ou mesmo que protagonizam as longas e circunspectas discussões televisivas sobre as “soluções” para os problemas crônicos que o desastre do dia traz eventualmente à tona, não ha um único que não saiba que fiscalização é só mais um bom negócio que se outorga aos amigos do rei no pais do petrolão; que tudo que os fiscais constatam ou determinam – da
imposição de providências preventivas às multas pelas lamas derramadas e vidas perdidas – pode ser livremente comprado e vendido no mercado ou, no mais das vezes, não passa de jogo de cena pois, em tudo que diz respeito à grande mineração, às grandes inundações hidrelétricas, a toda a sujeira que o petróleo espalha na terra, no mar e no ar, aos futuros acidentes nucleares e a tudo que é grande o bastante para ser realmente ameaçador neste pais, o fiscal e o fiscalizado são a mesma pessoa; o mesmo onipresente Estado que se insiste em apontar como a solução dos problemas de que ele próprio é a causa.
Quem multa não cobra e quem é multado não paga porque os dois são a mesma pessoa jurídica, e todo brasileiro, sem uma única exceção, está careca de saber disso.
Mas continuam todos, como se nada houvesse, comemorando as “multas milionárias” que nunca serão pagas, os "planos de recuperação ambiental” que nunca serão executados e os novos e “severos” regulamentos que – “agora sim” – vão “resolver” o problema.
A questão é de um óbvio ululante e esta coleção rigorosamente “holística” de fracassos que o Brasil vem colhendo é a prova dela: quando o Estado e o Capital são uma só e a mesma entidade, todos e tudo o mais é só comida pra ser mastigada.
Mas como o mesmo Estado que miserabiliza é quem atira a migalha que mantém o nariz do miserável um centímetro acima da lama; como a mesma mineradora que desencadeia o tsunami e depreda o ambiente em volta até o esgotamento e a esterilidade absoluta transforma-se, por isso mesmo, na única alternativa de emprego; como o Estado que arrebenta a economia é o provedor da única ilha -- a do funcionalismo -- que nunca afunda na inundação, ninguém, o desafia; ninguém põe o dedo na ferida.
A farsa continua porque a fera é vingativa e ninguém sabe o dia de amanhã...
A farsa continua porque a fera é vingativa e ninguém sabe o dia de amanhã...
E assim vamos, de desastre em desastre, em marcha batida para o desastre final.
A região de Mariana e adjacências vem sendo selvagemente depredada pela mineração ha 300 anos. Foi impossível mostrar o desastre do dia sem deixar entrever, nas mesmas cenas aéreas, a paisagem lunar daquela coleção de crateras gigantescas e insanáveis. Nem um milênio de paz dará jeito naquilo.
Os repórteres e os ambientalistas que há três semanas não saem da ribalta fazem parte dessa geração que se acostumou a pensar que eucalipto é natureza porque "é verde" e que a carne a venda nos supermercados não veio de animais que estiveram vivos.
Mas muito pior que o avanço da lama por aquela corrente esquálida daquele esqueleto de rio que não sai da telinha ha três semanas, é o deserto que se enxerga até onde a vista alcança em ambos os lados do que foi o legendário Baixo rio Doce, o divisor de fauna entre os biomas da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica, recoberto, até ha pouco, pela mãe de todas as florestas deste paraíso luxuriante da botânica que já foi o continente sul americano; o habitat das mil e uma espécies de beija-flores de Augusto Ruschi, o herói esquecido de um Brasil que amava passarinhos.
O mundo sabe; a História confirma: não ha remissão de nenhuma das nossas crises – a ambiental, a econômica ou a moral – fora da conquista e da submissão do Estado pela cidadania. Mas não ha nenhum sinal dessa virada no horizonte.
Os dicionários da internet definem assim a Síndrome de Estocolmo:
É uma descrição bastante precisa do presente estado da relação do povo brasileiro com o Estado que o sequestrou.