Rubem Alves é uma dessas pessoas difíceis de rotular. Seria um psicanalista ? Ou um teólogo ? Por acaso um pedagogo, um poeta, escritor ? O problema é que ele é tudo isso, mas, se perguntado, tenho certeza de que acrescentaria, ao gosto de Luiz Vieira: quer saber ? Sou mesmo é um menino passarinho. Fiquei meio órfão quando ele deixou de escrever as colunas semanais na Folha de São Paulo, mas continuo devorando seus livros com o mesmo prazer com que saboreava o holodetz da minha avó.
Rubem usa uma imagem interessante sobre as tarefas da educação. De um modo geral, ele prefere a linguagem concisa das imagens. Diz que o corpo carrega duas caixas. Na mão direita, está a caixa de ferramentas. É lá que ficam os meios que garantem nossa sobrevivência física. São conhecimentos práticos, acumulados em séculos de experimentações, passados de geração em geração e enriquecidos com novas descobertas. São essenciais, mas insuficientes para uma vida plena. Para completar o painel humano, é preciso olhar para a mão esquerda, que é onde fica a caixa de brinquedos. Uma caixa, diz Rubem, de inutilidades. Mas que inutilidades ! Mexer nela é esbarrar com um poema de Mário Quintana, uma música de Tom Jobim, uma cantata de Bach, um aroma de jasmim, um acalanto escondido na memória, uma brisa morna.
Num livrinho precioso, o italiano Elio Vittorini diz saber o que é ser feliz na vida. Entre outras imagens, evoca a alegria “de uma tarde de verão, lendo um livro de aventuras canibalescas, seminu em uma chaise longue, na frente de uma casa de colina com vista para o mar”. Nenhum desses brinquedos cura um resfriado, pavimenta uma estrada ou ergue um arranha-céu. No entanto, elimine-se a caixa gauche e nos aproximaremos do horror de um quadro de Hieronymus Bosch. O homem-ferramenta pode nos jogar num freezer sensitivo, empurrar o planeta para um deserto de ideias e de vida.
Quem ouve Elis Regina sabe do que estou falando. Ela voltou a ser notícia esta semana. Está em fase de montagem a peça Elis, a musical, que vai contar um pouco da vida da genial Pimentinha. Não precisava de muito para mergulhar de cabeça nas letras das canções que interpretava. Vê-la cantando Atrás da porta, do Chico Buarque, ou Cadeira vazia, do Lupicínio Rodrigues, é uma experiência da mão esquerda. A narrativa poética transforma-se numa usina sensorial, criando um universo que foge das amarras do tempo e, sem precisarmos entender razões ou motivos, parece completar o vazio que nem sabíamos que existia. Artes da caixa de brinquedos.
BILLIE HOLIDAY
Às vezes, o brinquedo – quem disse que a vida é uma linha reta ? – namora a ferramenta. Em 1939, uma jovem de vinte e quatro anos se apresentava no Café Society, único clube noturno de New York que não segregava os frequentadores negros. Num dado momento, o blues calou todas as vozes. A melodia, praticamente falada, numa impressionante modulação de sentimentos, irrompia em repetidas ondas de choque. “Árvores do sul dão uma fruta estranha; folha ou raiz, em sangue se banha”. Aos poucos, as metáforas vão ficando cada vez mais claras.
A jovem Billie Holiday entrava para a História com a magistral interpretação de Strange fruit, criada por Abel Meeropol, vigoroso militante antirracista. O público ficou paralisado. Era a primeira vez que se mostrava em música o linchamento de negros no sul dos Estados Unidos, prática hedionda muito comum naquela época. Existem fotos onde os corpos dos linchados aparecem ao lado de alegres espectadores, que parecem estar num parque de diversões. Belo programa em noites de sábado!
Strange fruit ficou para sempre associado a Lady Day. Rádios se recusavam a tocá-la, gravadoras se recusavam a incluí-la em discos. Apesar dos solavancos, é um registro extraordinário do impacto que provoca o casamento das duas caixas. O sentimento como veículo de transformação da realidade. Não se trata de um abracadabra. Apenas acho que homens que também brincam – ou que não se levam tão a sério – estão mais aparelhados para compreender e conduzir mudanças e revoluções duráveis. Sisudez não é sinônimo de seriedade. Os carrancudos, os de maus bofes, precisam, urgente, de um bom cafuné.
O racismo, poeticamente denunciado por Meeropol, não morreu. Semana passada lembramos a célebre Marcha a Washington. Cerca de 200 mil pessoas se manifestaram na capital norte-americana contra a segregação e pela universalização dos direitos civis.
O reverendo Martin Luther King Jr. tinha um sonho pacífico, que está longe de se realizar. Embora a face selvagem do racismo nos Estados Unidos tenha se retraído, a discriminação é mutante como o vírus da gripe. É bom lembrar que, em 1963, ainda era ilegal, em muitos estados, negros e brancos se casarem. Exatamente como nas leis raciais da Alemanha nazista. Já não há linchamentos de negros, mas a taxa de desemprego entre eles é quase o dobro da que se registra na população branca. Já não se proíbem negros nas universidades, mas o nível educacional da população negra é sensivelmente inferior ao da branca.
A desigualdade também se manifesta no perfil de renda, no índice de encarceramento e, sobretudo, na cultura do ódio e da desconfiança. Tal como no Brasil, a chance de um negro ser parado numa blitz policial é sensivelmente maior do que a de um branco. Foi essa disposição belicosa que acabou vitimando o jovem Trayvon Martin, assassinado por um segurança que “desconfiou” de suas atitudes num condomínio residencial. O criminoso foi absolvido.
OBAMA PRESIDENTE
O fato de um negro ocupar a Casa Branca tem um forte caráter simbólico, mas, lamentavelmente, não passa disso. Continua, como qualquer branco o faria, refém dos grandes interesses corporativos que comandam as estratégias do país, recuou da promessa de fechar a prisão de Guantanamo, prepara-se para uma intervenção na Síria, mesmo sem ter conhecimento do relatório dos inspetores da ONU e à revelia da comunidade internacional (perece ter se esquecido da patética apresentação do general Colin Powell na ONU, para “provar” a existência de armas de destruição em massa no Iraque). Alguém já disse que, enquanto o revendo Luther King disse “I have a dream”, o presidente Obama poderia perfeitamente dizer “I have a drone”. Boa imagem, diria o Rubem Alves.
O que acontece nos Estados Unidos não é motivo para comparações favoráveis ao Brasilzão velho de guerra. Temos nossa cota de preconceito e ódio racial, e ela não é nada pequena. Racismo “cordial” é conosco. O problema vai adiante. Na chegada dos médicos cubanos ao Rio Grande do Norte, uma jornalista olhou com desdém e disse que uma delas “mais parecia uma doméstica”. Pois é, a caixa de brinquedos também pode produzir seus monstros.
07 de setembro de 2013
Jacques Gruman