Evidente em qualquer mesa de bar, manifestação de rua ou post no Facebook, a colérica divisão entre “coxinhas” e “petralhas” precisa ser encarada como um perigo para o país. A avaliação é do filósofo Roberto Romano, professor de Ética Política da Unicamp, que nesta entrevista também desconstrói os rótulos impostos aos manifestantes do último dia 15.
Ouvia-se muito que o brasileiro, em comparação aos europeus ou mesmo aos vizinhos da Argentina, era um povo passivo, pouco afeito a protestos. Isso mudou?
Isso é uma inverdade. Desde os inconfidentes mineiros, passando pela Conjuração Baiana e os posteriores movimentos separatistas no Norte, no Nordeste, no Centro-Oeste e no Sul, temos uma tradição de multidões contra o poder central. No século 20, surgem mobilizações de líderes políticos – é o caso de Getúlio Vargas –, depois São Paulo tenta romper com a federação, a UNE se mobiliza contra a ditadura varguista, o povo defende o mandato de Juscelino nas ruas, surge a Campanha da Legalidade, a Marcha da Família, a Passeata dos Cem Mil, os movimentos pela anistia, as Diretas Já, os protestos contra Sarney, o Fora Collor. É um equívoco dizer que o brasileiro é desacostumado a manifestações políticas.
Mas, nos governos FHC e Lula, os protestos se atenuaram, não?
Houve protestos de dimensões menores, gritos de “Fora FHC” e “Fora Lula”, mas a estabilidade da moeda tende a aplacar as massas. A inflação é um desagregador político muito forte. Depois daquela inflação delirante no período Collor e Sarney, em que a população mal tinha dinheiro para comprar pão no fim do mês, houve um refluxo das massas. Agora, no segundo mandato de Dilma, estamos caminhando para uma inflação de 8% que, somada à alta percepção de corrupção, provoca grande agitação popular. Não existe garantia de estabilidade política com inflação alta. Nos últimos dias do governo Sarney, ele não mandava nem no mordomo do Palácio.
Defensores do governo dizem que os protestos do último dia 15 eram formados por uma “classe média de direita”. O senhor concorda?
É um sofisma dizer que a classe média é de direita. Também me parece falso afirmar que o trabalhador é de esquerda. Essas divisões baseadas em ideologia, não em análise científica, são sempre fadadas ao desastre. A massa, por excelência, é sempre fluida. Não é possível encontrar nela a consistência que se percebe em um partido político ou em uma igreja. Os institutos de pesquisa podem ter desenhado algumas linhas sobre o perfil dos manifestantes, mas a totalidade da massa é incognoscível. Gostaria de saber, por exemplo, quantos daqueles manifestantes já votaram no PT – não na última eleição, mas em pleitos anteriores. Tenho amigos que ajudaram a eleger Lula, mas, desta vez, votaram em Aécio Neves e foram às ruas se manifestar. Eles agora são de direita porque têm restrições ao PT?
Por outro lado, é inegável que a extrema-direita, com pautas conservadoras e contrárias às minorias, se fortaleceu no Congresso em meio à onda antipetista.
Evidente que sim. Porque há uma força de centro-esquerda, o PSDB, e outra mais à esquerda, o PT, se digladiando e se boicotando reciprocamente desde que FHC assumiu a Presidência. Se um jovem procurar o PSDB, ouvirá que os petistas são todos corruptos autoritários e analfabetos. Se ele procurar o PT, ouvirá que os tucanos são todos privatistas neoliberais. Enquanto essas forças políticas – que lutaram juntas contra a ditadura, mas hoje preferem governar com Sarney e Collor em vez de se aliarem – trabalham para se destruírem, o que ocorre? Aquele jovem vai buscar outra opção, e a direita vem se cacifando como alternativa.
Quais são os riscos dessa fúria entre dilmistas e antidilmistas?
Quando a sociedade atinge esse nível de divisão, quando ela é claramente dividida em dois, o primeiro reflexo é o princípio da autoridade se esfarelar. Porque uma das partes sempre dirá que a autoridade fala em nome da outra parte, e não em nome de todos. No Brasil, os panelaços já ilustram esse desdém à autoridade, que nem sequer é ouvida. Quando você deixa de obedecer a autoridade porque considera sua própria consciência mais importante, você acaba com a possibilidade de o outro existir.
Parece o cenário de um golpe…
Olha, quando há uma divisão maniqueísta entre pessoas que só confiam na própria doutrina, ideia, igreja ou partido, não é absurdo pensar em enfrentamento civil. Um dos dogmas mais tolos que se espalhou pelo Brasil é o de que nunca mais haverá um golpe de Estado. A Constituição prevê como função das Forças Armadas a garantia da ordem interna do país. Os militares perderam poder político nos últimos anos, mas, se a crise avançar para uma rebeldia civil, caberá a eles intervir. E a desculpa para todos os golpes sempre foi a anarquia da sociedade, a corrupção política e a subversão. Um golpe de Estado seria uma tragédia, mas, infelizmente, não é impossível.
(entrevista enviada pelo comentarista Mário Assis)
25 de março de 2015
Paulo Germano
Zero Hora