"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 24 de março de 2015

HISTÓRICO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA (PARTE 2)


 

Voltando ao Partido Comunista do Brasil: como já vimos, desde que foi constituído, em fevereiro de 1962, passou a defender a violência armada como a principal forma de luta para a tomada do poder. Nesse sentido, em seuManifesto-Programa afirmava que as classes dominantes tornavam inviável o caminho pacífico da revolução e que as massas operárias e camponesas teriam que recorrer a todas as formas de luta. Isso em 1962, no governo Jango!
A área de floresta densa, no Araguaia, de cerca de 7 mil quilômetros quadrados em que os militantes do PC do B para ali deslocados começaram a se fixar, abrigava, então, uma população rarefeita de cerca de 20 mil pessoas. Estima-se que aí estivessem, em abril de 1972, quando foram iniciadas as hostilidades, cerca de 70 militantes dirigidos por uma “Comissão Militar” e divididos em três Destacamentos. Isto significa que quando os contingentes das Forças Armadas chegaram à área, os militantes do PC do B já a conheciam bem e nela se movimentavam com facilidade.
Coerente com o modelo revolucionário importado da China, alguns se estabeleceram na área com diversos tipos de comércio, como farmácias e pequenos armazéns, o que facilitava o contato com a população local. Também foi utilizado um barco, para a compra e venda de artigos junto às populações ribeirinhas do rio Araguaia. Isso permitia os tipos de levantamentos desejados, bem como a instalação de um precário sistema de Inteligência, objetivando o controle e identificação de pessoas estranhas chegadas à região.
Tudo isso foi mantido no mais absoluto sigilo até o início de 1972, buscando preservar as atividades do PC do B para a implantação da “Área Estratégica”. Sigilo não apenas externo como também dentro do próprio PC do B.
Nesse sentido, as normas da direção do partido para manter a operação sob rigoroso sigilo, definiam:
- o conhecimento da operação por um reduzido número de membros, inclusive aqueles pertencentes ao Comitê Central;
- o recrutamento e o deslocamento para a região eram feitos sem que o militante tomasse, a priori, conhecimento de seu destino;
- aos militantes introduzidos na área não era permitido o afastamento, a não ser em casos excepcionais de doença;
- não realização de trabalho político-revolucionário junto à população local antes da eclosão efetiva da violência armada.
A partir do ano de 1970 o fluxo de militantes do partido enviados para o Sul do Pará aumentou consideravelmente, com o objetivo de tomarem conhecimento detalhado da região, adaptação à vida local e realização de um continuado trabalho de massa junto à população da área, de cunho eminentemente social, sem aparentar conotações políticas, como acima foi escrito.
A quase totalidade desses militantes era composta de jovens, na faixa etária de 20 a 28 anos de idade, quase todos estudantes universitários e secundaristas (mais de 50%) que, nas cidades, participavam do Movimento Estudantil.
A formação desses elementos, ligados às áreas de saúde, educação e agricultura, considerando as atividades desenvolvidas pelo partido na região, facilitavam em muito o acesso ao local e ao precário trabalho de massa desenvolvido, permitindo uma boa aceitação pelos habitantes da área.
Antes do deslocamento para a Selva Amazônica os militantes eram conduzidos a São Paulo, onde, em aparelhos do partido, eram entrevistados por um membro da Comissão Executiva conhecedor da operação. Aos estudantes recrutados era dito que face à impossibilidade de uma atuação política nas cidades em que viviam, dada a iminência de serem presos, por segurança deles próprios e do partido, seriam deslocados para outras áreas de atuação.
Esses jovens – homens e mulheres - eram conduzidos à área estratégica sempre por “Dª Maria” – Elza Monerat, uma velhinha simpática, acima de qualquer suspeita.
É verdade que os primeiros elementos chegados à chamada “Área Estratégica” buscaram e obtiveram uma efetiva integração com os moradores locais, após estudarem seus hábitos e costumes. Em 1970, o PC do B já possuía glebas de terras espalhadas por diversos locais. Elas, no futuro, serviriam de pontos de apoio, onde os guerrilheiros passariam a viver com fachada legal.
A partir de 1971 foi dada prioridade às atividades de treinamento físico e instrução militar. A prioridade para esse tipo de trabalho obedeceu a uma resolução da Executiva Nacional do PC do B, no sentido de que fosse adotada uma estrutura militarizada para o movimento que passou a ser constituído por Destacamentos com o efetivo, cada um, de 23 homens (um comandante, um vice-comandante e 21 membros divididos em três Grupos).
O trabalho de formação política dos guerrilheiros, que consistia na leitura e discussão dos documentos elaborados pelo partido, além da obrigatoriedade de ouvir, diariamente, as transmissões em português daRádio Tirana, da Albânia, sempre existiu.
Quando foram iniciados os confrontos, em abril de 1972, a “Comissão Militar” decidiu alterar sua tática, passando a fazer propaganda revolucionária ostensivamente, não em nome do Partido Comunista do Brasil, mas de uma pseudo-entidade denominada “União para a Liberdade e pelos Direitos do Povo” (ULDP), com base em um programa político de 27 pontos, elaborado pela direção do partido, voltado para as peculiaridades da região e difundido à população local.
Dentre os documentos básicos da “União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo”, fazia parte um programa de reivindicações mínimas que continha um levantamento dos principais problemas da área, dava sugestões para a solução desses problemas e concitava a população a unir-se à luta pela implantação de um Governo Popular Revolucionário. Ora, para a maioria da população analfabeta da região, isso era latim...
Por outro lado, o “Regulamento da Justiça Militar Revolucionária”, redigido pela “Comissão Militar”, definia as penas para as faltas consideradas graves cometidas pelos guerrilheiros, bem como para os “inimigos do povo”capturados. A Justiça Militar Revolucionária constituía-se de um Tribunal Militar Revolucionário das Forças Guerrilheiras, composto por dois membros do Birô Político da Zona Guerrilheira, um membro da “Comissão Militar”, e o Comandante ou Vice-Comandante do Destacamento a que pertencesse o guerrilheiro a ser julgado.
Com base nesse Regulamento, três moradores da região e pelo menos dois guerrilheiros foram assassinados. Ou melhor, “justiçados”, segundo o linguajar da guerrilha.
O Regulamento Militar definia a estrutura das forças guerrilheiras, pelo menos para a fase inicial das operações. Essa estrutura era composta de uma “Comissão Militar”, sem constituição definida, designada pelo Birô Político da região de guerrilha, e a ele subordinado; pelos Destacamentos que operavam sob a direção da “Comissão Militar”, com uma área determinada de operações; e pelos Grupos que integravam os Destacamentos.
O Destacamento correspondia a uma unidade das Forças Guerrilheiras. Estruturava-se com um Comandante, um Vice-Comandante e três grupos de 7 guerrilheiros cada um, que dispunham de relativa autonomia. Em princípio, não era previsto um número fixo de Destacamentos que aumentariam ou diminuiriam de conformidade com o desenvolvimento da luta guerrilheira.
O Grupo constituía a unidade militar de base das Forças Guerrilheiras. Era composto por um Chefe, um substituto eventual e 5 combatentes.
A mencionada
 “União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo”, denominação fictícia da guerrilha, foi totalmente dizimada pelos contra-rebeldes, até meados de 1974.
Diversos militantes do partido, recrutados para a aventura do Sul do Pará, ao tomarem conhecimento da área logo manifestaram desejo de abandoná-la, vendo-se impedidos, no entanto, por três razões: as ameaças dos dirigentes locais do partido; o receio de ficarem perdidos na selva; e o receio de serem capturados pelas forças legais.
Dentre esses elementos, além de Pedro de Albuquerque Neto e sua esposa “Ana”- Teresa Cristina de Albuquerque, outros 8 guerrilheiros abandonaram a área e a guerrilha por motivos diversos. 
Os dois últimos que conseguiram sair da área, também abandonando a guerrilha, foram “Joaquim” – Ângelo Arroio, membro da “Comissão Militar” e “Zeca” – Micheas Gomes de Almeida (que em 2003 deu diversas entrevistas à imprensa), juntos, no início de 1974, no decorrer da terceira e última fase das hostilidades. Ângelo Arroio viria a ser morto em 1976, em São Paulo, num aparelho do PC do B, onde se realizava uma reunião do Comitê Central.
É de observar-se a diferença de tratamento dado pela direção da guerrilha a Teresa Cristina de Albuquerque, grávida - impondo-lhe a realização de um aborto -, com o dispensado a Criméia Alice Schimidt de Almeida, também grávida, autorizada a voltar para São Paulo. Teresa era uma desconhecida militante de uma base estudantil do Nordeste. Criméia, no entanto, era a mulher de “Zé Carlos”- André Grabois - comandante de um Destacamento – e, portanto, nora do Comandante Militar da guerrilha, Mauricio Grabois. 
Segundo a doutrina científica que a guerrilha do PC do B desejava implantar, todos seriam iguais. Uns, todavia, desde o início, eram “mais iguais”, segundo a histórica expressão de George Orwell no livro “A Revolução dos Bichos”. 
Quanto ao chamado trabalho de massa desenvolvido junto aos habitantes da área, segundo a publicação“Guerrilha do Araguaia” (sem menção ao nome do autor), da Editora Anita Garibaldi, um empreendimento do PC do B, dos habitantes da região foram incorporados aos Destacamentos guerrilheiros uma pessoa em dezembro de 1972, outra em abril de 1973 e 9 a partir de junho de 1973, num total de 11 pessoas. Índice que pode ser considerado excepcionalmente reduzido, levando-se ainda em consideração que, dessas pessoas, duas desertaram da guerrilha em fins de outubro de 1973, e outras duas em novembro e dezembro de 1973.
Todavia, já foi dito que no período que antecedeu as hostilidades e mesmo depois do seu início, diversos moradores da região foram recrutados para a guerrilha ou simplesmente colaboraram com ela, realizando pequenas tarefas, como, por exemplo, ceder mantimentos aos guerrilheiros.
Considerando as naturais despesas para a instalação inicial de campos de treinamento - aquisição de pontos comerciais e glebas de terras, a distribuição de recursos financeiros entre os Destacamentos, além dos recursos necessários à toda uma sistemática de recrutamento e viagens de militantes para a área, bem como de dirigentes para dentro e fora da área -, as contribuições financeiras de possíveis aliados do partido, em território nacional, seriam insuficientes para atender a todas essas necessidades, sendo lícito especular que os recursos destinados à montagem da “experiência”, iniciada em março de 1964, com a ida de militantes para cursar aAcademia Militar de Pequim, e concluída 10 anos depois, pelo seu desmantelamento total, teriam sua origem na China ou até mesmo na Albânia, país mais atrasado e pobre da Europa.
Dentre os militantes do partido que desenvolveram atividades no Sul do Pará e direta e indiretamente participaram da implantação das bases guerrilheiras, os seguintes foram adestrados militarmente na China, segundo matérias publicadas na Folha de São Paulo dos dias 21 e 22 de novembro de 1968:
“Ari” - Arildo Valadão, “Cazuza” – Miguel Pereira dos Santos, “Dª Maria” - Elza de Lima Monerat, “Daniel” - Daniel Ribeiro Callado, “Gil” - Manoel José Nurchis,“Joaquim” - Ângelo Arroio, “Joca” - João Bispo Ferreira Borges, “Juca” – João Carlos Haas Sobrinho, “Nelito” - Nelson Lima Piauhy Dourado,“Nunes” - Divino Ferreira de Souza, “Osvaldão” - Osvaldo Orlando da Costa, “Zé Carlos” - André Grabois, “Zé Fogoió” ou “Zeca” - José Humberto Bronca, ”Zeca” ou “Zezinho” - Micheas Gomes de Almeida,.
Com exceção de
 “Dª Maria” e de “Zeca” ou “Zezinho”, que desertaram, todos foram mortos.
Além dos “justiçamentos” dos guerrilheiros “Mundico” e“Paulo”, alguns habitantes da região foram também“justiçados” pelos guerrilheiros sob a acusação de colaboração com a repressão. Foram eles Pedro Mineiro, João Pereira e Osmar.
Parece desnecessário discorrer sobre os efeitos altamente negativos sobre o PC do B, junto à esquerda e a seus próprios militantes - estes, quando foram informados - do desfecho da Guerrilha do Araguaia, bem como, paralelamente – visando eliminar um possível apoio, de fora, à guerrilha - do desmantelamento de diversos Comitês Estaduais do partido nas cidades, com a prisão de um grande número de dirigentes e provados militantes, e morte de alguns.
Sobre tudo isso, a direção do PC do B manteve um completo silêncio. Somente em agosto de 1976, mais de dois anos após o fracasso da experiência (como o PC do B se referia à guerrilha) é que a Comissão Executiva decidiu divulgar um documento, dirigido às bases do partido, abordando o tema. Esse documento tinha um título extemporâneo: “Gloriosa Jornada de Luta”.Comunicava que a guerrilha havia chegado ao seu fim, não sob a forma de aniquilamento total ou deserção dos militantes nela engajados, mas sob a forma de “um recuo e uma dispersão temporária”. Esse Comunicado definiu a luta no Araguaia como “um conflito regional entre posseiros” e não como um ato perpetrado pela alta direção partidária desde fevereiro de 1962, quando o partido foi constituído. 
Os familiares dos militantes deslocados para a Selva Amazônica que os promotores da guerrilha, desde o primeiro momento, sabiam que estavam mortos ou desaparecidos, NUNCA foram informados de nada pelos dirigentes partidários.
Embora derrotados na Selva Amazônica e politicamente desmantelados nos centros urbanos, os dirigentes do partido não deixaram de considerar válida a “experiência”do Araguaia e, ainda no ano de 1976, elaboraram um planejamento para o prosseguimento da violência armada no campo, em longo prazo, procurando tirar ensinamentos dos erros passados.
Esse planejamento não teve conseqüências, uma vez que em dezembro de 1976, quando ele seria discutido, os Órgãos de Segurança desmantelaram uma reunião da Executiva Nacional e do Comitê Central do PC do B, em São Paulo - operação que o partido passou a denominar“Chacina da Lapa”-. Nessa ocasião, diversos dirigentes foram presos e outros mortos e diversos documentos relativos ao planejamento da pretendida continuidade da experiência do Araguaia foram apreendidos.
Devido a ocultação, pela direção do PC do B, dos fatos relativos ao Araguaia, no início dos anos 80 um grupo de militantes abandonou o partido - inclusive o entãodeputado José Genoino Neto, que viria a ser condenado pelo STF por corrupção - e constituiram o PRC - Partido Revolucionário Comunista, cuja existência foi efêmera.
A direção do PC do B NUNCA fez uma autocrítica da Guerrilha do Araguaia, como se nada houvesse acontecido. Continua insistindo em colocar a culpa pelas mortes, prisões e desaparecimentos, na repressão desencadeada pela ditadura militar “que atuaram como bárbaros”. Em 1982, no 6º Congresso do PC do B – na realidade, o primeiro a ser realizado desde a constituição do partido, em fevereiro de 1962 -, com o partido já depurado dos militantes que o abandonaram, a fragorosa derrota foi, cinicamente, atribuída a “desacertos e insuficiências de natureza militar”. Juntamente a essa explicação, o Congresso voltou a criticar o maoísmo, e a Albânia foi apontada como o único país que permanecia fiel ao socialismo.
Recorde-se que, curiosamente, apenas 6 anos antes, em 1976, o líder chinês, Mao-Tsetung, quando de sua morte, havia sido apontado pela direção do PC do B em artigo publicado pelo jornal do partido “A Classe Operária”, de setembro desse ano, como “a personalidade mais destacada do movimento comunista mundial contemporâneo”.
Dois anos depois, em 1978, no entanto, as análises científicas partidárias passaram a propalar para as bases que o kamarada Mao “nunca havia sido um marxista”; que nunca passara de “um líder nacionalista e democrático pequeno-burguês”.
Antes disso, a VII Conferência Nacional do PC do B, que reuniu o que restava do Comitê Central do partido, realizada em... Tirana, capital da Albânia, em duas partes – outubro de 1978 e janeiro de 1979 – iria decretar “o caráter pernicioso da influência de Mao-Tsetung”, transformando-o, de um dia para o outro, em revisionista, defensor da conciliação com as burguesias nacionais e, portanto, antimarxista-leninista.
Registre-se que os delegados a essa VII Conferência, ao invés de serem eleitos pelos Comitês Regionais, como é de praxe em todos os partidos comunistas do mundo e como, aliás, consta do Estatuto do PC do B, foram
selecionados pelo próprio Comitê Central que, dessa forma, preveniu-se contra prováveis posicionamentos políticos antagônicos.
Até então, desde fevereiro de 1962, quando foi criado, o PC do B não havia realizado nenhum Congresso, o que não impedia que o Comitê Central remanescente afirmasse que “o partido é uma organização centralizada. Entre um e outro Congresso, o CC representa o partido. A unidade se faz em torno do CC”. Como o 1º Congresso do PC do B somente foi realizado em janeiro de 1982, 21 anos depois de sua fundação, durante todo esse tempo, o Comitê Central funcionou com dirigentes cooptados pelo próprio Comitê Central. 

Ou seja, o Partido Comunista do Brasil, após as demoradas análises científicas de seus dirigentes, deu a entender que o culpado pela catástrofe no Araguaia teria sido Mao-Tsetung, pois, afinal, o partido não havia seguido fielmente os ensinamentos transmitidos a seus militantes na Academia Militar de Pequim?

25 de março de 2015
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.

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