Este artigo foi originalmente feito a pedido da Folha de S. Paulo e antes do lançamento do episódio 9 da séria Star Wars
O que Star Wars tem a ver com a situação política contemporânea? Muito mais do que se imagina, considerando a devida licença poética. George Lucas, por meio de mitos e arquétipos, endereça os problemas que a ciência todavia não equacionou, como bem e mal, ordem e liberdade, vida e morte. Star Wars nos instrui sobre o presente, sensibilizando nosso imaginário moral como nos mitos e contos de fadas.
As distopias, antíteses da utopia, encontram apelo porque explicam o mundo concreto no qual sofremos o inferno ilustrado pela ficção. Não é um futuro sombrio imaginário, mas o presente real. Por exemplo, a distopia ilustra o centralismo e a agressão legitimada que advêm de um sistema opressor, bem como o medo e a ganância presentes em nosso entorno e em nós mesmos. Lucas explora dilemas de milênios, como a tensão entre o indivíduo e o império. À distopia, oferece esperança, tema recorrente na saga.
O século XX foi marcado pelo declínio das religiões tradicionais e pela deterioração da ética, espremidas pela proliferação política do totalitarismo. Nossa cultura, mais rica em recursos, empobrecida em princípios, desprezou a sabedoria e conhecimentos que nos entrelaçam com gerações de outrora. Star Wars representou um tsunami de valores permanentes em um terreno de secularismo, relativismo moral e niilismo. Neste ensaio apresento minha leitura da saga e de seus arquétipos, bem como os paralelos com o Brasil contemporâneo.
O impacto inicial
Aquelas duas horas em julho de 1977 foram as mais alucinantes da minha vida. Jamais, antes ou depois, qualquer outra experiência causou tamanho impacto em meu imaginário.
Tinha 10 anos de idade e visitava Nova York com meus pais e minhas duas irmãs. Para aquelas férias meu obcecado plano era este, negociado com meu pai desde o Brasil. Viajei já ciente de esparsos detalhes sobre o novo filme sobre galáxias, espaçonaves e guerreiros, cujo pôster figurava um jovem empunhando um sabre luminoso apontado ao céu.
Nova York era uma experiência sem precedentes para um menino carioca. Tudo era exagerado: limusines como piscinas, o Radio City Music Hall com milhares de assentos, a maior loja de brinquedos do mundo, e vez ou outra um sujeito muito acima do peso na calçada, que meu pai passou a denominar "carambas" dadas as espontâneas exclamações da minha irmã caçula ao avistá-los.
No asfalto, Nova York era sujeira, pichações e violência em níveis tupiniquins, muito distinto da Big Apple de 2019.
A memória engana, mas me recordo na poltrona, enorme expectativa...silêncio absoluto na sala: soa a fanfarra da 20th Century Fox; silêncio de poucos segundos, "a long time ago, in a galaxy far far way", ausência completa dos tradicionais créditos iniciais de atores e colaboradores. Novo silêncio momentâneo e...impacto! Um acorde orquestral explosivo em volume ensurdecedor, o logo de Star Wars se distanciando em um fundo infinito de estrelas; a descrição em letras amarelas se arrastando para o infinito ao som da épica trilha de John Williams; uma espaçonave invade pelo alto e prontamente um portentoso destroier a eclipsa cobrindo o campo de visão enquanto a bombardeia com canhões laser. Aqueles primeiros cinco minutos até a entrada de Darth Vader foram mágicos, gloriosos.
Tive sorte de ter meus dez anos. Meu pequenino mundo em tons de cinza foi suplantado por cores e sons, heróis e vilões, droids, a Millenium Falcon saltando para o hiperespaço, e duelos com sabres de luz. Aplaudi o herói Luke Skywalker e companheiros em completo êxtase. Assisti 13 vezes no cinema entre 1977 e 1978, quando chegou ao Brasil. O impacto foi mais profundo e duradouro que as maravilhas visuais e sonoras, mas à época não sabia articular a ressonância em minha imaginação.
O mono-mito
George Lucas foi influenciado por seu mentor e amigo Joseph Campbell, o mitólogo autor de "O Herói de 1000 Faces", de 1949. A partir dos arquétipos de Carl Jung, Campbell mapeou a estrutura fundamental dos mitos e religiões. Sua premissa é que há um inconsciente universal que une os mitos de todas as eras, de todos os lugares. Todos os seres humanos, creem, dividimos as mesmas estruturas mentais que especificam o que é um herói, uma donzela em perigo, uma jornada, um sábio.
Campbell sugere um padrão nas estórias folclóricas, que denominou de "A Jornada do Herói", que todos trilhamos. Este "mono-mito" possui foco individual, distinto dos mitos nacional-coletivistas, fundadores de nações. Estes últimos tradicionalmente fomentam nos meninos o dever masculino de guerrear pela justiça e retidão. A Jornada do Herói, por outro lado, instrui a reflexão interior. Instrui sobre como superar ritos de passagem e alcançar o cumprimento de seu potencial, contribuindo com a sociedade.
Estórias como Harry Potter, Matrix, Rei Leão, Senhor dos Anéis, Star Wars e outras possuem estruturas correlatas. O futuro herói está em seu mundo ordinário e recebe um chamado a uma aventura ou desafio: uma carta da Escola Hogwarts, a mensagem para Neo seguir o coelho branco, o chamado a que Simba assuma seu reinado, a entrega do anel a Frodo, o pedido de socorro de Leia.
A princípio, o protagonista hesita em responder ao chamado. Ao encontrar o mentor, recebe conhecimento e ferramentas: Hagrid inicia Potter no mundo da feitiçaria, Morpheus dá a Neo a pílula vermelha, o sábio babuíno mostra a Simba que seu pai está vivo dentro dele, Gandalf prepara Frodo para enfrentar os inimigos, Obi-wan Kenobi entrega a Luke o sabre de seu pai.
Desafios e tentações irrompem neste caminho sem volta, no qual o herói faz aliados e inimigos. Surge uma experiência de morte (a invasão da Estrela da Morte, a quase morte por esmagamento no compactador de lixo), uma provação (a morte de seu mentor Kenobi) e a recompensa (Luke resgata a Princesa Leia e obtém as plantas-baixas da Estrela da Morte).
O herói retorna temporariamente a seu mundo ordinário, mas as tribulações não cessam. Um poderoso antagonista, uma Sombra jungiana (Vader) persiste. É preciso enfrentá-lo em uma provação suprema de sacrifício.
Com o êxito (a destruição da Estrela da Morte), o herói Luke descobre que pode usar a Força, e é condecorado. O herói, inicialmente inocente, curioso, humano, e idealista prático, emprega sua valentia e cumpre seu destino ao se transformar, restaurar harmonia e contribuir com a justiça.
A Força, os Jedi e os Sith
Lucas concebeu Star Wars em nove episódios, em três trilogias, cada qual com uma estrutura clássica em três atos. A trilogia original (episódios IV-V-VI) apresentou o período cronológico intermediário, no qual o Império já havia suplantado a República Galáctica (ep. I-II-III). A atual trilogia ilustra o período posterior, que conclui a saga (ep. VII-VIII-IX).
O arquétipo fundamental é a FORÇA, que no universo Star Wars é real e tem base científica. É um campo de energia onipresente. A concentração de organelas microscópicas (midichlorians) habilitam seu hospedeiro a evocá-la. A FORÇA pode ser operada pelos Jedi — ordem de celibatários do bem que desejam se unir a ela —, e pelos Sith — vilões que a manipulam para exercer poder.
Pelo Lado Luminoso dos Jedi, a FORÇA representa amor, compaixão, serenidade; pelo Lado Sombrio dos Sith, ódio, cobiça, agressão.
Ao passo em que a meritocracia determina quem se torna um Jedi, entre os Sith só pode haver dois: um mestre e um aprendiz cooptado. O poder é central, e o aprendiz usualmente assassina o mestre, tomando o poder para si.
Nota-se que a FORÇA não possui ideologia. Não é de esquerda, conservadora, liberal ou progressista, pois é energia impessoal que pode ser invocada por Jedi ou Sith.
No entanto, posiciona-se do Lado Sombrio aquele que cobiça o que o outro possui ou que tolera a coerção sistemática para alcançar meta social ou pessoal (tipo ideal da esquerda).
Aquele que sente ódio de quem discorda ou intolerância ao diferente também se posiciona do Lado Sombrio, bem como aquele que abomina comportamento pacífico de terceiro. Aquele que odeia o mal em demasia também. Anakin Skywalker (Vader) afirma "se não está comigo, é meu inimigo", Kenobi responde "só um Sith julga apenas em preto e branco" (tipo ideal da direita).
O Lado Luminoso, por outro lado, rejeita a agressão física iniciada e admite apenas a legítima defesa; exige contínuo comedimento e controle das emoções, evitando ira e exasperação. Não há dúvida: os Jedi são mais próximos ao tipo ideal dos liberais.
A política em Star Wars
Na trilogia original (episódios IV-V-VI), a galáxia é governada por um Império comandado a partir dos bastidores pelo Sith Lord Palpatine (Darth Sidious) e por um Politburo executivo liderado por seu aprendiz Darth Vader, nova identidade de Anakin Skywalker. Palpatine mantém resquícios da República ao manter o antigo Senado, agora corrompido para atender seus desígnios.
Anakin era de origem humilde, órfão de pai e filho de uma escrava, e se torna muito popular junto ao sofrido povo de seu árido planeta por suas habilidades como piloto. Anakin inicia a jornada do herói: resiste inicialmente ao chamado para ser treinado como Jedi, e prefere ficar com a mãe. No entanto, Anakin não cumpre os ritos de passagem das tentações e desafios, sucumbe ao medo da perda e acaba seduzido por Palpatine, tornando-se o "herói trágico", arquétipo clássico.
Palpatine é José Dirceu, o homem que mudou de rosto, líder intelectual do aparelhamento das instituições, da compra de votos no Congresso no Mensalão e descaminhos generalizados das estatais e Petrolão.
Lula é o executivo do Politburo petista, em última instância comandado por Dirceu, ou seja, Lula é Vader.
Nos episódios I-II-III, a galáxia é governada centralmente pela República, cujo poder é exercido pelo Senado. Os Jedi, cerca de 1000, são um enclave dentro do governo e agem como guardiões da paz e estabilidade. Há paralelo com o enclave de liberais no governo atual. Paulo Guedes é Yoda.
Os Jedi, enclave no governo, e outros indivíduos do bem serviram de massa de manobra em um golpe interno no Senado, operado pelo então senador Palpatine, que obtém poderes especiais. "Então é assim que a liberdade morre; com um estrondoso aplauso", afirma a líder do planeta Naboo, mãe dos irmãos Luke e Leia.
Os Jedi foram manipulados a liderar uma guerra que não era deles, levaram a culpa e foram dizimados pelo agora Chanceler Supremo do Senado, Palpatine, por força de seu Decreto 66. A Guerra dos Clones, como se revelou mais tarde, foi obra de uma intensa polarização artificial articulada pelos Sith nas duas pontas.
A lição: os liberais devem evitar viabilizar desígnios de terceiros, fazer o trabalho sujo e morrer ao final. Outra lição é que não há por onde escapar em um governo "democrático" mundial (ou galáctico) comandado por indivíduos do mal, que usarão o poder para eliminar seus adversários. As ditaduras modernas não se declaram ditaduras, mas corrompem a democracia por dentro.
Anos depois, já no Império, rebeldes se articulam sob a liderança da Princesa e general Leia, apoiados por um anti-herói, o contrabandista anti-establishment Han Solo, que trabalha para um chefe do crime organizado, Jabba, o Hutt.
Os rebeldes são os líderes que comandaram as ruas contra o Império de Dirceu, como o MBL e outros, que deram voz ao desconforto das mulheres, decisivas para o impeachment de 2016. A Princesa Leia é a mulher brasileira que trabalha, cuida da casa, é intuitiva, e faz o chamamento à luta.
O presidente Bolsonaro manifesta semelhança com o arquétipo do anti-herói, porém me vem à cabeça a cena do Episódio VI, na qual o droid C-3PO, confundido com Deus, é idolatrado e carregado em um trono por um bando de ursinhos de pelúcia.
O herói em Star Wars
É tema central em Star Wars que os filhos redimem os erros do pai. Luke Skywalker é orientado por seus mestres Kenobi e Yoda a usar a FORÇA apenas para sabedoria e defesa. Luke rejeita a agressão frontal contra sua combalida Sombra, Vader, e joga fora seu sabre de luz no ápice da luta no Episódio VI, se expondo desarmado a Palpatine.
Luke se diferencia dos demais heróis mitológicos ao declinar a aniquilar sua Sombra. No Novo Testamento cristão, Jesus Cristo dá a outra face, se sacrifica e redime toda a humanidade. George Lucas parece ter tido ali inspiração para compor nosso herói.
Na trilogia final, Rey representa arquétipo idêntico a Luke. A heroína busca a sabedoria, compreende o mal que existe em nós e aprende a lidar com ele. Luke/Rey é o arquétipo dos liberais, que rejeitam a iniciação da coerção e agressão física. Luke/Rey é o brasileiro que invoca a sabedoria dos mestres vivos e do passado e que liderará o Brasil do futuro, distanciando-se do Lado Sombrio.
"Passamos tudo que sabemos. Mil gerações vivem em ti agora. Mas esta é tua luta", escuta Rey. Um herói brasileiro redimirá o Brasil de seus pais, dos Palpatines e Vaders.
Acredito que o Brasil tem um destino no mundo: trazer equilíbrio para a Força.
26 de abril de 2021
Hélio Beltrão