Escrevo antes de o ministro Celso de Mello proferir o voto de desempate no caso do mensalão e, portanto, só me resta torcer para que Sua Excelência, entre cruzar o Rubicão da modernidade institucional em nosso país ou render-se ao bacharelismo e à nossa herança formalista e ritualista, se decida pela primeira via.
Pois é disso que estamos falando. A condenação dos culpados pelo mensalão na Suprema Corte brasileira por maioria inequívoca e a expectativa da sociedade de que – finalmente – a lei aplicável à plebe, ao cidadão comum, se estenda também aos poderosos e bem conectados nas esferas governamentais não podem ser resumidas a uma discussão regimental, como verbosamente fizeram os ministros recém-empossados na Casa na indefectível companhia de dois dos demais membros.
Levar em conta o conteúdo social das decisões judiciais ao mesmo tempo que se atenta para sua jurisdicidade estrita e míope é um dever histórico. As cortes e suas decisões têm de refletir as expectativas maiores da sociedade em que estão inseridas.
No Brasil do século 19, escravos eram tratados como bens materiais e podiam ser hipotecados por seus donos, algo impensável para a sociedade do início do século 20. No entanto, se dependesse de alguns puristas da época, os indivíduos não só continuariam sendo escravos como também teriam seu valor financeiro estabelecido num título creditório.
Nos Estados Unidos, mais de 200 anos depois de a Declaração de Independência afirmar, grandiloquente, que todos os homens foram criados iguais, [e] dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a vida, a liberdade e a busca da felicidade, a desigualdade racial foi consentida pela Suprema Corte com a formulação da doutrina dos “iguais, mas separados”.
Brancos e negros eram “iguais”, mas brancos não eram obrigados a compartilhar com os negros os serviços públicos, os hotéis, os bebedouros e os mictórios. Com base nessa interpretação, seguiram-se quase 100 anos de odiosa discriminação racial até que, em 1954, a doutrina foi repelida pela mesma Suprema Corte. Mudou o nível de sabedoria juridica dos membros da corte? Não, mudou a sociedade que não aceitou mais a hipocrisia da doutrina anterior.
Não falo de ceder a pressões clientelistas, a interesses particularísticos de um grupo ou outro, e sim de observar e respeitar o zeitgeist da nação, do espírito de nosso tempo. A contínua frustração a que a população é submetida ao ver que seu desejo por justiça e equidade é permanentemente adiado pelas manobras e piruetas regimentais tem esse efeito de ducha de água fria no processo modernizador de nossas instituições e de nossas práticas sociais.
E o irônico é que os regimentos estão entre os atos públicos mais baixos na hierarquia de importância, mas, no caso do mensalão, o antigo Regimento do STF, já revogado, adquire para alguns ministros simpáticos aos mensaleiros um papel central e decisório.
Essa adesão monolítica ao formalismo contraria o zeitgeist da nação brasileira e serve como uma luva para a sobrevivência gloriosa do bacharelismo que tanto nos atrasou em mais de 500 anos de história.
16 de setembro de 2013
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.
Gazeta do Povo
Pois é disso que estamos falando. A condenação dos culpados pelo mensalão na Suprema Corte brasileira por maioria inequívoca e a expectativa da sociedade de que – finalmente – a lei aplicável à plebe, ao cidadão comum, se estenda também aos poderosos e bem conectados nas esferas governamentais não podem ser resumidas a uma discussão regimental, como verbosamente fizeram os ministros recém-empossados na Casa na indefectível companhia de dois dos demais membros.
Levar em conta o conteúdo social das decisões judiciais ao mesmo tempo que se atenta para sua jurisdicidade estrita e míope é um dever histórico. As cortes e suas decisões têm de refletir as expectativas maiores da sociedade em que estão inseridas.
No Brasil do século 19, escravos eram tratados como bens materiais e podiam ser hipotecados por seus donos, algo impensável para a sociedade do início do século 20. No entanto, se dependesse de alguns puristas da época, os indivíduos não só continuariam sendo escravos como também teriam seu valor financeiro estabelecido num título creditório.
Nos Estados Unidos, mais de 200 anos depois de a Declaração de Independência afirmar, grandiloquente, que todos os homens foram criados iguais, [e] dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a vida, a liberdade e a busca da felicidade, a desigualdade racial foi consentida pela Suprema Corte com a formulação da doutrina dos “iguais, mas separados”.
Brancos e negros eram “iguais”, mas brancos não eram obrigados a compartilhar com os negros os serviços públicos, os hotéis, os bebedouros e os mictórios. Com base nessa interpretação, seguiram-se quase 100 anos de odiosa discriminação racial até que, em 1954, a doutrina foi repelida pela mesma Suprema Corte. Mudou o nível de sabedoria juridica dos membros da corte? Não, mudou a sociedade que não aceitou mais a hipocrisia da doutrina anterior.
Não falo de ceder a pressões clientelistas, a interesses particularísticos de um grupo ou outro, e sim de observar e respeitar o zeitgeist da nação, do espírito de nosso tempo. A contínua frustração a que a população é submetida ao ver que seu desejo por justiça e equidade é permanentemente adiado pelas manobras e piruetas regimentais tem esse efeito de ducha de água fria no processo modernizador de nossas instituições e de nossas práticas sociais.
E o irônico é que os regimentos estão entre os atos públicos mais baixos na hierarquia de importância, mas, no caso do mensalão, o antigo Regimento do STF, já revogado, adquire para alguns ministros simpáticos aos mensaleiros um papel central e decisório.
Essa adesão monolítica ao formalismo contraria o zeitgeist da nação brasileira e serve como uma luva para a sobrevivência gloriosa do bacharelismo que tanto nos atrasou em mais de 500 anos de história.
16 de setembro de 2013
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.
Gazeta do Povo