“Na véspera de não partir nunca,
ao menos não há que arrumar as malas”
Fernando Pessoa
ao menos não há que arrumar as malas”
Fernando Pessoa
Há pouco tempo, registrei aqui neste espaço minhas percepções sobre o lado obscuro do envelhecimento. Hoje quero alterar meu ângulo de visão e tentar listar as mudanças que caracterizam o lado luminoso da velhice.
Antes de mais nada, sinto em mim que estou mais conectada com aquilo que alguns especialistas em psicologia e psiquiatria chamam de “energias sutis”. Explico melhor: ao longo da vida, vamos aos poucos abrindo mão das experiências de alta intensidade que atraem tanto os mais jovens. Aprendemos a trocar adrenalina por endorfina, a substituir a paixão por velocidade pela degustação lenta dos prazeres.
Exemplos? Vários, a maior parte dos quais ligados aos órgãos dos sentidos: a sensação prazerosa de uma brisa tocando nosso rosto, o calor gostoso na pele quando nos sentamos ao sol em um dia frio, nosso palato e nossa língua absorvendo lentamente os sabores e os aromas de um bom vinho, nossa pele arrepiando e nossos pelos se eriçando quando alguém sussura alguma coisa íntima em nosso ouvido, nossos olhos se enchendo de água diante da ternura ou da beleza.
Depois vem a “idade do conforto”. Já não prestamos tanta atenção aos ditames da moda e às regras sociais. Em vez do salto agulha, um bom mocassim. Em vez das sensuais roupas apertadas, vastidão de tecidos de toque macio. Em vez da cirurgia plástica, um bom spa. Em vez dos almoços de negócio em lotados restaurantes fashion, comidinha caseira ingerida bem devagar em meio a um papo descontraído com os amigos. Em vez do mobiliário Bauhaus, afundar gostosamente num velho sofá que, de tão usado, já assumiu a forma de nosso corpo.
Entramos então em pleno desfrute do “tempo da delicadeza”. Nada de som muito alto, nada de comida muito temperada, nada de gargalhadas histéricas, nada de arroubos passionais, nada de ativismo político exacerbado. Mais vale observar em silêncio emocionado uma flor se abrindo do que participar de um espetáculo circense. É nossa alma que começa a exigir autocontenção.
Adicionar legendaby Edgar Walter Simmons (1917-1994), artista mineiro |
Chega mais tarde, lá pelos 75 anos, uma fase que uma amiga descrevia como a da “adolescência reciclada”. Passamos a nos permitir viver experiências que nos eram proibidas em nossa juventude. Pular de paraquedas? Por que não? Ir ao cinema sozinha? Pode ser. Deixar o medo do ridículo de lado e agitar num baile da terceira idade? Hum, dá para pensar. Paquerar aquele vizinho viúvo metido a descolado? Topo! Praticar “sincericídio” o tempo todo com parentes e amigos também pode ser uma experiência libertadora. O que importa é buscar o próprio prazer, tomando apenas o cuidado de não ferir intencionalmente outras pessoas.
Pelo que observei no comportamento dos ainda mais velhos, depois dos 80 anos tem início uma fase que passo a denominar de “infância reciclada”. Comer todas aquelas comidas gordurosas que o médico contraindicou, esquecer de tomar o remédio, cabular o banho, talvez até fugir de casa – tudo adquire um gosto delicioso de transgressão desejada, de molecagem consentida, de verdadeira autoexperimentação.
Loucura, diria você, ou será que, pensando bem, é uma sutil demonstração de sabedoria? Afinal, estaremos nos despedindo comsavoir-faire das últimas cores e sabores de nossa vida.
04 de maio de 2015
Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.