Passados os Jogos Olímpicos, voltamos à dura realidade da bestialidade que nos aflige
Característicos da Baixa Idade Média, os bestiários eram textos recheados de belas iluminuras, catálogos detalhados de animais, em sua maioria, imaginários. Bestiário é também o título de uma das melhores coletâneas de contos de Julio Cortázar, o escritor argentino, um de meus favoritos. Como os catálogos da Idade Média, o Bestiário de Cortázar descreve em situações bizarras a condição humana tão próxima das bestas, do estado bruto dos animais.
Passados os Jogos Olímpicos, em que, por duas semanas, ludibriamo-nos com os feitos quase sobre-humanos dos atletas, imagens e histórias que fazem com que acreditemos que somos mais deuses do que bestas, voltamos à dura realidade da bestialidade que nos aflige. Das ignóbeis propostas do candidato republicano à presidência dos EUA ao êxodo de venezuelanos, mais de 300 mil refugiados rumo à Colômbia – sim, há uma crise humanitária em larga escala logo ali, crise ofuscada pelo drama brutal da Síria e do Oriente Médio. Como o Brasil haverá de lidar com a crise da Venezuela? Como enfrentaremos a escalada dos extremismos mundo afora e a bestialidade quase banal do noticiário brasileiro? Nesses primeiros dias pós-olímpicos a ressaca maior não é a ausência de competições e modalidades para acompanhar na TV, mas a constatação de que estamos mais para a estupidez do nadador Ryan Lochte do que para a leveza feroz da ginasta Simone Biles, aquela que voa com o salto que leva seu nome.
Em breve passagem pela cidade pós-olímpica, abro os jornais e leio sobre as afrontas adicionais ao ajuste fiscal pretendido – o possível reajuste dos salários dos ministros do STF. Leio sobre estudo que traça simulações a partir da PEC dos gastos, a proposta de emenda constitucional para limitar as despesas do governo, cuja conclusão é de que há diversos problemas na formulação da proposta.
Salta aos olhos a conclusão da análise preparada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados: “O limite (dos gastos) previsto na PEC pode não ser suficiente para atender os aumentos (do funcionalismo público) já concedidos”.
Espanta-me que o governo fale com tanta desenvoltura sobre a reforma da Previdência quando a população que por ela será diretamente afetada sequer compreendeu por que urge aprovar essa reforma, e como ela haverá de impactar o futuro de milhões de brasileiros.
Fico igualmente surpresa com a tranquilidade com que se trata o impeachment iminente da presidente afastada. Não que eu guarde qualquer boa lembrança de seu desastroso governo – artigos escritos para este jornal ao longo da era Dilma Rousseff atestam minha aversão pelas políticas econômicas por ela postas em prática.
Contudo, impeachment não é coisa corriqueira, da vida, de todos os dias. É ferida que conosco permanecerá depois de Temer receber a faixa presidencial. Michel Temer, aquele que em breve assumirá a liderança definitiva do País. Que rumos dará ao Brasil? Terá pulso para enfrentar a bestialidade de nossa política, pergunta que já fiz em artigos anteriores? Conseguirá encontrar solução para a destruição das finanças estaduais e municipais que ameaça qualquer tentativa de ajuste fiscal e de reconstrução institucional?
No Bestiário de Cortázar há um conto curioso. Um homem escreve cartas para uma amiga que viajou para Paris. Ele está hospedado em seu imaculado apartamento, meticulosamente arrumado, tudo disposto milimetricamente em seu lugar. O problema é que o homem padece de patologia bestial: ele vomita coelhinhos. Os pequenos roedores destroem, pouco a pouco, tudo o que está no apartamento – os móveis, as roupas nos armários, os objetos de estimação da dona ausente.
Temer é homem que tomará conta do País que, ao contrário do apartamento da viajante do conto de Cortázar, nada tem de meticulosamente arrumado. Será ele capaz de feito olímpico, digno de deuses, para colocá-lo no lugar? Ou será ele como seus antecessores, mais um vomitador de coelhinhos? A trégua que lhe foi concedida acaba de se encerrar. Resta-lhe pouco tempo para mostrar a que veio.
24 de agosto de 2016
Monica de Bolle, Estadão
Economista, é pesquisadora do Peterson Institute For Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Característicos da Baixa Idade Média, os bestiários eram textos recheados de belas iluminuras, catálogos detalhados de animais, em sua maioria, imaginários. Bestiário é também o título de uma das melhores coletâneas de contos de Julio Cortázar, o escritor argentino, um de meus favoritos. Como os catálogos da Idade Média, o Bestiário de Cortázar descreve em situações bizarras a condição humana tão próxima das bestas, do estado bruto dos animais.
Passados os Jogos Olímpicos, em que, por duas semanas, ludibriamo-nos com os feitos quase sobre-humanos dos atletas, imagens e histórias que fazem com que acreditemos que somos mais deuses do que bestas, voltamos à dura realidade da bestialidade que nos aflige. Das ignóbeis propostas do candidato republicano à presidência dos EUA ao êxodo de venezuelanos, mais de 300 mil refugiados rumo à Colômbia – sim, há uma crise humanitária em larga escala logo ali, crise ofuscada pelo drama brutal da Síria e do Oriente Médio. Como o Brasil haverá de lidar com a crise da Venezuela? Como enfrentaremos a escalada dos extremismos mundo afora e a bestialidade quase banal do noticiário brasileiro? Nesses primeiros dias pós-olímpicos a ressaca maior não é a ausência de competições e modalidades para acompanhar na TV, mas a constatação de que estamos mais para a estupidez do nadador Ryan Lochte do que para a leveza feroz da ginasta Simone Biles, aquela que voa com o salto que leva seu nome.
Em breve passagem pela cidade pós-olímpica, abro os jornais e leio sobre as afrontas adicionais ao ajuste fiscal pretendido – o possível reajuste dos salários dos ministros do STF. Leio sobre estudo que traça simulações a partir da PEC dos gastos, a proposta de emenda constitucional para limitar as despesas do governo, cuja conclusão é de que há diversos problemas na formulação da proposta.
Salta aos olhos a conclusão da análise preparada pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados: “O limite (dos gastos) previsto na PEC pode não ser suficiente para atender os aumentos (do funcionalismo público) já concedidos”.
Espanta-me que o governo fale com tanta desenvoltura sobre a reforma da Previdência quando a população que por ela será diretamente afetada sequer compreendeu por que urge aprovar essa reforma, e como ela haverá de impactar o futuro de milhões de brasileiros.
Fico igualmente surpresa com a tranquilidade com que se trata o impeachment iminente da presidente afastada. Não que eu guarde qualquer boa lembrança de seu desastroso governo – artigos escritos para este jornal ao longo da era Dilma Rousseff atestam minha aversão pelas políticas econômicas por ela postas em prática.
Contudo, impeachment não é coisa corriqueira, da vida, de todos os dias. É ferida que conosco permanecerá depois de Temer receber a faixa presidencial. Michel Temer, aquele que em breve assumirá a liderança definitiva do País. Que rumos dará ao Brasil? Terá pulso para enfrentar a bestialidade de nossa política, pergunta que já fiz em artigos anteriores? Conseguirá encontrar solução para a destruição das finanças estaduais e municipais que ameaça qualquer tentativa de ajuste fiscal e de reconstrução institucional?
No Bestiário de Cortázar há um conto curioso. Um homem escreve cartas para uma amiga que viajou para Paris. Ele está hospedado em seu imaculado apartamento, meticulosamente arrumado, tudo disposto milimetricamente em seu lugar. O problema é que o homem padece de patologia bestial: ele vomita coelhinhos. Os pequenos roedores destroem, pouco a pouco, tudo o que está no apartamento – os móveis, as roupas nos armários, os objetos de estimação da dona ausente.
Temer é homem que tomará conta do País que, ao contrário do apartamento da viajante do conto de Cortázar, nada tem de meticulosamente arrumado. Será ele capaz de feito olímpico, digno de deuses, para colocá-lo no lugar? Ou será ele como seus antecessores, mais um vomitador de coelhinhos? A trégua que lhe foi concedida acaba de se encerrar. Resta-lhe pouco tempo para mostrar a que veio.
24 de agosto de 2016
Monica de Bolle, Estadão
Economista, é pesquisadora do Peterson Institute For Internacional Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University