Novos Desafios à Governabilidade
Um exercício de espionagem do futuro. É isso que o Conselho Nacional de Inteligência, o centro de análises estratégicas da comunidade de Inteligência dos EUA, apresentou em um relatório não-sigiloso que desenha os cenários hipotéticos do mundo de 2020.
Embora a especulação, claro, nunca esteja totalmente ausente quando se trata do futuro, essa parece não ser uma obra especulativa, pois está plantada solidamente no presente, identifica as grandes tendências que já se desdobram e projeta as novas geometrias do Poder no sistema mundial de Estados e novos campos de força na esfera da economia global.
Os ‘espiões do futuro’ consultaram peritos de todo o mundo, especialistas nas áreas de Relações Internacionais, Sociologia, Economia e Tecnologia, líderes empresariais, altos funcionários de governos e de agências multilaterais e chegaram a um relatório que expõe as forças que irão moldar e construir o futuro. Superpotências se enfrentarão não em uma guerra convencional, mas sim em busca de tecnologia, mercado, armas de destruição em massa, corrida espacial e biotecnologia, A economia, a demanda energética, a criminalidade, os combustíveis, o meio ambiente, as mudanças climáticas, o terrorismo e o crime organizado são abordados de forma articulada, inteligente e sutil. Um trabalho profundo e abrangente, produzindo um relatório completo com prognósticos e especulações.
Essa análise, que vale a pena ser conhecida, foi explicitada em 2006 em um documento com a denominação de O Relatório da CIA – Como será o Mundo em 2020, editado pela Ediouro, que expõe as forças que irão moldar e construir o futuro.Alguns capítulos serão aqui resenhados, iniciando pelos Novos Desafios à Governabilidade:
A Nação-Estado continuará a ser a unidade dominante da ordem global, mas a globalização econômica e a disseminação de tecnologias, especialmente as tecnologias da informação, significarão novas e grandes responsabilidades para os governos. A crescente conectividade será acompanhada de uma proliferação de comunidades virtuais de interesse comum, complicando a capacidade de governar dos Estados. A Internet, em particular, estimulará ainda mais a criação de movimentos globais, os quais poderão emergir como uma força robusta nas relações internacionais.
Parte das pressões sobre a governabilidade virá de novas formas de identidade política centradas em convicções religiosas. Em um mundo em processo de rápida globalização, que experimenta mudanças populacionais, as identidades religiosas geram seguidores com comunidades próprias que atuam como ‘redes de segurança social’ em tempos de necessidade – particularmente importantes para os migrantes. Em especial, o Islã político terá um impacto global significativo em 2020, reunindo grupos étnicos e nacionais dispersos e talvez criando até mesmo uma autoridade que transcenda as fronteiras nacionais, um Novo Califado. Ou seja, um movimento global movido por uma identidade religiosa radical que poderá transformar-se em um desafio às normas e valores ocidentais.
Uma combinação de fatores – aumento da população jovem em muitos Estados árabes, perspectivas econômicas pobres, influência da educação religiosa e islamização de instituições como uniões comerciais, ONGs e partidos políticos – assegurarão que o Islã continue sendo uma grande força. Fora do Oriente Médio, o Islã político continuará a atrair os migrantes muçulmanos estabelecidos em países do Ocidente em busca de melhores oportunidades de emprego, mas que não se sentem em casa em uma cultura que percebem ser estranha e hostil.
Regimes que foram capazes de enfrentar os desafios da década de 1990 podem não ser bem-sucedidos em relação aos que se apresentarão em 2020. Forças contraditórias estarão em jogo: regimes autoritários enfrentarão novas pressões para se democratizarem, mas novas e frágeis democracias podem não ter capacidade de adaptação para sobreviverem e se desenvolverem.
A chamada ‘terceira onda’ de democratização poderá ser parcialmente revertida por volta de 2020, em especial entre os países da ex-União Soviética e do Sudeste Asiático, alguns dos quais nunca adotaram realmente a democracia. Todavia, a democratização e o pluralismo tendem a se afirmar em países-chave do Oriente Médio que foram excluídos do processo por regimes repressivos.
Com o aumento da migração em várias partes do mundo – da África do Norte e do Oriente Médio para a Europa, da América Latina e Caribe para os EUA, e do Sudeste Asiático para regiões mais ao Norte –, mais países serão multiétnicos e enfrentarão o desafio de integrar imigrantes nas suas sociedades, respeitando, ao mesmo tempo, suas próprias identidades étnicas e religiosas.
Os líderes chineses terão que acomodar pressões pluralistas para relaxar os controles políticos ou arriscarem-se a uma revolta popular. Pequim poderá tentar implantar uma ‘democracia asiática’, que poderia incluir eleições em pleitos locais, e um mecanismo consultivo em nível nacional, possivelmente com o Partido Comunista retendo o controle sobre o governo central.
Com o sistema internacional passando por uma profunda mudança, algumas instituições encarregadas da administração de problemas globais podem ser solapadas. Instituições baseadas regionalmente terão de enfrentar as complexas ameaças transnacionais impostas pelo terrorismo, pelo chamado crime organizado e pela proliferação de armas de destruição em massa.
A ONU e as instituições financeiras internacionais criadas depois da Segunda Guerra Mundial correm o risco de ficar obsoletas, a não ser que se ajustem às profundas mudanças que ocorrerão no sistema global, inclusive no tocante à emergência de novas potências.
Insegurança aguda
Aumentará o sentimento de insegurança – tanto em percepções psicológicas como em ameaças físicas – por volta de 2020. Mesmo que a maior parte do mundo fique mais rica, a globalização deverá balançar profundamente o status quo, gerando enormes convulsões econômicas, culturais e, conseqüentemente, políticas. Com a gradual integração da China, da Índia e de outros países emergentes na economia global, centenas de milhões de trabalhadores estarão disponíveis para um mercado de trabalho mais integrado. Essa enorme oferta de mão-de-obra - grande parte com um nível de educação elevado – será uma fonte atraente e competitiva de trabalho barato. Mas a transição não será indolor e atingirá particularmente as classes médias dos países em desenvolvimento, ocasionando um turnover mais rápido e exigindo reeducação profissional.
Estados institucionalmente fracos e problemáticos, economias atrasadas, extremismo religioso e movimentos juvenis se alinharão e criarão conflitos internos em determinadas regiões. Alguns desses conflitos, particularmente os que envolverem grupos étnicos disputando fronteiras nacionais, poderão se tornar conflitos regionais e comprometer a governabilidade dos países com territórios e populações sem controle governamental efetivo. Tais territórios poderão se transformar em santuários para terroristas internacionais (como a Al-Qaeda no Afeganistão) ou cartéis criminosos ou de produção e tráfico de drogas (como na Colômbia).
Todavia, a tendência de um conflito em grande escala se transformar em uma guerra mundial nos próximos anos é menor do que já foi em qualquer período do século passado. A crescente dependência de redes financeiras e comerciais globais ajuda a deter os conflitos entre nações. Todavia não elimina essa possibilidade.
A transformação do terrorismo internacional
Os principais fatores que deram origem ao terrorismo internacional não mostram sinais de desaparecer nos próximos anos. Com as facilidades propiciadas pelas comunicações globais, cada vez melhores, o fortalecimento da identidade muçulmana criará uma estrutura para difundir a ideologia islâmica radical dentro e fora do Oriente Médio, principalmente no Sudeste da Ásia, Ásia Central e Europa Ocidental. Esse fortalecimento deverá ser acompanhado de um aprofundamento da solidariedade entre os muçulmanos, advindo de lutas separatistas nacionais ou regionais, como na Palestina, Chechênia, Iraque, Caxemira, Mindanao e Sul da Tailândia, e seguirá em alta em resposta à repressão, corrupção ou ineficiência dos governos. Redes informais de instituições de caridade, madrassas (escolas), hawalas (1) e outros mecanismos continuarão a proliferar e serão explorados por elementos radicais. A alienação entre os jovens desempregados tenderá a inflar as fileiras de grupos terroristas.
Por volta de 2020 haverá um risco substancial de que organizações terroristas islâmicas semelhantes à Al-Qaeda surjam de movimentos separatistas locais. A tecnologia da informação, que permite conectividade instantânea, permitirá também a evolução de grupos ecléticos, bem como de células e indivíduos que não precisam de bases fixas para planejar e executar suas operações. Materiais de treinamento, orientação e informação sobre alvos, conhecimento de armamentos e levantamento de fundos se tornarão virtuais.
Ou seja, poderão ser realizados on-line. Os terroristas provavelmente se tornarão mais originais, não em relação às tecnologias ou armas usadas, mas quanto aos seus conceitos operacionais. Isto é, concepção, planejamento e logística dos atentados. Uma grande preocupação é que os terroristas possam ter acesso a agentes biológicos ou – menos provável – a armas nucleares. Poderão também realizar cyber-atentados, a fim de destruir redes de informações vitais e causar danos físicos a sistemas de informações.
É evidente que os cenários acima descritos ilustram apenas algumas possibilidades que podem se desenvolver nos próximos anos, mas podemos imaginar que esse período será caracterizado por um maior dinamismo, particularmente em contraste com a dinâmica relativamente estática dos tempos da Guerra-Fria.
Como já foi dito, as análises aqui apresentadas, embora solidamente plantada nos fatos presentes, apenas desenham cenários hipotéticos.
O texto acima é um resumo das páginas 164 a 185 do livro O Relatório da CIA – Como será o Mundo em 2020, editora Ediouro, 2006.
(1) Dentro do Islamismo são vetados os juros, daí eles terem esse sistema bancário específico, a hawala.
30 de outubro de 2015
*Carlos I. S. Azambuja é Historiador.