Claro que Cabral e Geddel não declararam o fruto das suas roubalheiras no Imposto de Renda. Mas vai você deixar de declarar algum ganho para ver o que acontece
Onde estavam o Conselho de Controle de Operações Financeiras (Coaf) e a Receita Federal nestes últimos anos? Como foi que ninguém viu as movimentações bancárias milionárias feitas por parlamentares, ministros, governadores, líderes partidários, executivos de governos, e ex-diretores da Petrobras e de outras empresas públicas? Centenas de pessoas enriqueceram enorme e ilicitamente nas suas barbas, e ninguém notou.
O Coaf foi criado em 1998, no pacote das reformas econômicas do governo FH, para monitorar movimentações financeiras de maneira a impedir lavagem de dinheiro. E, claro, comunicar autoridades competentes sobre suas apurações. Nenhuma denúncia foi feita, nada se apurou contra Sérgio Cabral nos seus oito anos de mandato. Tampouco nada se observou de estranho na vida financeira do ex-ministro Geddel Viera Lima. E nem na de tantos outros, só expostos pela Lava-Jato.
A Receita tem um dos corpos técnicos mais bem preparados e bem pagos do serviço público federal. São 9.542 auditores e 6.758 analistas, que não deixam uma agulha passar na sua prestação de contas, leitor, se ela não estiver devidamente declarada. Claro que Cabral e Geddel não declararam o fruto das suas roubalheiras no Imposto de Renda. Mas vai você deixar de declarar algum ganho para ver o que acontece.
Sérgio Cabral está preso, condenado a 87 anos de cadeia, e ainda responde a mais 14 processos por desvios de algumas centenas de milhões de reais dos cofres estaduais. Seus sinais externos de riqueza são escandalosos. Como o Coaf e a Receita não viram nada disso com todo o poder que detêm, inclusive de fuçar as contas das pessoas? Como a Receita, que fareja altos padrões de consumo e conduta até em colunas sociais de jornais, pode ter deixado passar despercebida tamanha extravagância?
Geddel transferiu R$ 53 milhões em dinheiro vivo para um apartamento em Salvador. Este dinheiro não foi fabricado no Pelourinho, ele saiu de um cofre de banco. Pela lei, movimentações superiores a R$ 10 mil devem ser comunicadas pelos bancos ao Coaf. Para passar por baixo deste radar, a grana do Geddel teria de ser sacada em 5.300 operações distintas. Se ele, ou quem tirou este dinheiro para ele, fizesse uma operação desta por dia, levaria 14 anos e meio fazendo saques. Francamente.
Está certo, a Justiça só conseguiu colocar atrás das grades esta enxurrada de corruptos nos últimos anos porque houve delações premiadas. Mas, no caso de gastos fora dos padrões, transferências acima da média ou movimentações em espécie que só carros-fortes podem fazer, Coaf e Receita deveriam ter visto. Só há três explicações para esta cegueira: Coaf e Receita estão deliberadamente fechando os olhos; os dois órgãos trabalham mal; ou os bancos não estão informando como manda a lei.
Difícil acreditar na primeira hipótese, haveria muita gente envolvida, em diversas instâncias das duas instituições, para que um roubo de R$ 53 milhões fosse descoberto e em seguida acobertado outra vez para proteger Geddel. O que parece ser possível, e isto também é muito grave, é que os dois órgãos são ineficientes por razões que precisam ser rapidamente identificadas e resolvidas.
E a terceira hipótese, que também é bastante razoável, deveria merecer uma auditoria especial do Banco Central no setor financeiro. O argumento de sempre, de que o país é muito grande e o corpo técnico é muito pequeno, não é aceitável e não pode ser admitido. Por que não recorrer a tecnologias que permitam multiplicar eletronicamente a fiscalização, resolvendo este e outros problemas de um Estado moderno?
É mais fácil atribuir a crise de cegueira à burocracia preguiçosa. Os dados estão lá, mas são tantos que só de pensar em mergulhar naquele mundo de números já dá sono. O Brasil, a União, deveria se envergonhar dessa constatação ridícula. Tem uma das legislações mais modernas do mundo, mas não sabe fazer bom uso dela. E nós, contribuintes, temos a obrigação de cobrar explicações.
Podem acusar a imprensa de também ter sido cega. Como ninguém conseguiu perceber, por exemplo, a volúpia de Sérgio Cabral ao longo de dois mandatos? Veículos e jornalistas não têm poder de investigação como Coaf, Receita ou Polícia Federal, mas também investigam. Verdade, mas não podem quebrar sigilos bancários, checar movimentações financeiras, abrir sindicâncias ou convocar suspeitos para depor.
10 de fevereiro de 2018
Ascânio Seleme, O Globo
Onde estavam o Conselho de Controle de Operações Financeiras (Coaf) e a Receita Federal nestes últimos anos? Como foi que ninguém viu as movimentações bancárias milionárias feitas por parlamentares, ministros, governadores, líderes partidários, executivos de governos, e ex-diretores da Petrobras e de outras empresas públicas? Centenas de pessoas enriqueceram enorme e ilicitamente nas suas barbas, e ninguém notou.
O Coaf foi criado em 1998, no pacote das reformas econômicas do governo FH, para monitorar movimentações financeiras de maneira a impedir lavagem de dinheiro. E, claro, comunicar autoridades competentes sobre suas apurações. Nenhuma denúncia foi feita, nada se apurou contra Sérgio Cabral nos seus oito anos de mandato. Tampouco nada se observou de estranho na vida financeira do ex-ministro Geddel Viera Lima. E nem na de tantos outros, só expostos pela Lava-Jato.
A Receita tem um dos corpos técnicos mais bem preparados e bem pagos do serviço público federal. São 9.542 auditores e 6.758 analistas, que não deixam uma agulha passar na sua prestação de contas, leitor, se ela não estiver devidamente declarada. Claro que Cabral e Geddel não declararam o fruto das suas roubalheiras no Imposto de Renda. Mas vai você deixar de declarar algum ganho para ver o que acontece.
Sérgio Cabral está preso, condenado a 87 anos de cadeia, e ainda responde a mais 14 processos por desvios de algumas centenas de milhões de reais dos cofres estaduais. Seus sinais externos de riqueza são escandalosos. Como o Coaf e a Receita não viram nada disso com todo o poder que detêm, inclusive de fuçar as contas das pessoas? Como a Receita, que fareja altos padrões de consumo e conduta até em colunas sociais de jornais, pode ter deixado passar despercebida tamanha extravagância?
Geddel transferiu R$ 53 milhões em dinheiro vivo para um apartamento em Salvador. Este dinheiro não foi fabricado no Pelourinho, ele saiu de um cofre de banco. Pela lei, movimentações superiores a R$ 10 mil devem ser comunicadas pelos bancos ao Coaf. Para passar por baixo deste radar, a grana do Geddel teria de ser sacada em 5.300 operações distintas. Se ele, ou quem tirou este dinheiro para ele, fizesse uma operação desta por dia, levaria 14 anos e meio fazendo saques. Francamente.
Está certo, a Justiça só conseguiu colocar atrás das grades esta enxurrada de corruptos nos últimos anos porque houve delações premiadas. Mas, no caso de gastos fora dos padrões, transferências acima da média ou movimentações em espécie que só carros-fortes podem fazer, Coaf e Receita deveriam ter visto. Só há três explicações para esta cegueira: Coaf e Receita estão deliberadamente fechando os olhos; os dois órgãos trabalham mal; ou os bancos não estão informando como manda a lei.
Difícil acreditar na primeira hipótese, haveria muita gente envolvida, em diversas instâncias das duas instituições, para que um roubo de R$ 53 milhões fosse descoberto e em seguida acobertado outra vez para proteger Geddel. O que parece ser possível, e isto também é muito grave, é que os dois órgãos são ineficientes por razões que precisam ser rapidamente identificadas e resolvidas.
E a terceira hipótese, que também é bastante razoável, deveria merecer uma auditoria especial do Banco Central no setor financeiro. O argumento de sempre, de que o país é muito grande e o corpo técnico é muito pequeno, não é aceitável e não pode ser admitido. Por que não recorrer a tecnologias que permitam multiplicar eletronicamente a fiscalização, resolvendo este e outros problemas de um Estado moderno?
É mais fácil atribuir a crise de cegueira à burocracia preguiçosa. Os dados estão lá, mas são tantos que só de pensar em mergulhar naquele mundo de números já dá sono. O Brasil, a União, deveria se envergonhar dessa constatação ridícula. Tem uma das legislações mais modernas do mundo, mas não sabe fazer bom uso dela. E nós, contribuintes, temos a obrigação de cobrar explicações.
Podem acusar a imprensa de também ter sido cega. Como ninguém conseguiu perceber, por exemplo, a volúpia de Sérgio Cabral ao longo de dois mandatos? Veículos e jornalistas não têm poder de investigação como Coaf, Receita ou Polícia Federal, mas também investigam. Verdade, mas não podem quebrar sigilos bancários, checar movimentações financeiras, abrir sindicâncias ou convocar suspeitos para depor.
10 de fevereiro de 2018
Ascânio Seleme, O Globo