Perdão, doutora Cleyde Muniz da Silva Carvalho, meritíssima Juíza Federal Titular da 6a. Vara Federal de São João de Meriti. Mas aos 70 de idade e 45 de militância ininterrupta da advocacia no Rio, sou obrigado a lamentar a decisão que a senhora proferiu neste 27 de Dezembro, na Ação Civil Pública em que seis defensores públicos do Estado do Rio de Janeiro pediam a concessão de liminar para o desbloqueio do dinheiro do salário do funcionalismo público do Estado. Após reconhecer “a plausibilidade da tese deduzida quanto à inviolabilidade constitucional de autossatisfação do crédito garantido por vinculação orçamentária…”, ou seja, após reconhecer o bom direito defendido pelos seis defensores públicos, a senhora assim decidiu, a respeito da concessão da liminar:
“Na esteira de tal raciocínio, deixo de apreciar, por ora, o pedido de liminar e determino a intimação das partes (União e Estado do Rio de Janeiro) para que no prazo de 15 (quinze) dias corridos, a contar a partir da intimação da presente decisão, realizem, em âmbito administrativo, tratativas voltadas a um possível entendimento, para solução do problema pela via conciliatória, mediante realização de reuniões ou outros contatos que contem com a efetiva participação de pessoas com poderes para negociar e celebrar acordo, informando ao juízo, no mesmo prazo, o resultado das tratativas”.
EM VEZ DE LIMINAR, CONSELHO – Não, doutora Cleyde, a petição dos defensores não pediu conselho, mas a intervenção do Judiciário. É verdade que a via conciliatória é sempre a mais recomendada e que deve ser seguida. Não para quem trabalhou, não recebeu salário e ficou sem dinheiro para se alimentar e pagar suas dívidas.
Que reação teriam mãe e filho que passam fome, vão à Justiça com ação de alimentos contra o marido da mulher e pai da criança, pedem liminar para obrigá-lo à supri-los com necessário à sobrevivência, e a Justiça, ao invés de imediatamente obrigar o devedor a cumprir com suas obrigações de marido e pai, manda que os três (pai, mãe e filho) se reúnam e, em 15 dias, decidam conciliar e se entenderem e depois informem ao juiz o que ficou resolvido?
QUESTÃO RELEVANTE E URGENTE – Quando mãe e filho decidiram ir à Justiça é porque não houve entendimento, doutora Juíza. É porque o varão e pai já não cumpre com suas obrigações naturais para com a esposa e filho. Ele é desobediente. Não tem piedade. É um monstro, por ver mulher e filho à míngua e cruza os braços. E, acionada, a Justiça ainda manda que todos se reúnam em 15 dias para resolverem amigavelmente a questão!
Não, doutora Juíza, o seu nobre ofício judicante não está imune e a salvo da crítica construtiva. A questão levada à senhora pelos defensores públicos do Estado do Rio de Janeiro é da maior relevância. É urgente. Diz respeito à sobrevivência humana. Leva às doenças, desgraças e desespero. Causa a morte. A vida, doutora Juíza, é o bem número um e o mais precioso. E vida com saúde. Vida sem saúde é vida moribunda. O vivo sem saúde é um vivo prestes a morrer. Um vivo-morto. E é o dinheiro a mola-mestra que dá condições de sobrevivência à pessoa humana.
Daí demandar a intervenção, rápida e enérgica da Justiça, para amparar o funcionalismo do Estado que não recebe salário.
Salário é alimento, doutora juíza. Pensão, também. Está na Constituição Federal (artigo 100, § 1º – A). E tem esta redação:
“Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações…”. E salário e pensões são impenhoráveis. Não podem sofrer a mínima constrição, judicial ou não. É uma garantia que sempre esteve no Código de Processo Civil. Neste novo CPC de 2015, a proibição de penhorar (ou arrestar, bloquear, indisponibilizar, seja lá o nome que se queira usar) está no artigo 883, IV, com esta redação:
“São impenhoráveis… IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões...”.
PERVERSIDADE OFICIAL – O que o Estado Brasileiro está fazendo com seus súditos, com o funcionalismo do ERJ e de outros Estados é de uma brutalidade social e jurídica gritante. O fato do dinheiro se achar na conta do Estado-patrão não o desnatura. Sua destinação é para pagamento do salário do funcionalismo, destinação primeira, a mais importante e a mais essencial. O funcionalismo público do RJ não está pedindo favor. Menos ainda piedade. O que pedem é o recebimento do salário referente aos meses trabalhados. Nada mais que isso. É o mínimo a que eles têm direito.
E o dinheiro está na conta do Estado, que dele é mero depositário e repassador para as contas do funcionalismo. Interromper, com penhora, arresto ou bloqueio, essa cadeia, esse itinerário, até que o dinheiro chegue à conta dos funcionários, é rigorosamente ilegal e indiscutivelmente desumano. É perversidade oficial.
Pior ainda porque a privação parte da União, que nada mais é do que um grande pater-familiae que não pode permitir que parte de seus filhos e súditos se vejam privados da mínima condição de sobrevivência e outros não. A distribuição do dinheiro público é para todos, filhos que economizam e filhos pródigos. Um pai não pode permitir que alguns de seus filhos recebem o necessário para a sobrevivência e outros não.
DÍVIDA DO ESTADO, NÃO DO SERVIDOR – O dinheiro, meritíssima Juíza, não é municipal, não é estadual nem federal. O dinheiro é nacional. Logo, aos nacionais brasileiros pertence. Se o Estado do Rio de Janeiro é devedor da União, não é justo, não é humano, não é legal, não é constitucional que o dinheiro do Estado-membro seja apreendido para quitar a dívida, sem dele descartar, antes, o montante destinado a pagamento de salário do funcionalismo, que é impenhorável.
Na prática, o funcionalismo do RJ está pagando, caro e com o risco de vida, por uma dívida que o funcionário não contraiu. E mesmo se tivesse contraído, seu salário jamais poderia ser penhorado, ou arrestado, para pagamento do débito.
Ao longo dos anos li e advoguei muito. Foi a profissão que desempenhei dignamente, sem uma mácula em meus registros na OAB. Li e aprendi que arrestos, sequestros, penhoras, bloqueios (e/ou indisponibilidade) de bens e outras providências congêneres, são medidas cautelares judiciais. Somente a Justiça, a Magistratura, tem o poder de determiná-las, desde que provocadas à prestação jurisdicional.
Vejo que a Ação Civil Pública que os defensores públicos do ERJ entregaram à Justiça é dirigida contra a União e o Estado do Rio de Janeiro. Então, estamos diante de um bloqueio ordenado pela União, vitimando o funcionalismo do Estado e o próprio Estado do RJ. E o Executivo não tem este poder de penhorar, arrestar e bloquear e que somente à magistratura, ao Poder Judiciário é conferido. Mesmo na eventualidade de lei que assim permita, tal lei é inconstitucional, por outorgar ao Executivo nacional um poder e uma prerrogativa que somente o Judiciário detém.
QUE A LIMINAR SEJA CONCEDIDA – Não, meritíssima Juíza. Ao ler ontem no O Globo que a Defensoria Pública do Estado tinha recorrido à Justiça Federal em defesa do funcionalismo público, fiquei aliviado. Mas ao ler hoje a decisão de Vossa Excelência, que deixa de conceder a liminar para que as partes (Estado e União) se entendam primeiro, confesso que tomou conta de mim aquele sentimento que Corneille escreveu no Le Cid “resto imóvel, com minha alma abatida”.
E como cidadão brasileiro, advogado e solidário com o sofrimento do funcionalismo público do Estado do Rio de Janeiro, rogo a Vossa Excelência que, de ofício, reconsidere a decisão que aconselhou Estado e União a se sentarem na mesa de conversação para resolverem a questão — aconselhamento, aliás, sem qualquer consequência se não for atendido –, para o fim de deferir a liminar determinando o desbloqueio e a liberação do dinheiro para o pagamento do salário do funcionalismo público estadual, seja nos limites do pedido formulado pela Defensoria Pública e até mesmo fora deles, uma vez que a questão é de ordem pública e reclama urgência e criatividade do julgador.
Por fim, fica registrado que a concessão da liminar só trará benefício à saúde e à vida do funcionário. E na eventualidade de a liminar vir a ser reformada mais tarde pelo Tribunal, tanto não representará o menor risco ou prejuízo para funcionalismo, que não estará obrigado a devolver o dinheiro-salário, uma vez que vige entre nós o princípio segundo o qual o que se recebeu a título de alimentos não se repete. Ou seja, não se devolve.
29 de dezembro de 2016
Jorge Béja