A estupidez até pode encontrar um terreno fertilíssimo no Brasil e, às vezes, chegar a altitudes inigualáveis. Mas não é uma exclusividade nossa, não! Os idiotas estão soltos e, como lembrou um ex-ministro, perderam completamente a modéstia.
Mohamed Morsi, presidente do Egito, teve uma ideia para conter os protestos populares, que entram pelo quinto dia: Lei Marcial — instrumento a que recorreu o agora encarcerado e quase morto Hosni Mubarak. Nesses cinco dias, já são 58 os mortos em várias cidades do país. O Ocidente assiste atônito e mudo. Quem é que está na rua agora? Os traídos de sempre das “revoluções islâmicas”: as facções laicas e realmente democráticas que acreditam poder, porque mais racionais e informadas, dar um truque na truculência religiosa. É incrível! EUA e Europa caíram, em 2011 e 2012, na mesma conversa de 1979, com a revolução iraniana. Até o comportamento do democrata da hora que ocupa a Casa Branca foi o mesmo: Jimmy Carter, certamente o mais patético presidente da história americana, puxou o tapete do xá Reza Pahlevi e entregou o Irã a Khomeini. Alguns meses depois, o barbudo de olhar maligno estava matando e esfolando. Barack Obama puxou o tapete de Mubarak e de outros ditadores e entregou o Egito à Irmandade Muçulmana e o Norte da África aos terroristas. Uma obra que vai ficar para a história. E ele o fez com o auxílio luxuoso de um conservador que havia virado
socialite, Nicolas Sarkozy, então presidente da França, que perdera o eixo, e de outro conservador meio burrinho, David Cameron, primeiro-ministro britânico.
George W. Bush, o odiado “jorjibúsxi”, diz-se, achava que podia sair por aí derrubando ditadores inimigos. Uma coisa realmente muito feia de fazer e que lhe rendeu o repúdio dos politicamente corretos mundo afora, especialmente no Brasil. Essas mesmas mentalidades, no entanto, acham que os americanos cumprem uma missão civilizadora e civilizatória quando saem por aí derrubando ditadores… amigos. É um jeito de ver o mundo, com o qual não concordo num caso e noutro. A Irmandade Muçulmana, obviamente, deu um passa-moleque nos seus “aliados” ocidentais, e os terroristas levaram a melhor na Líbia — e isso quer dizer levar a melhor em todo o Norte da África.
Mas é muito pequena a possibilidade de ler o óbvio na imprensa brasileira ou estrangeira. O Estadão traz nesta terça um texto estupefaciente, escrito por Jocelyne Cesari, publicado no Washington Post. Ela é pesquisadora sênior do programa “Islam in the West”, do Centro Berkley, da Universidade Harvard.
Contra os fatos, contra as evidências, dona Jocelyne vê “a firme marcha dos movimentos islâmicos rumo à democracia”. Mas aí ela se sentiu na obrigação de adjetivar um pouco essa democracia. E escreveu esta maravilha: “Entretanto, isso não significa que as transições em curso levarão necessariamente a democracias liberais no estilo ocidental. O mais provável é que estejamos testemunhando a ascensão de democracias iliberais, nas quais o respeito aos resultados eleitorais não significa automaticamente o fim da discriminação com base no gênero ou na religião entre os cidadãos”.
Parece um pensamento original, mas é pistolagem intelectual. Como esses vigaristas se encantaram com a dita Primavera Árabe, assegurando o seu caráter democrático — estupidez na qual este blog nunca caiu —, faz-se necessário agora inventar uma categoria em que encaixar aquele troço. Surge, assim, a “democracia iliberal”, que se resumirá, então, ao “respeito aos resultados eleitorais”. Por esse critério, a Venezuela e o Irã são democracias — “iliberais”, por certo! Como “democracias iliberais” eram alguns fascismos europeus.
Segundo Jocelyne, o verdadeiro teste para esse novo modelo democrático será a persistência do “sistema eleitoral”. Duvido que esta senhora não tenha lido Gramsci. Tendo lido, é mesmo uma farsante. Na hipótese de que não tenha, é uma ignorante essencial. Modelos autoritários, islâmicos ou não, recorrem cada vez mais a eleições para se legitimar. Perceberam que isso é mais eficiente do que as armas. Por intermédio de leis votadas em Parlamentos sob o controle de “partidos populares” ou de “partidos religiosos”, estabelecem as condições da devida desigualdade da disputa. A nova Constituição votada no Egito dá aos religiosos a última palavra até sobre sentenças judiciais. Nas eleições egípcias, membros da Irmandade Muçulmana acompanhavam os eleitores até a urna. E não havia o que fazer — e não haverá.
Jocelyne sente a incontornável necessidade de inventar uma democracia diferenciada para poder justificar as brutalidades do novo regime. Reparem nas consequências práticas de sua tese. Os cinquenta e oito cadáveres, então, que se contam no Egito em cinco dias já são cadáveres da democracia — “iliberal”, é bem verdade, mas democracia ainda assim, segundo esse pensamento. Os mortos de Mubarak eram expressão da truculência. Os mortos de Morsi são consequência do poder popular.
Sigamos ainda para onde aponta o nariz de dona Jocelyne. Notem que ela é pesquisadora sênior do programa “Islã no Ocidente”. Isso quer dizer que esta senhora vê, certamente, com bons olhos a força crescente dos companheiros de turbante na Europa, por exemplo. Se democracia é democracia, ainda que “iliberal”, é de supor que também os ocidentais acabem, vamos dizer assim, se contaminando com esses novos valores. Se, daqui a 50 anos, a França estiver de burca — e se for isso o que querem as urnas —, fazer o quê?
Esta senhora desidrata a democracia de seu conteúdo e de sua história e a converte num mero sistema de escolha de governantes. Nas democracias iliberais, as maiorias se impõem pelo voto e, se preciso, esmagam as minorias. Nega-se, assim, o fundamento que fez da democracia ocidental um regime realmente acima de qualquer outro que o mundo tenha tentado: o seu valor negativo — vale dizer: a proteção às minorias.
Apontei aqui outro dia que nenhum lobby era tão eficiente e poderoso em escala planetária como o lobby islâmico (na imprensa paulistana, só o do Supercoxinha é mais forte). Eis aí.
É certo que nem tudo é treva e se pode ler ainda o que presta. Na edição de VEJA da semana passada, Mario Sábino, correspondente em Paris, escreveu sobre a necessária intervenção francesa no Mali (em azul):
(…)
Aplaudida pelos aliados, a França, no momento, está como a Estátua da Liberdade: sozinha, com a tocha na mão. Afora as palavras de solidariedade e algum apoio logístico, as nações amigas relutam em formar uma coalizão semelhante àquela que derrubou o ditador líbio Muamar Kadafi na Líbia, em 2011. A crise econômica levou a que todos cortassem na bucha dos canhões e ninguém parece disponível para lutar na África depois da aventura na Líbia, em que a geopolítica deu lugar ao geoproselitismo.
A encrenca no Mali é consequência direta do que ocorreu na Líbia. Ou, em outras palavras, Hollande está limpando o lixo que seu predecessor, Nicolas Sarkozy, deixou que se esparramasse, ao começar uma guerra contra Kadafi na qual o resto do Ocidente embarcou. Na última década, o ditador, um dos mais sanguinários e pitorescos de que se tem notícia mesmo para os largos padrões africanos, conseguiu segurar, a bom preço pago pela Europa, a ação de terroristas islâmicos e os anseios irredentistas dos tuaregues, povo seminômade que se espalha no miolo formado por Argélia, Mali, Níger, Chade, Burkina Faso, Nigéria e, claro, Líbia. Com a queda de Kadafi e a “primavera árabe” no Magreb, que destituiu tiranos na essência laicos por tiranos muçulmanos só na aparência moderados, os terroristas viram-se à vontade para agir na região adjacente do Sahel — a faixa de terra que se interpõe entre o deserto magrebino (o Saara) e o sul equatorial, com populações já predominantemente negras.
(…)
Volto
Na mosca! A bobagem que as potências ocidentais fizeram e ainda fazem em relação à dita “Primavera Árabe”, segundo a lógica dos fatos, era e é praticamente autodemonstrável. É a marcha da “democracia iliberal”… No caso da Líbia, aí houve a mistura explosiva dos bons sentimentos com a irracionalidade. Obama, Sarkozy e Cameron não viram mal nenhum em que a Otan, ao menos naquele empreendimento, se juntasse aos jihadistas.
Pois é… Dona Jocelyne, a tal, à sua maneira torta, ajuda-nos a entender o mundo. Os autoritários resolveram adotar o método ocidental — as eleições —, mas dispensando os seus valores. Trata-se de um bom modo de eternizar ditaduras. Já os ocidentais à moda Jocelyne fizeram o contrário: começam a admirar os valores dos autoritários. Nessa toada, adivinhem quem está condenado à derrota.
Repito para o presidente dos EUA a saudação que se fazia aos Césares: “Ave, Obama, os que vão morrer o saúdam!”.
20 de novembro de 2015
Reinaldo Azevedo, Veja