Fiat justitia ruat caelum, a expressão latina que significa “seja feita justiça, ainda que os céus caiam”.
Mesmo que seja possível relacioná-la à antiguidade, atribuindo-a a Lucius Calpurnius Piso Caesoninus (43 a.C.), seu uso é relativamente moderno, retrocedendo ao século XVIII, merecendo até citação de David Hume, apesar deste autor considerar a justiça um artifício que pode vir a ser contrário ao interesse público.
O seu significado é bastante claro: a justiça deve prevalecer acima de quaisquer consequências.
Essa frase é sempre oportuna de ser lembrada no Brasil, um país que vive de escândalos abafados e intrigas palacianas, mas sua reflexão se torna urgente quando a turma do status quo decide dizer que não é o momento de afastar um presidente pego em gravação constrangedora em que se conjuram esquemas de corrupção.
O mesmo argumento foi usado com relação à presidente anterior, vítima de impeachment, e tem sido gasto à exaustão como um dos elementos a justificar a liberdade de um ex-presidente, réu em ações criminais em andamento.
Também com relação às empresas envolvidas nos escândalos de corrupção, argumenta-se que elas não podem sofrer toda a pressão da lei, considerando a economia e os empregos que geram.
O fato todo ainda é bem recente. Ontem, 17 de maio e 2017, era divulgada gravações envolvendo o atual presidente e um senador da República. Hoje, o mercado brasileiro derrete: a Bolsa de Valores sofreu um circuit breaker, dólar dispara.
O argumento de que é péssimo para a economia do país que os políticos envolvidos sofram a sanção da Justiça ganha força. Será?
É verdade que o país passará por uma situação de abalo. Há indícios pungentes de que os grandes partidos políticos estão envolvidos em casos de corrupção, grandes figuras da República estão tendo seus atos sórdidos revelados ao público. Executivo e Legislativo comprometidos, e não parou por aí. Outras instituições correm risco.
Para manter a estabilidade do país devemos fechar os olhos à corrupção e permitir a impunidade?
Sem pensar, o raciocínio parece coerente. Uma urgência temporária. Mas e se pensarmos a respeito?
Chegamos onde chegamos após décadas de corrupção e dilapidação do patrimônio público, ou melhor, do dinheiro do contribuinte, já que é de onde vem a renda do Estado.
Agora, a melhor proposta para o povo, aquele que banca o cabaré e só é chamado para limpar o chão depois das festas, é manter as coisas como estão. Aceitar a corrupção das altas esferas como um elemento ínsito à brasilidade.
Exemplificando, é como se tivéssemos uma árvore podre por dentro em frente à nossa casa. Alta, robusta, mas podre e tendente a cair a qualquer momento. Em vez de cortá-la, os cupins aparecem e sugerem que somente podemos alguns galhos, aqueles mais próximos ao chão.
Ora, essa árvore cairá em algum ponto, estrondosamente. Esmagará nossa casa, talvez mate a nós, nossos filhos, nossos parentes.
Ainda, é o marido, ou a esposa, traído que pega o traidor no ato, mas ouve dele a proposta de manter o casamento, afinal, seria economicamente incômodo para ambos ter que resolver a questão patrimonial.
Em outras palavras, o povo foi vítima dos atos de corrupção e a melhor proposta dos especialistas é que ele continue sendo vitimado. Para melhorar sua condição? Aparentemente, só para não ficar pior. No fundo, é para garantir a impunidade dos agentes criminosos.
O raciocínio é ainda mais sombrio. A ideia é de que aplicar a Justiça contra os corruptos em situação de poder econômico e/ou financeiro desestabilizaria o país, mesmo diante de provas incontestes de sua conduta, equivale a dizer que o capital nacional e estrangeiro não se importa com a corrupção, desde que ele tenha segurança para continuar a lucrar.
Lógico que podemos falar em instabilidade da economia, retração do mercado, receio de medidas econômicas agressivas, confisco e outras intercorrências próprias de um governo que não se sustenta. Contudo, se a proposta é de que a manutenção de um governo corrupto é melhor (para quem?) do que a aplicação da lei contra os agentes criminosos, resta inconteste a conclusão do parágrafo anterior.
É muito mais preocupante entender a corrupção como um sistema de normalidade institucional do que limpar o Brasil, ainda que se tenha que abalar as fundações e reconstruir o Estado.
Uma história curiosa ligada indiretamente à expressão latina que abre esse texto é a passagem histórica de quando Alexandre, o Grande, recebeu o povo celta do Adriático. Questionando aquela raça alta e robusta sobre o que mais temiam, na expectativa de ouvir seu nome, teve a resposta de que os celtas não temiam ninguém, mas apenas que o céu lhes caísse sobre a cabeça, situação utilizada amiúde no quadrinho do Asterix.
Devemos nós, o povo da planície, temer que o céu caia sobre nossas cabeças? Mais perto dele, céu, estão os olimpianos que compõem a alta casta política brasileira, desde os mais poderosos até os pequenos serviçais, humoristas e canetas de aluguel, defendendo a manutenção de um status quo onde a população continua a sustentar o paraíso dos corruptos sobre suas costas, agora sem nem mesmo previsão de se aposentar.
Há informações públicas de que a empresa de um dos sócios que fez essa delação e divulgou as gravações estaria lucrando, hoje, com a alta do dólar, a mesma empresa que teria sido supostamente notificada de forma prévia da queda da taxa SELIC pelo mesmo presidente, dados com os quais obteve lucro.
Se o céu não cair sobre nossas cabeças, inevitavelmente o chão abrirá para nos engolir, o mesmo chão do qual estamos tão próximos, horizontalizados na exploração da alta carga tributária, da violência e da corrupção endêmica.
A Justiça deve prevalecer, não importam as consequências. De outra forma estaremos sinalizando que existem pessoas impermeáveis à lei, cujos atos não são alcançados pelo Estado organizado, levando à conclusão de que, ou se aceita a imunidade desses atores, ou se derruba o Estado, ambas soluções trágicas e que em seu bojo trazem violência, fome, doença e morte.
O trabalho executado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, e as decisões do Judiciário, estão mostrando a verdadeira face do Brasil. Ao povo compete decidir se colocará suas ideologias e preferências partidárias acima da razão, ou se dirá “queremos Justiça, ainda que caiam os céus”.
09 de junho de 2017
Eduardo Perez