Para os militantes do Isis, o recurso à barbárie e a atrocidades representa uma forma de terror-ostentação do qual se orgulham
Dois jogos de arromba marcaram o domingo passado: a dramática eliminação do México pela Holanda no Castelão e a atormentada vitória da Costa Rica sobre a combativa Grécia na arena Pernambuco. Foi uma tarde em que o planeta pareceu orbitar em torno de uma bola de futebol.
Apesar de a Copa estar tão empolgante quanto empolgada, um inesperado comunicado postado no Twitter obrigou vários donos do poder a desviar o foco dos gramados. A inoportuna mensagem também envolvia disputa, vitória e eliminação. Mas continha sobretudo potencial de sobra para embaralhar de vez a geografia atual e alterar a história futura.
Não por acaso o anúncio coincidia com o primeiro dia do mês do sagrado Ramadã. Fora postado pelo grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isis, na sigla em inglês) e comunicava ao mundo ter mudado de nome, identidade e ambição. A partir daquele domingo o grupo extremista que vinha implodindo o poder do governo do Iraque se autoproclamava um país. Mais precisamente, um califado, agora Estado Islâmico.
Semeando o terror e aniquilando o que encontram pela frente, seus militantes jihadistas há meses conquistam vastos nacos de território outrora invadido, ocupado e abandonado por tropas americanas. A meta do pretendido califado é se estender de Aleppo, no norte da Síria, até a província de Diyala no Iraque oriental. Como chefe político e religioso da nova “nação”, o califa Abu Bakr al-Baghdadi, chileno de nascimento, passa a ser considerado sucessor do profeta Maomé e líder de todos os muçulmanos — ao menos dos sunitas extremados que combatem em suas fileiras.
Considerando-se que o último califado de algum peso foi abolido em 1924 por Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, essa tentativa de ressurreição produzida por uma das vertentes mais sanguinárias do terrorismo islâmico injeta pânico nos governos da região e em seus aliados ocidentais.
Motivos de alarme não lhes faltam. Até então a norma e a tática dos grupos jihadistas consistiam em eclipsar-se após praticar um atentado, procurado não deixar pistas. Esse terrorismo clandestino de diáspora islâmica, apátrida, tem regido tanto a al-Qaeda, responsável pelos atentados de 11 de Setembro de 2001, como o Boko Haram, atuante na Nigéria, que consegue sumir com 200 crianças raptadas de uma escola.
Já o objetivo declarado do Isis é fincar pé, conquistar terreno e formar uma nação em meio a uma região em combustão perpétua. O contorno desse sonhado califado apaga do mapa a fronteira entre Síria e Iraque estabelecida há um século pelas potências coloniais da época, o Reino Unido e a França, que fatiaram o Oriente Médio em zonas de influência.
Para os militantes do Isis, o recurso à barbárie e a atrocidades representa uma forma de terror-ostentação do qual se orgulham. Dois anos atrás, quando ainda eram afiliados à al-Qaeda, lançaram uma série de ataques a prisões iraquianas, inclusive a Abu Ghraib de sinistra notoriedade, e arrebanharam criminosos para suas fileiras. Batizaram essa fase inicial de “Rompendo muros”. A fase atual de consolidação do território também tem nome: “Rompendo fronteiras”. Por atrair jovens de países ocidentais, tornou-se pesadelo dos grandes em Washington e capitais europeias.
Em recente artigo publicado no site da emissora árabe Al Jazeera, um ex-oficial do Exército britânico respondeu à indagação mais recorrente envolvendo a irrupção do Isis: por que nem a mídia nem os governos interessados perceberam a força que move o ideal de um califado terrorista? “No caso da mídia”, escreveu Crispian Cuss, hoje consultor no Oriente Médio, “uma espécie de fadiga decorrente de anos de violência acabou afetando a cobertura feita no Iraque e na Síria”. Ele credita à violência explicita do ISIL o fato de pouquíssimos repórteres terem se aproximado do bando
Já os serviços de inteligência ocidentais teriam falhado menos, pois enviaram repetidos alertas quanto à movimentação em curso. “Mas foram relatos sem audiência”, explica Cuss. “Assoberbados pela complexidade da região e acossados por um eleitorado cansado de aventuras militares longe de casa, os governos preferiram não encarar as consequências do novo quadro”, conclui o analista.
Apesar de o Isis pretender ressuscitar um tipo de regime que data do século 7, seus militantes são antenadíssimos com o mundo de 2014. Duas semanas atrás, pouco depois de Lionel Messi ter salvo a Argentina de um humilhante empate no 91º minuto do jogo contra o Irã, o craque argentino recebeu inesperado elogio e extravagante convite do grupo terrorista. “O Isis felicita Messi, o convida para unir-se à jihad e o premia com o titulo de pai goleador argentino e rei da América do Sul”, dizia a mensagem postada no Twitter.
Como se sabe, radicais islâmicos tem leniência zero com a depravação e decadência ocidental que associam à prática do futebol internacional. Tanto na Nigéria como em vilarejos do Quênia ocorreram ataques brutais contra moradores com a televisão ligada na Copa.
Mas o Irã, por ser um estado teocrático ultraxiita, é inimigo jurado da vertente sunita abraçada pelo Isis. Daí a saudação fraterna ao soldado Messi.
A agilidade e o uso maciço das redes sociais pela turma do califado surpreendem. Cientes da popularidade mundial da Copa, os terroristas têm se infiltrado no hashtag #WoldCup2014 para anunciar conquistas no campo de batalha. Ou, como relatou o “New York Times”, para postar o vídeo da decapitação de um policial iraquiano. “Esta é nossa bola. É feita de pele #WorldCup”, dizia a mensagem anexada ao vídeo.
Facebook, Tumblr, YouTube, WordPress, JustPaste, SoundCloud — nada falta ao leque de ferramentas da comunicação moderna utilizado pelos militantes do Isis. Uma pioneira pesquisa sobre a atividade on-line do grupo, de autoria da americana Rita Katz e disponível no site Intelligence Group, mapeia o fenômeno.
Trata-se apenas do começo. Na próxima Copa de 2018, em Moscou, o terrorismo do Isis talvez não precise mais de um Lionel Messi para demolir infiéis com um chute.
Dois jogos de arromba marcaram o domingo passado: a dramática eliminação do México pela Holanda no Castelão e a atormentada vitória da Costa Rica sobre a combativa Grécia na arena Pernambuco. Foi uma tarde em que o planeta pareceu orbitar em torno de uma bola de futebol.
Apesar de a Copa estar tão empolgante quanto empolgada, um inesperado comunicado postado no Twitter obrigou vários donos do poder a desviar o foco dos gramados. A inoportuna mensagem também envolvia disputa, vitória e eliminação. Mas continha sobretudo potencial de sobra para embaralhar de vez a geografia atual e alterar a história futura.
Não por acaso o anúncio coincidia com o primeiro dia do mês do sagrado Ramadã. Fora postado pelo grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante (Isis, na sigla em inglês) e comunicava ao mundo ter mudado de nome, identidade e ambição. A partir daquele domingo o grupo extremista que vinha implodindo o poder do governo do Iraque se autoproclamava um país. Mais precisamente, um califado, agora Estado Islâmico.
Semeando o terror e aniquilando o que encontram pela frente, seus militantes jihadistas há meses conquistam vastos nacos de território outrora invadido, ocupado e abandonado por tropas americanas. A meta do pretendido califado é se estender de Aleppo, no norte da Síria, até a província de Diyala no Iraque oriental. Como chefe político e religioso da nova “nação”, o califa Abu Bakr al-Baghdadi, chileno de nascimento, passa a ser considerado sucessor do profeta Maomé e líder de todos os muçulmanos — ao menos dos sunitas extremados que combatem em suas fileiras.
Considerando-se que o último califado de algum peso foi abolido em 1924 por Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, essa tentativa de ressurreição produzida por uma das vertentes mais sanguinárias do terrorismo islâmico injeta pânico nos governos da região e em seus aliados ocidentais.
Motivos de alarme não lhes faltam. Até então a norma e a tática dos grupos jihadistas consistiam em eclipsar-se após praticar um atentado, procurado não deixar pistas. Esse terrorismo clandestino de diáspora islâmica, apátrida, tem regido tanto a al-Qaeda, responsável pelos atentados de 11 de Setembro de 2001, como o Boko Haram, atuante na Nigéria, que consegue sumir com 200 crianças raptadas de uma escola.
Já o objetivo declarado do Isis é fincar pé, conquistar terreno e formar uma nação em meio a uma região em combustão perpétua. O contorno desse sonhado califado apaga do mapa a fronteira entre Síria e Iraque estabelecida há um século pelas potências coloniais da época, o Reino Unido e a França, que fatiaram o Oriente Médio em zonas de influência.
Para os militantes do Isis, o recurso à barbárie e a atrocidades representa uma forma de terror-ostentação do qual se orgulham. Dois anos atrás, quando ainda eram afiliados à al-Qaeda, lançaram uma série de ataques a prisões iraquianas, inclusive a Abu Ghraib de sinistra notoriedade, e arrebanharam criminosos para suas fileiras. Batizaram essa fase inicial de “Rompendo muros”. A fase atual de consolidação do território também tem nome: “Rompendo fronteiras”. Por atrair jovens de países ocidentais, tornou-se pesadelo dos grandes em Washington e capitais europeias.
Em recente artigo publicado no site da emissora árabe Al Jazeera, um ex-oficial do Exército britânico respondeu à indagação mais recorrente envolvendo a irrupção do Isis: por que nem a mídia nem os governos interessados perceberam a força que move o ideal de um califado terrorista? “No caso da mídia”, escreveu Crispian Cuss, hoje consultor no Oriente Médio, “uma espécie de fadiga decorrente de anos de violência acabou afetando a cobertura feita no Iraque e na Síria”. Ele credita à violência explicita do ISIL o fato de pouquíssimos repórteres terem se aproximado do bando
Já os serviços de inteligência ocidentais teriam falhado menos, pois enviaram repetidos alertas quanto à movimentação em curso. “Mas foram relatos sem audiência”, explica Cuss. “Assoberbados pela complexidade da região e acossados por um eleitorado cansado de aventuras militares longe de casa, os governos preferiram não encarar as consequências do novo quadro”, conclui o analista.
Apesar de o Isis pretender ressuscitar um tipo de regime que data do século 7, seus militantes são antenadíssimos com o mundo de 2014. Duas semanas atrás, pouco depois de Lionel Messi ter salvo a Argentina de um humilhante empate no 91º minuto do jogo contra o Irã, o craque argentino recebeu inesperado elogio e extravagante convite do grupo terrorista. “O Isis felicita Messi, o convida para unir-se à jihad e o premia com o titulo de pai goleador argentino e rei da América do Sul”, dizia a mensagem postada no Twitter.
Como se sabe, radicais islâmicos tem leniência zero com a depravação e decadência ocidental que associam à prática do futebol internacional. Tanto na Nigéria como em vilarejos do Quênia ocorreram ataques brutais contra moradores com a televisão ligada na Copa.
Mas o Irã, por ser um estado teocrático ultraxiita, é inimigo jurado da vertente sunita abraçada pelo Isis. Daí a saudação fraterna ao soldado Messi.
A agilidade e o uso maciço das redes sociais pela turma do califado surpreendem. Cientes da popularidade mundial da Copa, os terroristas têm se infiltrado no hashtag #WoldCup2014 para anunciar conquistas no campo de batalha. Ou, como relatou o “New York Times”, para postar o vídeo da decapitação de um policial iraquiano. “Esta é nossa bola. É feita de pele #WorldCup”, dizia a mensagem anexada ao vídeo.
Facebook, Tumblr, YouTube, WordPress, JustPaste, SoundCloud — nada falta ao leque de ferramentas da comunicação moderna utilizado pelos militantes do Isis. Uma pioneira pesquisa sobre a atividade on-line do grupo, de autoria da americana Rita Katz e disponível no site Intelligence Group, mapeia o fenômeno.
Trata-se apenas do começo. Na próxima Copa de 2018, em Moscou, o terrorismo do Isis talvez não precise mais de um Lionel Messi para demolir infiéis com um chute.
06 de julho de 2014
Dorrit Harazim, O Globo
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