Artigos - Movimento Revolucionário
A mim, pouco importa o que pensa o padeiro, contanto que ele saia da cama às quatro da manhã e me entregue o pão. Quero pão fresco e sem ideologias.
ANTIGAMENTE, em toda família que se prezasse havia um gay e ninguém morria disso. Se não fosse o filho, seria o neto. Se escapasse o neto, seria o primo. Ou o sobrinho. Ou o filho do primo.
Não havia reunião familiar – entendendo-se por familiares todos aqueles mais próximos, de convivência diária ou quase, somados à horda de desconhecidos que invadem os velórios e os casamentos – sem que aparecesse algum infante com trejeitos e posturas excêntricas, e inflexões vocais suspeitíssimas.
Os parentes – que até então se desconheciam com rigor – arrumavam logo interesse comum, e comentavam: “Esse não é o Fulano, filho de Beltrana? Nossa, como ele está... mudado”. “É, também achei. Parece que fez faculdade de design, mas agora mexe com teatro”. Esta era a vida, nos tempos bons em que a homossexualidade não era outra coisa senão homossexualidade. Uma coisa que existia.
Os tempos são outros e os gays, admita-se logo, não se contentam. As estripulias de Maio de 68 pretendiam libertar o erotismo dos rígidos padrões morais da sociedade burguesa e cristã (que, àquela altura, já nem eram tão rígidos, nem tão cristãos). Ao que parece, o objetivo foi atendido. Mas isso – é evidente – não basta. Agora os gays querem o contrário do que então queriam: querem casa, querem comida, querem roupa lavada. Querem aliança, filhos e seguro-saúde. Querem discutir relação e, quem sabe, sonhar com dias melhores e mais livres. De novo. Gays são reacionários. Vejam só.
Era uma vez, Guido Barilla, dono da fabricante de massas Barilla. Ao programa de rádio La Zanzara, ele comete a imprudência inaceitável de dizer o que pensa. Ninguém pode dizer o que pensa, salvo se disser que pensa o que pensam todos. Ele disse que “nunca faria um comercial com uma família homossexual... se os gays não gostarem, eles podem procurar outras marcas para comer".
Súbito: guerra mundial marcada para a próxima parada, choro, comoção, boicote, carnaval fora de época na Bahia. Os gays não comem mais as massas fabricadas pela Barilla. Os gays não comem mais as massas italianas. Os gays não comem mais os italianos, ponto.
Os jornais mancheteiam: “Declaração homofóbica de...”. “Gays se revoltam...”. “Associações homossexuais boicotam o talharim...”. A organização Arcigay declara seus princípios: “Todos somos do mesmo macarrão!”. Comovente. Tudo dentro do figurino. E tudo porque o dono de uma empresa achou por bem dizer os seus valores e, não bastasse, contra toda etiqueta mercadológica – o que já seria de se respeitar pela coragem –, deixar claro: “Quem não gostar, não compre meus produtos”. Isso é civilizado, e quem se escandaliza deveria ter a prudência de considerar umas palavrinhas. Liberdade. De. Escolha.
Os consumidores têm opções bastante razoáveis. A primeira delas seria ignorar os tais valores familiares do empresário e continuar a consumir os (ótimos) produtos da marca. Não me consta que lasanha tenha sexo. E não faço idéia se o produtor de café que eu bebo, ou se o criador de porcos dos quais eu como o bacon são cristãos, conservadores e virtuosos. Custa acreditar que o CEO da Coca-Cola, roedores à parte, leia os mesmos livros que eu leio e vá à Missa aos Domingos (vai saber se não é judeu).
A mim, pouco importa o que pensa o padeiro, contanto que ele saia da cama às quatro da manhã e me entregue o pão. Quero pão fresco e sem ideologias. A graça do livre mercado é essa: funciona, a despeito das boas intenções. O dono da venda pode detestar os clientes, mas ele precisa dos clientes mais do que os clientes precisam dele. Há outras vendas num raio de cinco quilômetros.
Nós temos ainda uma segunda razoável opção: deixar mesmo de consumir a pasta do senhor Barilla. Sem grandes desesperos. Compre-se de outra marca. Isso também é civilizado. E civilizado é entender que um empresário – e um açougueiro, e um bispo, e um contador – tem seus valores e que não há nada de ruim, nisso. E não há nada de especialmente ruim em torná-los públicos.
Mas a civilização é pouco para os ativistas. Eles não querem comer o penne do senhor Barilla e desprezar suas opiniões. Eles não querem deixar de comer o penne e igualmente desprezar suas opiniões. Eles querem o fim do penne do senhor Barilla, querem que o senhor Barilla seja socialmente execrado por pensar o que pensa e dizer o que diz, com penne ou sem penne. E funciona. Dois dias se passam e lá está o fabricante de massas a se retratar, e a dizer que não disse o que disse, e a dizer que não pensa o que de fato pensa.
Não defendo a liberdade do senhor Barilla apenas porque seus valores, em parte, coincidem com os meus. Tivesse eu uma fábrica de macarrão e meus comerciais seriam, sim, à moda da casa: papai, mamãe, filhinhos. Todos felizes. Venderia menos, mas ficaria mais satisfeito com a minha consciência.
Defendo a liberdade do italiano como defendo a liberdade de quem quer que seja dizer o que pensa e arcar com as conseqüências respectivas. E falar de conseqüências não é falar de processos judiciais. Falo de uma liberdade radical, contanto que seja radical para todos, e não para alguns. Gays adoram dizer o que pensam, mas detestam ouvir o que pensam aqueles que não pensam como eles. Gays são reacionários. Se há uma causa gay, a causa é uma só: gay.
06 de outubro de 2013
Gustavo Nogy
Publicado no site Ad Hominem
Nenhum comentário:
Postar um comentário