"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 19 de março de 2015

OS FATOS EM DECOMPOSIÇÃO NA REALIDADE DA IMPRENSA





Lou Bloom, personagem de Jake Gyllenhaal no filme “Abutre”, até outro dia em exibição nos cinemas de Belo Horizonte, é um desempregado que, para sobreviver, faz qualquer negócio. Ao tomar conhecimento de grave acidente de trânsito, dirige-se ao local e assiste de perto às filmagens das cenas mais sangrentas, registradas por alguns freelancers. Essas cenas são, em seguida, negociadas com a diretora de um canal de televisão com especialização nesse tipo de reportagem.

Depois de conversar com um desses freelancers, e inteirando-se em detalhes sobre o que faziam, Lou, finalmente, encontra o caminho para conquistar poder e, sobretudo, dinheiro, mas sem nenhuma preocupação com a ética ou com a legalidade do que empreitará. Adquire uma câmera singela e um rádio comunicador e, com ele, passa a acompanhar a movimentação da polícia e a rastrear os principais crimes, principalmente à noite, registrando-os com sua lente, integrando-se, com sucesso, ao temido time dos chamados “jornalistas independentes” (cujo exemplo light poderia ser, hoje, o personagem de Paulo Betti na novela “Império”…).

O êxito obtido o transforma num abutre – uma ave de rapina, com poder de voo, bico forte e com a cabeça e pescoço nus, que se alimenta de animais em decomposição. Abutre pode designar, também, o homem sem escrúpulos, usurário, capaz de desejar ou facilitar a morte de um parente para receber sua herança (qualquer semelhança com alguns políticos é mera coincidência…).

SUBMUNDO DO JORNALISMO

No submundo do jornalismo criminal, Lou Bloom alia-se à excelente parceira Nina Romina, representada pela atriz Rene Russo, que era, exatamente, a diretora do jornal matutino desse canal de televisão especializado na exploração desse submundo, motivo principal da sua audiência e, obviamente, do seu bom faturamento. Quanto mais sangue, mais interesse demonstrava a emissora nas filmagens de Lou.

Os “jornalistas independentes” a que me referi acima, se não estou enganado, surgiram nos Estados Unidos, e, com eles, a imprensa amarela, que no Brasil ganhou o nome de “marrom”. A partir daí, o jornalismo vive o impasse entre ser rentável e, igualmente, essencial à sociedade – uma tarefa, sem dúvida, difícil para os que labutam nele, mas perfeitamente possível para os que o encaram como serviço público.

O filme me fez refletir mais ainda sobre a desafiante e perigosa profissão, que nunca teve – como alguns imaginam – nenhum glamour, e sobre os que a exercem, que são sempre as primeiras vítimas dos regimes totalitários. Hoje (olhe aí a associação de ideias, leitor…), o personagem de Jake Gyllenhaal já não teria tanta dificuldade para ganhar a vida filmando cenas sangrentas para, depois, levá-las ao canal de televisão especializado em exibi-las, ou, então, à internet, na qual pontificam os jornais online, os blogs etc, mas, sobretudo, as redes sociais.

ESTÔMAGO DE ABUTRE

O noticiário que os canais de comunicação nos oferecem está quase exigindo um estômago de abutre, como o de Lou Bloom. Não me refiro apenas ao noticiário do nosso pobre e generoso Brasil, mas ao noticiário do mundo inteiro. Especialmente neste instante, o que nós, jornalistas, levamos ao conhecimento do distinto público está gotejando sangue. Gutenberg – se voltasse à vida – morreria de doída decepção…

Tomara que essa sangria, afinal desatada, lave de vez não só a nossa alma, mas o nosso território, e faça renascer no país uma nova era, na qual pontifiquem os sentimentos de ética e solidariedade.


19 de março de 2015
Acílio Lara Resende
O Tempo

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