Lou Bloom, personagem de Jake Gyllenhaal no filme “Abutre”, até outro dia em exibição nos cinemas de Belo Horizonte, é um desempregado que, para sobreviver, faz qualquer negócio. Ao tomar conhecimento de grave acidente de trânsito, dirige-se ao local e assiste de perto às filmagens das cenas mais sangrentas, registradas por alguns freelancers. Essas cenas são, em seguida, negociadas com a diretora de um canal de televisão com especialização nesse tipo de reportagem.
Depois de conversar com um desses freelancers, e inteirando-se em detalhes sobre o que faziam, Lou, finalmente, encontra o caminho para conquistar poder e, sobretudo, dinheiro, mas sem nenhuma preocupação com a ética ou com a legalidade do que empreitará. Adquire uma câmera singela e um rádio comunicador e, com ele, passa a acompanhar a movimentação da polícia e a rastrear os principais crimes, principalmente à noite, registrando-os com sua lente, integrando-se, com sucesso, ao temido time dos chamados “jornalistas independentes” (cujo exemplo light poderia ser, hoje, o personagem de Paulo Betti na novela “Império”…).
O êxito obtido o transforma num abutre – uma ave de rapina, com poder de voo, bico forte e com a cabeça e pescoço nus, que se alimenta de animais em decomposição. Abutre pode designar, também, o homem sem escrúpulos, usurário, capaz de desejar ou facilitar a morte de um parente para receber sua herança (qualquer semelhança com alguns políticos é mera coincidência…).
SUBMUNDO DO JORNALISMO
No submundo do jornalismo criminal, Lou Bloom alia-se à excelente parceira Nina Romina, representada pela atriz Rene Russo, que era, exatamente, a diretora do jornal matutino desse canal de televisão especializado na exploração desse submundo, motivo principal da sua audiência e, obviamente, do seu bom faturamento. Quanto mais sangue, mais interesse demonstrava a emissora nas filmagens de Lou.
Os “jornalistas independentes” a que me referi acima, se não estou enganado, surgiram nos Estados Unidos, e, com eles, a imprensa amarela, que no Brasil ganhou o nome de “marrom”. A partir daí, o jornalismo vive o impasse entre ser rentável e, igualmente, essencial à sociedade – uma tarefa, sem dúvida, difícil para os que labutam nele, mas perfeitamente possível para os que o encaram como serviço público.
O filme me fez refletir mais ainda sobre a desafiante e perigosa profissão, que nunca teve – como alguns imaginam – nenhum glamour, e sobre os que a exercem, que são sempre as primeiras vítimas dos regimes totalitários. Hoje (olhe aí a associação de ideias, leitor…), o personagem de Jake Gyllenhaal já não teria tanta dificuldade para ganhar a vida filmando cenas sangrentas para, depois, levá-las ao canal de televisão especializado em exibi-las, ou, então, à internet, na qual pontificam os jornais online, os blogs etc, mas, sobretudo, as redes sociais.
ESTÔMAGO DE ABUTRE
O noticiário que os canais de comunicação nos oferecem está quase exigindo um estômago de abutre, como o de Lou Bloom. Não me refiro apenas ao noticiário do nosso pobre e generoso Brasil, mas ao noticiário do mundo inteiro. Especialmente neste instante, o que nós, jornalistas, levamos ao conhecimento do distinto público está gotejando sangue. Gutenberg – se voltasse à vida – morreria de doída decepção…
Tomara que essa sangria, afinal desatada, lave de vez não só a nossa alma, mas o nosso território, e faça renascer no país uma nova era, na qual pontifiquem os sentimentos de ética e solidariedade.
19 de março de 2015
Acílio Lara Resende
O Tempo
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