Houve tempo em que na Europa enchiam-se navios com “loucos” e lançavam-se esses barcos de desrazão numa viagem perpétua pelos rios, sem porto que os recebesse, sem pouso, terra ou esperança. Hoje a Europa e a Ásia deixam que naveguem — desgraçados da vida, passageiros da morte muito pouco adiada —, os tristes povos da água. Barcos como esquifes, negreiros de espanto. Os povos da água.
Há portos. No de saída, pequena esperança. É preciso fugir, navegar pela vida, correr da miséria, da perseguição política, da extinção de etnias.
Há portos. No de saída, pequena esperança. É preciso fugir, navegar pela vida, correr da miséria, da perseguição política, da extinção de etnias.
Essa é a hora em que os passageiros do horror dão tudo o que têm, entregam seus poucos bens a “facilitadores”, o primeiro rosto do Mal que verão. Dão tudo pela esperança da Europa ou de outra parte qualquer, onde serão acolhidos, aquecidos, alimentados e encontrarão trabalho e vida.
Esse é o segundo porto. Imaginado e cheio da esperança triste dos que fogem. Mas esperança. O terceiro é aquele em que não aportam — indesejados, empurrados para o mar sempre de novo. Ou são recebidos, acampados e abandonados no tempo. No Mar de Andamão na Ásia, no Mediterrâneo europeu estão os terceiros portos, os do desespero.
Da Síria e do norte da África saem milhares de pessoas para a aventura extrema, proa contra o porto de Lampedusa, no sul da Itália. Os muitos que não chegam é porque ficaram pelo caminho, mortos no grande mar. Os que conseguem atravessar são postos em acampamentos em que o esquecimento tem todos os matizes da tristeza.
Da Síria e do norte da África saem milhares de pessoas para a aventura extrema, proa contra o porto de Lampedusa, no sul da Itália. Os muitos que não chegam é porque ficaram pelo caminho, mortos no grande mar. Os que conseguem atravessar são postos em acampamentos em que o esquecimento tem todos os matizes da tristeza.
Esquecidos por quem poderia encaminhá-los para algum lugar onde a vida se conjugue na voz ativa. Pelo mundo que se indignou pela televisão, e depois já não se pergunta mais onde estarão, sofrendo que dores ou rindo que alegrias. E esquecidos de si mesmos. Histórias, identidades se abismando no escuro. Tanto podem o tempo e o abandono.
Esse é o povo da água da Europa. Há o outro, o da Ásia. Os Rohingya, etnia expulsa de Mianmar e lançada ao Mar de Andamão, onde todos os portos se fecham brutalmente, em sequência de negativas geladas.
São, ambas as navegações, faces do Mal. Será a primeira menor do que a segunda? É preciso perguntar a eles. Só quem não sofre a grande dor pode achar que uma tal matemática faz sentido, não é apenas mais uma volta no torniquete da crueldade. É verdade, sem dúvida, que o Mal começou no porto de embarque. Era lá que estavam a guerra, a miséria, a tortura, o tráfico, a intolerância religiosa e étnica. Verdade também que se as condições de vida, aí, fossem decentes, sem violências, com pão, trabalho e autonomia, sem corrupção, os povos da água não teriam precisado fugir. Mas não são. Não se deve abandonar a esperança de que venham a se tornar. Não se deve abandonar a esperança — ponto. Mas não é para já. Nesse meio tempo os autodegredados fogem para a salvação. Fazem parte, esses, daqueles quatro bilhões que a globalização selvagem já pôs fora do mundo. Agora também estão sendo postos fora da terra. No exílio do mar.
As terras de acolhimento, por sua vez, declaram que não têm condições de receber essas gentes. Custam caro. Problemas de logística. Mercado de trabalho. São países estruturados, estariam importando um desarranjo nos seus hábitos e modos de convivência.
Esse é o povo da água da Europa. Há o outro, o da Ásia. Os Rohingya, etnia expulsa de Mianmar e lançada ao Mar de Andamão, onde todos os portos se fecham brutalmente, em sequência de negativas geladas.
Será que na Malásia...? — Não! Na Tailândia, quem sabe? — Não! E a Indonésia? — A Indonésia diz não. Pode-se imaginar essa circunavegação do sofrimento? Do espanto aterrorizado? Um porto se aproxima.
Há um farol! O farol se apaga, o porto desaparece, resta a bruma que cega e a noite que assusta. Vão à deriva, são milhares, têm frio e fome. E sede. Bebem sua própria urina. Giram pelo mar, giram pelo mar. Não têm mais onde chegar. Já não têm aonde ir.
São, ambas as navegações, faces do Mal. Será a primeira menor do que a segunda? É preciso perguntar a eles. Só quem não sofre a grande dor pode achar que uma tal matemática faz sentido, não é apenas mais uma volta no torniquete da crueldade. É verdade, sem dúvida, que o Mal começou no porto de embarque. Era lá que estavam a guerra, a miséria, a tortura, o tráfico, a intolerância religiosa e étnica. Verdade também que se as condições de vida, aí, fossem decentes, sem violências, com pão, trabalho e autonomia, sem corrupção, os povos da água não teriam precisado fugir. Mas não são. Não se deve abandonar a esperança de que venham a se tornar. Não se deve abandonar a esperança — ponto. Mas não é para já. Nesse meio tempo os autodegredados fogem para a salvação. Fazem parte, esses, daqueles quatro bilhões que a globalização selvagem já pôs fora do mundo. Agora também estão sendo postos fora da terra. No exílio do mar.
As terras de acolhimento, por sua vez, declaram que não têm condições de receber essas gentes. Custam caro. Problemas de logística. Mercado de trabalho. São países estruturados, estariam importando um desarranjo nos seus hábitos e modos de convivência.
Entende-se. Mas então levemos o argumento até o fim: países estruturados não querem sofrer desarranjos, por isso não recebem; logo, cabe aos países de estruturas desarranjadas acolher, porque para eles não faz diferença.
Esse raciocínio é o auge da perversidade e da frieza na exclusão. Os países europeus, de consciência culpada, estão tentando estabelecer cotas. É preciso sofrer por cotas, agora, lançar-se ao mar cotizadamente. Com grande disciplina. Se não não dá. Pensar que isso passa por ser solução...
À globalização da indiferença temos como opor a mundialização da ternura, a universalização da solidariedade. É imperioso. Ou nossa civilização, como a conhecemos há milênios e a amamos, cai diante dos novos bárbaros, que nem precisam se deslocar. Meia dúzia de selvagens operações financeiras podem consumar e consumir o mundo que tem sido o nosso. Já quase aconteceu. É urgente generalizar a compreensão amorosa do mundo e da vida.
Leva tempo. Muito tempo. Os povos da água não sobreviverão à nossa demora. Mas talvez um dia outros não precisem sair para o mar apostando contra a morte.
07 de junho de 2015
Márcio Tavares D'amaral
À globalização da indiferença temos como opor a mundialização da ternura, a universalização da solidariedade. É imperioso. Ou nossa civilização, como a conhecemos há milênios e a amamos, cai diante dos novos bárbaros, que nem precisam se deslocar. Meia dúzia de selvagens operações financeiras podem consumar e consumir o mundo que tem sido o nosso. Já quase aconteceu. É urgente generalizar a compreensão amorosa do mundo e da vida.
Leva tempo. Muito tempo. Os povos da água não sobreviverão à nossa demora. Mas talvez um dia outros não precisem sair para o mar apostando contra a morte.
07 de junho de 2015
Márcio Tavares D'amaral
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