A ocupação da cidade síria de Palmyra por militantes do Estado Islâmico trouxe o medo de que os invasores, como já fizeram em outros lugares, destruam monumentos e obras de arte de civilizações antigas. O que no caso de Palmyra, patrimônio cultural da humanidade, seria um crime especialmente doloroso. Os soldados islâmicos teriam se comprometido a não tocar em uma pedra tombada pela Unesco, mas a ameaça permanece.
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Nada a ver, mas me lembrei de ter lido que na revolta popular de 1830 contra o reinado de Charles X, na França, intelectuais e artistas ocuparam o museu do Louvre para proteger seus tesouros do povo revoltado. Enquanto nas ruas de Paris a massa sublevada conseguia, em três dias de agitação, derrubar o rei Charles X e acabar com a restauração dos Bourbons – e, como efeito colateral, inaugurar uma monarquia constitucional com a ascensão de Louis-Philippe d’Orléans – os artistas montavam guarda dentro do museu, para manter a Cultura a salvo da História, que acontecia lá fora.
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Mas contam que – intelectuais e artistas sendo como são – não demorou para que surgissem brigas entre os ocupantes do Louvre, não por questões políticas, mas por diferenças estéticas e estilísticas. As brigas chegavam à troca de socos, de sorte que os tesouros do Louvre estavam mais ameaçados pela violência dos seus protetores do que pela violência das ruas.
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O pintor Delacroix foi um dos entusiastas do levante de 1830 que, entre as barricadas e o Louvre, preferiu a guarda do museu. Mas é dele a grande obra inspirada pelo evento, a pintura A Liberdade Guiando o Povo, com a figura de Marianne, símbolo da Revolução Francesa, com os seios nus, à frente dos revoltosos. Ao contrário do que se pensa, a participação popular na revolta de 1830 foi maior do que em 1789, data oficial da Revolução, e Delacroix deixa isso claro com o destaque que dá a figuras do proletariado no seu quadro. Em que não se vê nenhum burguês seguindo Marianne.
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Além das outras novidades da grande pintura alegórica de Delacroix que chocaram os críticos da época, como a caracterização realista de trabalhadores e a glorificação da revolta, há um detalhe anatômico importante: Marianne tem cabelo embaixo do braço erguido que segura a bandeira tricolor. O símbolo da Liberdade de Delacroix tem cabelo no sovaco. O que não deixa de também ser revolucionário.
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Cultura é o que fica, nas pedras antigas de Palmyra ou na coleção de arte do Louvre. História é o que passa e avança, muitas vezes com violência. Cultura cria, História destrói, e não tem o menor interesse em arte. Elas podem se complementar, mas nunca será uma convivência tranquila.
07 de junho de 2015
Luís Fernando Veríssimo
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Nada a ver, mas me lembrei de ter lido que na revolta popular de 1830 contra o reinado de Charles X, na França, intelectuais e artistas ocuparam o museu do Louvre para proteger seus tesouros do povo revoltado. Enquanto nas ruas de Paris a massa sublevada conseguia, em três dias de agitação, derrubar o rei Charles X e acabar com a restauração dos Bourbons – e, como efeito colateral, inaugurar uma monarquia constitucional com a ascensão de Louis-Philippe d’Orléans – os artistas montavam guarda dentro do museu, para manter a Cultura a salvo da História, que acontecia lá fora.
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Mas contam que – intelectuais e artistas sendo como são – não demorou para que surgissem brigas entre os ocupantes do Louvre, não por questões políticas, mas por diferenças estéticas e estilísticas. As brigas chegavam à troca de socos, de sorte que os tesouros do Louvre estavam mais ameaçados pela violência dos seus protetores do que pela violência das ruas.
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O pintor Delacroix foi um dos entusiastas do levante de 1830 que, entre as barricadas e o Louvre, preferiu a guarda do museu. Mas é dele a grande obra inspirada pelo evento, a pintura A Liberdade Guiando o Povo, com a figura de Marianne, símbolo da Revolução Francesa, com os seios nus, à frente dos revoltosos. Ao contrário do que se pensa, a participação popular na revolta de 1830 foi maior do que em 1789, data oficial da Revolução, e Delacroix deixa isso claro com o destaque que dá a figuras do proletariado no seu quadro. Em que não se vê nenhum burguês seguindo Marianne.
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Além das outras novidades da grande pintura alegórica de Delacroix que chocaram os críticos da época, como a caracterização realista de trabalhadores e a glorificação da revolta, há um detalhe anatômico importante: Marianne tem cabelo embaixo do braço erguido que segura a bandeira tricolor. O símbolo da Liberdade de Delacroix tem cabelo no sovaco. O que não deixa de também ser revolucionário.
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Cultura é o que fica, nas pedras antigas de Palmyra ou na coleção de arte do Louvre. História é o que passa e avança, muitas vezes com violência. Cultura cria, História destrói, e não tem o menor interesse em arte. Elas podem se complementar, mas nunca será uma convivência tranquila.
07 de junho de 2015
Luís Fernando Veríssimo
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