Em educação cívica voltada para os direitos e deveres da cidadania ainda engatinhamos
Apesar dos mais de 30 anos de redemocratização, ainda vivemos sob o império do autoritarismo. O chocante é que muitos dos que o praticam não se consideram autoritários. Essa é uma questão complexa que envolve interpretação e comportamento, além das regras existentes. Envolve também a precária educação cívica dos brasileiros, que não têm ideia de seus direitos e deveres.
Nosso autoritarismo tem raízes profundas no Brasil colônia, onde o caráter subalterno de nossa gente era transversal às classes - desde a senzala, passando pela casa-grande, até os paços do reino. Cada um esmagando o menor com o abuso de poder e de autoridade.
Mesmo com as lutas, revoluções e reconstruções das instituições políticas visando ao estabelecimento de regime democrático concreto, o autoritarismo resiste em nossa sociedade de forma bastante pronunciada e se expressa de diversas formas e em vários lugares: no dia a dia das cidades; nas repartições públicas; nas escolas; nas redes sociais; nas relações de consumo; na Justiça e na política; no “neopeleguismo” dos sindicatos de trabalhadores e de patrões, dominados pelo clientelismo.
Nosso autoritarismo está expresso no ônibus que não para no ponto. Na recepção grosseira ao paciente humilde que chega ao hospital público. No comportamento do Estado, que manipula, empreende, financia, regula, coopta, suborna, faz vista grossa para o corporativismo e elege campeões que ganham medalhas no sistema financeiro estatal.
No campo da Justiça, o autoritarismo revela-se no ativismo judicial, que é ir além do que prega o mandamento constitucional, e se expressa, por exemplo, ao se desconsiderarem as novas determinações do Código de Processo Civil de estimular o entendimento entre as partes. A condução coercitiva independente de prévia intimação e mesmo negativa injustificada a comparecer para depor também o são. Para dizer o mínimo.
Existe ainda o ativismo burocrático, que cobra atitudes da cidadania a partir de interpretações largas e ilegais do que seriam as regras e se expressa por meio decisões sem o devido amparo legal. A mesma burocracia que é resistente aos programas de desburocratização e impõe uma cerca de proteção aos seus interesses, senta-se em cima das licenças ambientais por conta de seus interesses políticos ou ideológicos.
O corporativismo que submete o povo a greves intermináveis ou a operações tartaruga no serviço público, sem que haja uma intervenção decisiva da autoridade judicial, também se mostra egoísta e autoritário. A omissão da Justiça nesses casos é imperdoável. Também o é o paternalismo da legislação trabalhista, que impede acordos entre patrões e empregados e impõe uma tutela que nem sempre é adequada aos interesses de quem trabalha.
Mas o autoritarismo não reside apenas no sistema judiciário, um dos mais caros do mundo e um dos menos eficientes, e na burocracia, cuja produtividade é risível quando voltada para o cidadão e admirável quando dedicada à cobrança de tributos. O autoritarismo também propõe e incentiva o patrulhamento ideológico. Quem está fora da curva do pensamento politicamente correto pode ser trucidado.
O império do autoritarismo tem ainda sua face na superficialidade das análises e das opiniões. Não sabemos de nada e por isso sabemos de tudo. Muitos têm apenas palavras vazias para todas as opiniões, que devem ser dadas num mar de mediocridade. Achar que todo político é ladrão e que todas as opiniões que nos aborrecem são vendidas também é autoritário. Assim como parar em fila dupla e avançar o sinal de trânsito.
É autoritário concordar com a injustiça quando o réu nos desagrada. Da mesma forma, é autoritário condenar a justiça quando o réu nos é simpático. O autoritarismo está presente ainda nas interpretações de que tudo o que o Poder Executivo propõe deve ser aceito sem questionamento no Legislativo, como se o “hiperpresidencialismo” que nos escraviza devesse ser a regra. No mínimo, revelamos ignorância do papel dos Poderes da República e de suas autonomias.
Nosso autoritarismo está cristalizado na relação subalterna entre a sociedade e o Estado. Antes, essa relação decorria de um arranjo de oligarquias que controlavam o País. Mais recentemente, decorre do paternalismo de esquerda, que, ao tempo em que aparelha a máquina pública, trata a cidadania como dependente, e não como os devidos patrões da Nação.
Também é lamentável ver a burocracia, sob a complacência da Justiça, ganhar salários acima do teto constitucional, em prova cabal da omissão e do desrespeito aos interesses da cidadania. Assim como usar a corrupção para financiar partidos e campanhas ou usar as verbas do Fundo Partidário para pagar mordomias.
No sistema político, o sistema partidário caótico e sua absurda fragmentação não são uma expressão saudável da democracia. São um produto da submissão do debate de ideias e programas ao interesse rasteiro de muitos caciques e chefes políticos que fazem qualquer negócio pelo poder. Como disse o político britânico Benjamin Disraeli, “danem-se os princípios, o que interessa é o partido”. Prática de muitos que governaram o País nas últimas décadas.
Estamos em lenta evolução, mas ainda na infância da democracia. E engatinhando numa creche de baixíssima qualidade quando se trata de educação cívica voltada para os direitos e os deveres da cidadania. Ainda levará tempo para nos livrarmos desse carma. Em longo prazo, com melhor educação e o trabalho consciente de formadores de opinião talvez possamos vencer esta etapa da nossa construção social cidadã e democrática, derrotando o autoritarismo que nos contamina.
29 de agosto de 2016
MURILLO DE ARAGÃO É MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, ADVOGADO E CONSULTOR
Estadão
Apesar dos mais de 30 anos de redemocratização, ainda vivemos sob o império do autoritarismo. O chocante é que muitos dos que o praticam não se consideram autoritários. Essa é uma questão complexa que envolve interpretação e comportamento, além das regras existentes. Envolve também a precária educação cívica dos brasileiros, que não têm ideia de seus direitos e deveres.
Nosso autoritarismo tem raízes profundas no Brasil colônia, onde o caráter subalterno de nossa gente era transversal às classes - desde a senzala, passando pela casa-grande, até os paços do reino. Cada um esmagando o menor com o abuso de poder e de autoridade.
Mesmo com as lutas, revoluções e reconstruções das instituições políticas visando ao estabelecimento de regime democrático concreto, o autoritarismo resiste em nossa sociedade de forma bastante pronunciada e se expressa de diversas formas e em vários lugares: no dia a dia das cidades; nas repartições públicas; nas escolas; nas redes sociais; nas relações de consumo; na Justiça e na política; no “neopeleguismo” dos sindicatos de trabalhadores e de patrões, dominados pelo clientelismo.
Nosso autoritarismo está expresso no ônibus que não para no ponto. Na recepção grosseira ao paciente humilde que chega ao hospital público. No comportamento do Estado, que manipula, empreende, financia, regula, coopta, suborna, faz vista grossa para o corporativismo e elege campeões que ganham medalhas no sistema financeiro estatal.
No campo da Justiça, o autoritarismo revela-se no ativismo judicial, que é ir além do que prega o mandamento constitucional, e se expressa, por exemplo, ao se desconsiderarem as novas determinações do Código de Processo Civil de estimular o entendimento entre as partes. A condução coercitiva independente de prévia intimação e mesmo negativa injustificada a comparecer para depor também o são. Para dizer o mínimo.
Existe ainda o ativismo burocrático, que cobra atitudes da cidadania a partir de interpretações largas e ilegais do que seriam as regras e se expressa por meio decisões sem o devido amparo legal. A mesma burocracia que é resistente aos programas de desburocratização e impõe uma cerca de proteção aos seus interesses, senta-se em cima das licenças ambientais por conta de seus interesses políticos ou ideológicos.
O corporativismo que submete o povo a greves intermináveis ou a operações tartaruga no serviço público, sem que haja uma intervenção decisiva da autoridade judicial, também se mostra egoísta e autoritário. A omissão da Justiça nesses casos é imperdoável. Também o é o paternalismo da legislação trabalhista, que impede acordos entre patrões e empregados e impõe uma tutela que nem sempre é adequada aos interesses de quem trabalha.
Mas o autoritarismo não reside apenas no sistema judiciário, um dos mais caros do mundo e um dos menos eficientes, e na burocracia, cuja produtividade é risível quando voltada para o cidadão e admirável quando dedicada à cobrança de tributos. O autoritarismo também propõe e incentiva o patrulhamento ideológico. Quem está fora da curva do pensamento politicamente correto pode ser trucidado.
O império do autoritarismo tem ainda sua face na superficialidade das análises e das opiniões. Não sabemos de nada e por isso sabemos de tudo. Muitos têm apenas palavras vazias para todas as opiniões, que devem ser dadas num mar de mediocridade. Achar que todo político é ladrão e que todas as opiniões que nos aborrecem são vendidas também é autoritário. Assim como parar em fila dupla e avançar o sinal de trânsito.
É autoritário concordar com a injustiça quando o réu nos desagrada. Da mesma forma, é autoritário condenar a justiça quando o réu nos é simpático. O autoritarismo está presente ainda nas interpretações de que tudo o que o Poder Executivo propõe deve ser aceito sem questionamento no Legislativo, como se o “hiperpresidencialismo” que nos escraviza devesse ser a regra. No mínimo, revelamos ignorância do papel dos Poderes da República e de suas autonomias.
Nosso autoritarismo está cristalizado na relação subalterna entre a sociedade e o Estado. Antes, essa relação decorria de um arranjo de oligarquias que controlavam o País. Mais recentemente, decorre do paternalismo de esquerda, que, ao tempo em que aparelha a máquina pública, trata a cidadania como dependente, e não como os devidos patrões da Nação.
Também é lamentável ver a burocracia, sob a complacência da Justiça, ganhar salários acima do teto constitucional, em prova cabal da omissão e do desrespeito aos interesses da cidadania. Assim como usar a corrupção para financiar partidos e campanhas ou usar as verbas do Fundo Partidário para pagar mordomias.
No sistema político, o sistema partidário caótico e sua absurda fragmentação não são uma expressão saudável da democracia. São um produto da submissão do debate de ideias e programas ao interesse rasteiro de muitos caciques e chefes políticos que fazem qualquer negócio pelo poder. Como disse o político britânico Benjamin Disraeli, “danem-se os princípios, o que interessa é o partido”. Prática de muitos que governaram o País nas últimas décadas.
Estamos em lenta evolução, mas ainda na infância da democracia. E engatinhando numa creche de baixíssima qualidade quando se trata de educação cívica voltada para os direitos e os deveres da cidadania. Ainda levará tempo para nos livrarmos desse carma. Em longo prazo, com melhor educação e o trabalho consciente de formadores de opinião talvez possamos vencer esta etapa da nossa construção social cidadã e democrática, derrotando o autoritarismo que nos contamina.
29 de agosto de 2016
MURILLO DE ARAGÃO É MESTRE EM CIÊNCIA POLÍTICA, DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, ADVOGADO E CONSULTOR
Estadão
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