"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

BOTAFOGO VENDE VITINHO E NOS LEMBRA UMA CRÔNICA ETERNA DE NELSON RODRIGUES



 
Acabam de noticiar que Vitinho, jovem revelação do campeonato, que mal completou 19 anos, acaba de ser vendido por 10 milhões de euros. Na semana passada empresas especializadas divulgavam que, mantendo a média de suas apresentações, o jovem valeria cerca de 70 milhões de reais em 2014. O Botafogo não conseguiu manter o jogador, provavelmente não receberá o dinheiro devido as penhoras e vê a chance de títulos cada vez mais remota.
Encontro esta crônica dos anos 60 de Nelson Rodrigues e me pergunto: o que mudou na mentalidade cartola, de lá para hoje?
 
###
 
A CAVEIRA NO ESPELHO
Nelson Rodrigues

Amigos, sou um admirador profundo do cinema italiano. Bem me lembro dos meus tempos de menino. Sempre que havia uma fita de Francesca Bertini, lá estava eu, com meus seis, sete anos salubérrimos.
E a Bertini deslumbrava a minha infância. Santa e, como diria Augusto dos Anjos, abominabilíssima senhora! No momento mais dramático dos filmes, ela saía pelas portas, aos urros e às patadas.
E se alguém a beijava, eis a vamp antediluviana querendo subir pelas paredes como uma lagartixa profissional.
 
Assim era no tempo da cena muda. Mas, com a passagem dos anos, o cinema foi mudando. Menos o italiano, que continuou fiel ao próprio povo.
A Bertini passou. Mas outras a substituíram, e seguindo uma linha parecida. E o cinema atual da Itália está cada vez mais feroz e cada vez mais esbravejante.
Pode-se dizer que ele repôs o urro no centro do drama humano. Suas atrizes, ainda as mais sóbrias, são desgrenhadas viúvas sicilianas. Francesca Bertini está mais viva, mais atual, mais obsessiva do que nunca.

Faço toda esta volta pelo cinema italiano para chegar ao Botafogo. É, com efeito, o clube mais passional, mais siciliano, mais calabrês do futebol brasileiro.
Um tricolor pode torcer em surdina, pode cochichar, pode suspirar. O botafoguense, porém, é de uma extroversão ululante como nos velórios da Sicília. Lembro-me de uma vizinha que torcia pelo Botafogo.
Por uma funesta coincidência, casara-se com um rubro-negro. E o casal discutia muito sobre futebol. Uma vez, houve um Flamengo x Botafogo. E não sei se ganhou o Flamengo, ou se ganhou o Botafogo.

Só sei que, na volta do jogo, os dois vinham brigando. Foi lindo quando desembarcaram do táxi.
A doce vizinha berrava: — “Te bebo o sangue!”. Tiveram de chamar a radiopatrulha ou do contrário ela descascaria a carótida do marido para chupá-la como laranja.
Nessa implacabilidade está o charme da torcida botafoguense. Esse tom, essa efusão, essa agressividade, essa ira, ou estertor de ópera, de filme italiano, é que dá o tom justo aos homens de General Severiano.

E, além disso, como o italiano da anedota, o alvinegro autêntico paga para sofrer. O alvinegro autêntico, repito, prefere a catástrofe. E, quando o time perde, ele se realiza. Pode clamar, espernear, arrancar os cabelos, amaldiçoar e soltar os cães de sua ira. É a vocação da calamidade que torna inconfundível o botafoguense irreversível.

Na Sicília, quando um moribundo escapa de morrer, a quase viúva cai em frustração. Ela se sente espoliada do seu defunto e respectivo velório. É a mesma tristeza do alvinegro que não tem nenhum pretexto para soluçar as suas mágoas clubísticas. Felizmente, este ano o Botafogo perdeu o tricampeonato. E seus fanáticos podem descarregar, em todas as direções, o seu potencial de ira.

Cabe então a pergunta: — e por que o Botafogo perdeu o tricampeonato? Ora, eu não sou botafoguense e posso me dar ao luxo de um mínimo de isenção e de objetividade. A meu ver, o Botafogo começou a perder o tricampeonato quando negociou Didi.
Há uma verdade eterna, em futebol, que é a seguinte: — todo clube precisa ter uns tantos bens inegociáveis. E não há preço que pague um bicampeão mundial. Didi teria que envelhecer em General Severiano até se converter numa múmia gagá.

O Botafogo continuou a perder o tricampeonato quando pensou, simplesmente pensou, em vender Garrincha. Um clube que admite, mesmo como hipótese, a venda de um Mané tem mesmo a tal vocação da catástrofe.
O Botafogo perdeu de vez o tricampeonato quando vendeu Amarildo. Negociando o “Possesso”, que marcou os dois gols contra a Espanha, o alvinegro estava querendo ver, no espelho, a própria caveira. Há também a ausência de Garrincha. Mas o joelho do Mané não é um problema cirúrgico, e repito: — o joelho é apenas um castigo.

Agora a conclusão: — se o Botafogo quis vender o Mané, e se negociou Amarildo, e se entregou Didi — é porque queria se dilacerar no arrependimento e na expiação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário