É ofensivo à inteligência e ao sentimento nacional de justiça imaginar que a condenação de um criminoso de colarinho branco depende unicamente de provas materiais, tais como impressão digital ou fotografias. Esse tipo de crime é praticado às escondidas, nas sombras e sob proteção de cúmplices bem localizados no serviço público. Por isso mesmo é quase impossível encontrar impressões digitais, filmes ou fotos.
Vigora no sistema no sistema processual brasileiro o princípio do livre convencimento, segundo o qual compete ao juiz da causa valorar com ampla liberdade os elementos de prova constantes dos autos, desde que o faça motivadamente. Nesse panorama, para a condenação de conduta criminosa o juiz pode valer-se também de indícios, ou seja, de circunstâncias conhecidas e aparentes, capazes de demonstrar a existência do crime. Em verdade, os indícios estão claramente previstos pelo Código de Processo Penal, no capítulo das provas.
Neste momento tormentoso vivido pelo ex-presidente Lula, é compreensível que seus advogados e defensores entoem descontentamento com a denúncia pública feita contra ele, alegando ausência de prova material. Na falta de argumentos que envolvam o mérito, compreende-se que usem tal estratégia de defesa, mas dificilmente convencerão o juiz quanto à ausência de provas, uma vez que são muito expressivos os indícios da conduta criminosa.
O Código de Processo Penal, em seu artigo 239, prevê com toda a clareza que se considera indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Essa indução autorizada pela lei às vezes é tormentosa, pois alguns defendem não ser possível condenação se não há prova material. Mas cristalizou-se progressivamente o entendimento de que nem sempre é possível obter diretamente a prova do crime e, por isso, torna-se necessária a captação dos indícios, por intermédio dos quais se chega à verdade real.
A denúncia que o Ministério Público faz contra Lula, causando impacto tão forte no País, está fundamentada num conjunto enorme e expressivo de indícios e circunstâncias, que permitem, pela indução prevista no artigo 239, concluir que houve mesmo crime, e dos mais graves.
Muitos juízes entendem que a eficácia dos indícios não é menor que a da prova direta. Quando bem estabelecidos, e bem evidentes, eles podem adquirir importância predominante e decisiva, permitindo fixar condenações que a sociedade exige.
No caso de Lula, até mesmo ao leigo parece estar evidente a prática de crimes. Quando do episódio do mensalão, prevaleceram condenações brandas, defendidas vitoriosamente pelo ministro Ricardo Lewandowski, do STF, que tem um enorme coração bondoso. Graças a isso, os criminosos políticos José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha foram abençoados e beneficiados por leve sentença.
Houve naquela oportunidade uma grave ofensa a cada um de nós, porque Marcos Valério, o acusado que não era político e não tinha a mesma proteção, foi mantido no cárcere. Já os políticos protegidos saíram logo.
Também naquela ocasião, embora José Dirceu fosse o braço direito de Lula (ou, quem sabe, os dois braços), prevaleceu o entendimento de que não havia prova material da participação criminosa do ex-presidente. E com isso ele, que não sabia de nada, não viu nada, não participou de nada, ficou fora da condenação.
Vê-se hoje que faltou coragem ao Ministério Público Federal para incluí-lo na denúncia, talvez ao fundamento de inexistência de impressões digitais ou de filmagem dos crimes praticados. Agora, a conduta dos promotores de Justiça do Paraná é outra e vemos que o conjunto de circunstâncias indicadoras da prática de crime autorizou a propositura de ação penal.
A propósito, o STF, por voto de Sepúlveda Pertence, já concluiu que os indícios, dado o livre convencimento do juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. A recomendação feita na ocasião foi de que o uso dos indícios requer cautela e o nexo de causalidade, ou seja, sua conformidade com qualquer outro tipo de prova. E o paulista Frederico Marques, tantas vezes citado por sua invejável lucidez, dizia que “o valor probante dos indícios e presunções, no sistema de livre convencimento do juiz, é em tudo igual ao das provas diretas”.
Assim, por mais que os defensores de Lula se apeguem à tese enganosa de inexistência de provas, buscando, quem sabe, convencer-se a si próprios, a finalidade do processo criminal consiste em provar – e provar nada mais é do que proporcionar ao juiz a convicção sobre a existência de um fato. Isso equivale a dizer que o conjunto de circunstâncias e indícios que levaram os promotores da Lava Jato a propor a denúncia contra o ex-presidente Lula é por si só suficiente, pois permite formar um quadro de segurança compatível com a almejada verdade real.
Como o legislador brasileiro erigiu os indícios como meio de prova, não se pode concluir que a ausência de determinada prova material desejável impeça o juiz de manifestar seu livre convencimento na forma de um decreto condenatório, apoiado exclusivamente em prova indiciária. Isso é o que se pode prever quanto ao processo judicial contra o ex-presidente, lembrando, como curiosidade, que ele próprio ao manifestar-se em entrevista de mais de uma hora, transmitida ao vivo pelas televisões, em momento algum fez defesa do mérito, ou seja, que não deixou seus amigos mais próximos roubar à vontade dinheiro nosso, com o claro propósito não só de encher os bolsos, mas de levar avante um projeto populista dos piores.
21 de setembro de 2016
Aloísio de Toledo César, Estadão
Desembargador aposentado do TJSP, foi secretário estadual de justiça.
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