Se escrevermos sobre aquilo que conhecemos –as pessoas que nos rodeiam, os lugares que habitamos, as alegrias ou tristezas que tivemos ou temos–, existe pelo menos a promessa romântica da autenticidade. A ficção contemporânea é isso, ou quase isso: reportagens sobre nós próprios, mesmo que os personagens estejam mascarados com outras identidades.
Um escritor de classe média, que habite os subúrbios da metrópole e que, sei lá, tenha um gosto especial por jogar boliche aos sábados, acabará por escrever um romance sobre um escritor de classe média, que habita os subúrbios de uma metrópole, e que descobre subitamente que a sua paixão pelo boliche é um sentimento reprimido pelo badminton.
Nada disso é grave. Exceto pelo pormenor óbvio de que nem todas as vidas são interessantes. As nossas livrarias estão cheias de obras ensimesmadas e onanistas porque o escritor seguiu o conselho-clichê de escrever sobre aquilo que conhece. O desafio deveria ser outro: escrever sobre aquilo que se desconhece. O que implica curiosidade, descoberta. E, palavra fundamental, imaginação.
Aposto que Lionel Shriver, autora do brilhante "Precisamos Falar sobre o Kevin", concorda comigo. Mas Shriver foi ainda mais longe no festival de escritores de Brisbane, na Austrália. Tema de sua palestra: apropriação cultural. Ou, traduzindo, será que é legítimo um autor usar personagens, comportamentos ou valores de outras culturas?
Exemplo: um escritor branco que vive em Nova York pode narrar o mundo –interior ou exterior– de um negro que habita em Nova York, São Paulo ou Johannesburgo?
Shriver afirma que sim e ataca violentamente as vestais da "apropriação cultural". Se a literatura aceita se autocensurar para não correr o risco de "apropriação cultural", o que resta são livros de memórias –ou, acrescento eu, exercícios nulos de autoficção.
Nomes como Truman Capote ou Graham Greene, para usar dois escritores citados por Shriver, seriam impensáveis para a tribo que luta contra a "apropriação cultural". Capote não teria direito a escrever sobre o "white trash" criminal da América "profunda"; Greene estaria impedido de viajar para os trópicos e incluir os indígenas nas suas narrativas.
Lionel Shriver tem razão. Literária e filosoficamente. Comecemos pelo princípio: se a literatura aceitasse o mandamento de que nenhum escritor pode espreitar o quintal do vizinho, as bibliotecas ficariam vazias.
Estamos em 2016. Festejamos os 400 anos da morte de Shakespeare. Devemos tolerar que o bardo da Inglaterra isabelina tenha escrito sobre portadores de deficiência homicidas (Ricardo 3º), judeus gananciosos (Shylock) ou generais mouros facilmente enganáveis (Otelo, claro)?
E que dizer de Cervantes, outro centenário, que cometeu o supremo abuso de dar corpo e voz a aristocratas alienados (como o Quixote) e a escudeiros analfabetos, mas sensatos (o impagável Sancho)? Como justificar a "apropriação cultural" de Shakespeare, Cervantes –mas também de Homero, Dante, Goethe ou Dickens?
Ver na "apropriação cultural" um problema seria retirar à literatura a sua força maior: a possibilidade de entrarmos em universos distintos, sejam mentais ou materiais, para assim compreendermos a única coisa que interessa a um criador –a natureza humana.
Mas a fraude da "apropriação cultural" também revela um paradoxo filosófico: em nome de um "respeito" pela singularidade do outro, esse multiculturalismo demente é uma forma perversa de racismo. Brancos só escreveriam sobre brancos. Negros sobre negros. Índios sobre índios.
No fundo, o sonho de qualquer racista: instituir uma espécie de "apartheid" intelectual que proíbe qualquer gesto empático para suplantarmos a diferença e nos imaginarmos "no lugar do outro".
O discurso de Lionel Shriver contra a imbecilidade da "apropriação cultural" provocou polêmica imediata. E o festival australiano, horrorizado com a sensatez, distanciou-se das palavras de Shriver e organizou um nova mesa para responder às suas colocações. O ataque ficou a cargo das escritoras Yassmin Abdel-Magied e Suki Kim.
Quem?
Leitor, não vale ir ao Google. Obviamente, são duas autoras que só escrevem sobre aquilo que conhecem.
21 de setembro de 2016
João Pereira Coutinho, Folha de SP
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