Brasileirismos são invenções brasileiras. No campo da musica, da comida e da sexualidade, elas abundam. São brasileirismos o jogo do bicho, o samba, a feijoada, confundir fama com inteligência, não prender autoridade e dizer que bunda não tem sexo.
A presença mascarada dos elos pessoais abraçados pela norma do dar-para-receber e do vice-versa como algo obrigatório no espaço público é um outro brasileirismo que contraria a lei válida para todos e nos faz desconfiar da liberdade.
Liberdade que leva a escolhas, individualiza e acontece justamente na rua. Toleramos a liberdade porque ela é um conceito chave nas constituições “avançadas” que copiamos dos americanos, franceses e ingleses. Daí a contradição tragicômica: temos leis avançadíssimas, sínteses das melhores normas jamais produzidas no chamado “mundo civilizado”, mas lamentavelmente não temos franceses, americanos e ingleses para segui-las.
Voltemos, entrementes, aos temas clássicos. Se a liberdade tem sido usada pelas elites sobretudo para matar o competidor, a igualdade permanece sem solução. Continuamos alérgicos a sua aplicação e o seu uso é sempre constrangido pelos rotineiros “esse tem biografia”, “esse é meu amigo”, “esse é do nosso partido”, que são parte de um outro brasileirismo. A duplicidade ética, expressa no axioma: aos inimigos a lei; aos amigos, tudo. Um postulado que impede, no modelo e na realidade, o tratamento igualitário e um mínimo de coerência.
A brasileiríssima máscara entra em cena em tempos democráticos. Impossível não tomá-la, como ocorre em outras sociedades, como um símbolo de forças antissociais: do incesto que nega a oposição entre afinidade e consanguinidade, ou de condutas abusivas e licenciosas cuja concretização exige a invisibilidade ou o disfarce, como no carnaval.
Estamos pensando em legislar o uso da máscara. Balas de borracha para policiais; máscaras para os manifestantes. Mas, se até em centro espírita as almas dizem quem são, como admitir o poder dado a mascarados quando o ideal democrata é justamente conhecer o adversário? Em meio aos elos confusos entre as injustiças seculares e direito ao ativismo, o uso da máscara aumenta ou diminui a possibilidade do irracionalismo e da boçalidade contida na violência? Afinal, estamos querendo consolidar ou liquidar instituições?
Vivemos um momento de exigências igualitárias que demandam o fim da separação entre a casa e a rua: lei e cadeia na rua para os pés-rapados; e, na casa, embargos de todos os tipos para os amigos e parentes. Chamam isso de “corporativismo”, mas o nome verdadeiro é personalismo, como disse faz tempo.
Brasileirismo agradável foi testemunhar a sinceridade que baixou na Câmara dos Deputados com o voto aberto. O voto sem máscaras porque ele liquida a duplicidade entre casa e rua. “Como companheiro e colega eu não posso te cassar. Amanhã pode ser minha vez e você, mesmo sem ser do meu partido, retribui. Mas no plenário eu sou obrigado a fazê-lo, compreende? Antigamente, quando o voto secreto era minha máscara, eu votava contra a perda do teu mandato, pois tu és realmente um ladrão! Mas, agora, temos essa lei que me obriga que eu seja o mesmo tanto em casa quanto na rua. Então, vejam que coisa triste para a ética da casa e das amizades, eu sou obrigado a tirar a máscara e a ser sincero!”
A sinceridade é um neobrasileirismo.
Ser o mesmo em todos os lugares é impossível. Mas ter o propósito de ser o mesmo é o que chamamos de honestidade. A próxima eleição vai dizer se a honestidade é uma tortura ou uma bênção.
*
O ministro Gilmar Mendes aponta uma anomalia. As multas que os condenados devem pagar não podem podem ser transferidas, por meio de uma brasileiríssima vaquinha, para outras pessoas. A sugestão do ministro seria a de fazer uma vaquinha capaz de pagar o mensalão.
Tal parecer me lembra um evento bizarro, mas idêntico, ocorrido nos primórdios da ditadura militar, em 1964, no governo Castelo Branco. Foi a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, destinada a reunir ouro para pagar a dívida externa brasileira. Tal vaquinha fez com que muitas pessoas doassem alianças e medalhinhas, mas, diferentemente da vaquinha dos mensaleiros, jamais se soube onde o ouro foi parar.
Mas o brasileirismo da vaquinha que retorna, como na ditadura, para livrar as multas do mensalão, é um sucesso.
E se um condenado a 20 anos, pergunta-me um amigo irritado, resolver fazer uma vaquinha e conseguir na internet gente que fique em seu nome na prisão por um dia? Façamos o calculo: 20 vezes 365 é igual a 7.300 dias. Ora, diz ele, considerando o que os mensaleiros condenados já arrecadaram até agora, seria tranquilo conseguir sete mil e tantas pessoas solidarias para ficarem por um dia na cadeia no lugar do condenado. E eles, é claro, iriam continuar atuando como heróis nacionais injustiçados por uma mascarada de cunho político. Se tudo é injustiça burguesa, por que não aplicar a brasileiríssima vaquinha para outras penalidades?
Tento argumentar, mas o amigo toma uma cerveja.
O mesmo sujeito me diz o seguinte: “Olha aqui, DaMatta, estou pensando em fazer uma vaquinha para deixar de trabalhar como um condenado. Quero poder dizer não — esse imenso privilégio dos abençoados.” Como bom brasileiro não disse nada. Mas pensei: se der certo eu também faço!
A presença mascarada dos elos pessoais abraçados pela norma do dar-para-receber e do vice-versa como algo obrigatório no espaço público é um outro brasileirismo que contraria a lei válida para todos e nos faz desconfiar da liberdade.
Liberdade que leva a escolhas, individualiza e acontece justamente na rua. Toleramos a liberdade porque ela é um conceito chave nas constituições “avançadas” que copiamos dos americanos, franceses e ingleses. Daí a contradição tragicômica: temos leis avançadíssimas, sínteses das melhores normas jamais produzidas no chamado “mundo civilizado”, mas lamentavelmente não temos franceses, americanos e ingleses para segui-las.
Voltemos, entrementes, aos temas clássicos. Se a liberdade tem sido usada pelas elites sobretudo para matar o competidor, a igualdade permanece sem solução. Continuamos alérgicos a sua aplicação e o seu uso é sempre constrangido pelos rotineiros “esse tem biografia”, “esse é meu amigo”, “esse é do nosso partido”, que são parte de um outro brasileirismo. A duplicidade ética, expressa no axioma: aos inimigos a lei; aos amigos, tudo. Um postulado que impede, no modelo e na realidade, o tratamento igualitário e um mínimo de coerência.
A brasileiríssima máscara entra em cena em tempos democráticos. Impossível não tomá-la, como ocorre em outras sociedades, como um símbolo de forças antissociais: do incesto que nega a oposição entre afinidade e consanguinidade, ou de condutas abusivas e licenciosas cuja concretização exige a invisibilidade ou o disfarce, como no carnaval.
Estamos pensando em legislar o uso da máscara. Balas de borracha para policiais; máscaras para os manifestantes. Mas, se até em centro espírita as almas dizem quem são, como admitir o poder dado a mascarados quando o ideal democrata é justamente conhecer o adversário? Em meio aos elos confusos entre as injustiças seculares e direito ao ativismo, o uso da máscara aumenta ou diminui a possibilidade do irracionalismo e da boçalidade contida na violência? Afinal, estamos querendo consolidar ou liquidar instituições?
Vivemos um momento de exigências igualitárias que demandam o fim da separação entre a casa e a rua: lei e cadeia na rua para os pés-rapados; e, na casa, embargos de todos os tipos para os amigos e parentes. Chamam isso de “corporativismo”, mas o nome verdadeiro é personalismo, como disse faz tempo.
Brasileirismo agradável foi testemunhar a sinceridade que baixou na Câmara dos Deputados com o voto aberto. O voto sem máscaras porque ele liquida a duplicidade entre casa e rua. “Como companheiro e colega eu não posso te cassar. Amanhã pode ser minha vez e você, mesmo sem ser do meu partido, retribui. Mas no plenário eu sou obrigado a fazê-lo, compreende? Antigamente, quando o voto secreto era minha máscara, eu votava contra a perda do teu mandato, pois tu és realmente um ladrão! Mas, agora, temos essa lei que me obriga que eu seja o mesmo tanto em casa quanto na rua. Então, vejam que coisa triste para a ética da casa e das amizades, eu sou obrigado a tirar a máscara e a ser sincero!”
A sinceridade é um neobrasileirismo.
Ser o mesmo em todos os lugares é impossível. Mas ter o propósito de ser o mesmo é o que chamamos de honestidade. A próxima eleição vai dizer se a honestidade é uma tortura ou uma bênção.
*
O ministro Gilmar Mendes aponta uma anomalia. As multas que os condenados devem pagar não podem podem ser transferidas, por meio de uma brasileiríssima vaquinha, para outras pessoas. A sugestão do ministro seria a de fazer uma vaquinha capaz de pagar o mensalão.
Tal parecer me lembra um evento bizarro, mas idêntico, ocorrido nos primórdios da ditadura militar, em 1964, no governo Castelo Branco. Foi a campanha “Ouro para o bem do Brasil”, destinada a reunir ouro para pagar a dívida externa brasileira. Tal vaquinha fez com que muitas pessoas doassem alianças e medalhinhas, mas, diferentemente da vaquinha dos mensaleiros, jamais se soube onde o ouro foi parar.
Mas o brasileirismo da vaquinha que retorna, como na ditadura, para livrar as multas do mensalão, é um sucesso.
E se um condenado a 20 anos, pergunta-me um amigo irritado, resolver fazer uma vaquinha e conseguir na internet gente que fique em seu nome na prisão por um dia? Façamos o calculo: 20 vezes 365 é igual a 7.300 dias. Ora, diz ele, considerando o que os mensaleiros condenados já arrecadaram até agora, seria tranquilo conseguir sete mil e tantas pessoas solidarias para ficarem por um dia na cadeia no lugar do condenado. E eles, é claro, iriam continuar atuando como heróis nacionais injustiçados por uma mascarada de cunho político. Se tudo é injustiça burguesa, por que não aplicar a brasileiríssima vaquinha para outras penalidades?
Tento argumentar, mas o amigo toma uma cerveja.
O mesmo sujeito me diz o seguinte: “Olha aqui, DaMatta, estou pensando em fazer uma vaquinha para deixar de trabalhar como um condenado. Quero poder dizer não — esse imenso privilégio dos abençoados.” Como bom brasileiro não disse nada. Mas pensei: se der certo eu também faço!
19 de fevereiro de 2014
Roberto DaMatta, O Estadão
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