Há um embate surdo na cultura contemporânea entre o delírio do controle absoluto e a irrupção do imprevisível
Os rituais que marcam a passagem do Ano Novo vão na contramão do imediato, suspendendo, por uma noite, o frenético aqui e agora e estimulando desejos para “esse ano que vem”.
Quem deseja feliz Ano Novo reabilita o futuro e a esperança, contraria o eterno presente em que vive uma sociedade que aboliu a História, logo o passado, e o projeto, logo o futuro.
“Esse ano que vem” é a nossa fronteira onírica, o tapete que estendemos para nós mesmos na direção do amanhã. Nele cabe tudo que não foi, o amor não encontrado, o dinheiro não ganho, a obra adiada, o país tão sonhado e que não aconteceu.
As rosas brancas lançadas ao mar, que ao sabor da maré desaparecem ou voltam à areia, são desejos que vão ou não ser acolhidos por Iemanjá. Reabilitam o acaso e o imprevisível em um mundo que tudo controla e, para melhor controlar, tudo espiona. O sagrado em que se banha esta noite abre um parêntese cheio de mistério no mundo que se quer hiperprogramado, que anuncia o fim da privacidade, logo do indivíduo, preso e afogado em sua própria rede. Na noite de 31 de dezembro, quebra-se a onipotência com que a tecnologia programa os espíritos. Nessa noite o incontrolável é senhor.
Nosso tempo é feito de paradoxos: busca segurança e certezas que são desmentidas e nos confrontam com nossa vulnerabilidade. O algoritmo do Google traça com exatidão o perfil de cada um. As empresas a quem interessa saber quem são seus potenciais consumidores compram esse produto a peso de ouro.
O instrumento que serve ao controle serve também ao descontrole. Os segredos das grandes potências vêm sendo desvendados pelos hackers do Wikileaks que põem a nu a fragilidade de suas alianças.
Ao Estado americano interessa saber tudo sobre todos e cada um por supostas razões de segurança. Em ambos os casos o poder da computação é imenso. E, no entanto, todo o sistema de informações gerado pelas agências de espionagem não entrou na alma inquieta de um de seus espiões, um certo Snowden. A quintessência de um sistema de comando e controle foi vulnerável à ação de um jovem destemido de 29 anos que trabalhava na Agência Nacional de Segurança no Havaí. O estrago foi irremediável.
Edward Snowden concorreu com o Papa Francisco ao título de Pessoa do Ano da revista “Time”. Ganhou o Papa que, iluminado, com palavras de ternura, substituiu a condenação do pecado pela escuta e o acolhimento, abalando o rígido sistema de controle dos desejos mais íntimos que a Igreja exerce em troca da salvação das almas.
Os desígnios de uns poucos homens enguiçam máquinas poderosíssimas. De todos os sistemas complexos em que vivemos enredados, o mais complexo ainda é o ser humano com seus mistérios. Não sabemos o que reservamos ao ano que vem. Um gesto individual pode ter o impacto do bater de asas daquela borboleta que redireciona os ventos e desencadeia tempestades.
Há um embate surdo na cultura contemporânea entre o delírio do controle absoluto e a irrupção do imprevisível que explode em toda parte como um grito de desespero. Esse embate estará presente em 2014 no Brasil quando a bola rolar, as ruas falarem e as urnas se abrirem. A incerteza é o paradigma do nosso tempo.
No turbilhão de informações em tempo real quem reserva o tempo gratuito das lembranças para revisitar o ano que passou? Registrando freneticamente tudo que é vivido em trilhões de mensagens e fotos que substituem a memória, os fatos e gestos são logo esquecidos. Na areia de Copacabana os flashes dos celulares substituíram a brasa dos cigarros que antes se acendiam. Um réveillon — o mais belo do mundo — sem fotos on-line é como se não estivesse existindo.
Quem ainda convive consigo mesmo? Desmemoriados, temos nossas biografias registradas em gigantescos agregadores de dados que sabem sobre nós muito mais do que nós mesmos. Biografias autorizadas, já que fornecemos gratuitamente a Google e Facebook essas informações que valem mais do que o petróleo. Tucídides disse que o sucesso de uma tirania se mede pela felicidade dos escravos com a sua escravidão. Como é alegre a servidão às tecnologias virtuais!
Na tarde que precedeu o réveillon um imprevisível arco-íris abriu sua curva perfeita no céu e mergulhou no mar que quebrava no Forte de Copacabana, traçado quem sabe por Oscar Niemeyer que, saudoso, revisitava sua praia tão querida, o improvável encontro de um raio de sol com os pingos da chuva ficou ali como augúrio de que em 2014 surpresas iluminarão o cenário. Se forem encantadoras como o arco-íris, tanto melhor.
Feliz Ano Novo.
Os rituais que marcam a passagem do Ano Novo vão na contramão do imediato, suspendendo, por uma noite, o frenético aqui e agora e estimulando desejos para “esse ano que vem”.
Quem deseja feliz Ano Novo reabilita o futuro e a esperança, contraria o eterno presente em que vive uma sociedade que aboliu a História, logo o passado, e o projeto, logo o futuro.
“Esse ano que vem” é a nossa fronteira onírica, o tapete que estendemos para nós mesmos na direção do amanhã. Nele cabe tudo que não foi, o amor não encontrado, o dinheiro não ganho, a obra adiada, o país tão sonhado e que não aconteceu.
As rosas brancas lançadas ao mar, que ao sabor da maré desaparecem ou voltam à areia, são desejos que vão ou não ser acolhidos por Iemanjá. Reabilitam o acaso e o imprevisível em um mundo que tudo controla e, para melhor controlar, tudo espiona. O sagrado em que se banha esta noite abre um parêntese cheio de mistério no mundo que se quer hiperprogramado, que anuncia o fim da privacidade, logo do indivíduo, preso e afogado em sua própria rede. Na noite de 31 de dezembro, quebra-se a onipotência com que a tecnologia programa os espíritos. Nessa noite o incontrolável é senhor.
Nosso tempo é feito de paradoxos: busca segurança e certezas que são desmentidas e nos confrontam com nossa vulnerabilidade. O algoritmo do Google traça com exatidão o perfil de cada um. As empresas a quem interessa saber quem são seus potenciais consumidores compram esse produto a peso de ouro.
O instrumento que serve ao controle serve também ao descontrole. Os segredos das grandes potências vêm sendo desvendados pelos hackers do Wikileaks que põem a nu a fragilidade de suas alianças.
Ao Estado americano interessa saber tudo sobre todos e cada um por supostas razões de segurança. Em ambos os casos o poder da computação é imenso. E, no entanto, todo o sistema de informações gerado pelas agências de espionagem não entrou na alma inquieta de um de seus espiões, um certo Snowden. A quintessência de um sistema de comando e controle foi vulnerável à ação de um jovem destemido de 29 anos que trabalhava na Agência Nacional de Segurança no Havaí. O estrago foi irremediável.
Edward Snowden concorreu com o Papa Francisco ao título de Pessoa do Ano da revista “Time”. Ganhou o Papa que, iluminado, com palavras de ternura, substituiu a condenação do pecado pela escuta e o acolhimento, abalando o rígido sistema de controle dos desejos mais íntimos que a Igreja exerce em troca da salvação das almas.
Os desígnios de uns poucos homens enguiçam máquinas poderosíssimas. De todos os sistemas complexos em que vivemos enredados, o mais complexo ainda é o ser humano com seus mistérios. Não sabemos o que reservamos ao ano que vem. Um gesto individual pode ter o impacto do bater de asas daquela borboleta que redireciona os ventos e desencadeia tempestades.
Há um embate surdo na cultura contemporânea entre o delírio do controle absoluto e a irrupção do imprevisível que explode em toda parte como um grito de desespero. Esse embate estará presente em 2014 no Brasil quando a bola rolar, as ruas falarem e as urnas se abrirem. A incerteza é o paradigma do nosso tempo.
No turbilhão de informações em tempo real quem reserva o tempo gratuito das lembranças para revisitar o ano que passou? Registrando freneticamente tudo que é vivido em trilhões de mensagens e fotos que substituem a memória, os fatos e gestos são logo esquecidos. Na areia de Copacabana os flashes dos celulares substituíram a brasa dos cigarros que antes se acendiam. Um réveillon — o mais belo do mundo — sem fotos on-line é como se não estivesse existindo.
Quem ainda convive consigo mesmo? Desmemoriados, temos nossas biografias registradas em gigantescos agregadores de dados que sabem sobre nós muito mais do que nós mesmos. Biografias autorizadas, já que fornecemos gratuitamente a Google e Facebook essas informações que valem mais do que o petróleo. Tucídides disse que o sucesso de uma tirania se mede pela felicidade dos escravos com a sua escravidão. Como é alegre a servidão às tecnologias virtuais!
Na tarde que precedeu o réveillon um imprevisível arco-íris abriu sua curva perfeita no céu e mergulhou no mar que quebrava no Forte de Copacabana, traçado quem sabe por Oscar Niemeyer que, saudoso, revisitava sua praia tão querida, o improvável encontro de um raio de sol com os pingos da chuva ficou ali como augúrio de que em 2014 surpresas iluminarão o cenário. Se forem encantadoras como o arco-íris, tanto melhor.
Feliz Ano Novo.
05 de janeiro de 2014
ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA, O Globo
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