Em um de seus posts sobre a Síria, meu amigo Caio Blinder escreve: “O batalhão de ‘realpoltiikeiros’ adverte que a opção mais prudente é cruzar os braços e evitar desastres da escala iraquiana. Mas como tolerar as ações do meliante?” Leitores perguntam se ele me inclui — eu, que tenho me mostrado muito cético sobre os benefícios de uma intervenção — entre os “realpolitikeiros”.
Acho que não. Meu querido Caio se ocupa de gente mais relevante do que eu — deve se referir àqueles especialistas todos que cercam Obama… Então vamos ver.
Segundo o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, não há mais dúvida, por remota que seja, de que Assad é mesmo o culpado. E não teria sido a primeira vez. A BBC diz ter presenciado o atendimento a vítimas de bomba incendiária, que teria sido jogada por forças leais ao regime. O vídeo é devastador. Eu nunca acho que os fins justificam os meios. Mas eu sempre acho que os meios qualificam os fins.
Não me parecia que havia evidências suficientes de que o tirano fosse o responsável pelo ataque — e, que eu saiba, certeza ninguém tinha, até porque desafiava a lógica, mas alertei também para os critérios muito particulares com que lidam os facínoras (e empreguei essa palavra para me referir a Assad).
Ora, na possibilidade de que não fosse ele a responder pelo ataque, então seria o outro lado. E, por óbvio, não me parecia correto, então, que os EUA, ou uma coalizão ocidental, entrassem numa guerra para favorecer — porque seria isto a acontecer objetivamente — forças rebeldes que recorrem a estes expedientes. E se sabe que a vanguarda armada que tenta depor Assad é hoje composta de jihadistas.
Aí volto à pergunta de Caio: “Como tolerar as ações do meliante?” Ora, não havendo dúvidas de que as ações são mesmo do” meliante” — e Kerry diz não ter nenhuma; e a BBC está certa de que a bomba incendiaria partiu da turma de Assad —, a resposta é uma só: não tolerar as ações do meliante. Ponto final! Então é preciso intervir, mas não com uma expedição punitiva, só “para que não fique sem resposta”. Essa é, de três possibilidades — as outras duas são nada fazer e entrar para derrubá-lo — a pior. Escrever e pensar sobre guerra corresponde sempre a fazer cálculos que envolvem vidas humanas — ou, para ser mais cru e cruento: a morte de pessoas.
Qual seria o feito de uma expedição punitiva? Sanguinários da qualidade de Assad não têm o menor pudor em transformar parte da população em alvo. Não lhe custa nada transferir mulheres, crianças e idosos para instalações militares manjadas, alvos certos ou prováveis de bombardeios aéreos, e exibir depois para o mundo o produto da ação americana, açulando ainda mais rancores e ódios. Por mais cirúrgicos que sejam esses ataques, a chance de atingir populações civis é gigantesca. E tudo isso para quê? Para que Assad continue no poder, ainda que enfraquecido, o que lhe dará a chance de matar ainda mais gente?
Não sou um dos “realpolikeiros” a que se refere Caio também porque, em relação a acasos assim, ao contrário, eu pretendo misturar pragmatismo com uma questão que é de fundo moral, que tem de permanecer no horizonte. Havendo as provas — Bush também tinha as suas sobre Saddam, e não estou sendo irônico; lembro que também aquele meliante usava armas químicas contra os curdos —, acho que não resta alternativa, não. Com jihadistas ou sem eles, com Al Qaeda ou sem ela, com terroristas ou sem eles, então é preciso derrubar Bashar Al Assad. Prova é prova. E não existe alguma coisa que seja “meio inaceitável”. Ou é ou não é. As provas que Kerry diz ter, sendo verdadeiras, caracterizam o inaceitável, o que enseja uma daquelas três possibilidades: depor o “meliante”.
“Isso não é assim tão simples; uma guerra de longa duração passa por uma negociação com o Congresso e tal”. Sei de tudo isso. Ma tem de ser tentado. Entre o Assad sem armas químicas e o terror, Assad é o mal menor. Entre Assad usando armas químicas e o terror, Assad passa a ser o mal maior (ao menos ali na Síria), o que não quer dizer escolher o terror (também já escrevi sobre isso). Uma intervenção de longa duração terá de enfrentar também esse inimigo.
Não estou comparando os dois casos, apenas as circunstâncias: Bush estava convicto de que derrubar Saddam Hussein era vital para a segurança do mundo e para os interesses americanos. Foi lá e fez. Ele não era mais manso do que Assad nem mais humano — a menos que se considere que matar curdos com armas químicas e convencionais não tem a mesma gravidade que tem matar sírios. Ele tinha mais de 200 mil mortes nas costas. Não obstante, houve e há poucos defensores da ação dos EUA no Iraque, a guerra considerada inútil. om feito, o Iraque está lá, entregue ao terror e às traças. Obama vive também seu momento de solidão — conta com o apoio da França.
Sendo verdade o que diz John Kerry — e estou dando de barato que seja —, é preciso agir. Mas para depor Assad, não para fazer mais alguns milhares de mortos só para que ele saiba com quem está lidando e para que aprenda que esse negócio de arma química é uma coisa muito feia. Em qualquer caso, muito mais gente vai morrer. Mortes, em si, nunca valem a pena. Se existe algum sentido moral nas guerras, ele aponta para os vivos do futuro.
Ah, sim: para que seja assim nas consequências, tem de ser assim nas causas. Os EUA têm as provas, certo? Se não as tiverem, então é preciso voltar a fita….
30 de agosto de 2013
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