"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

DE KING A OBAMA, O SONHO CONTINUA

 
  • Martin Luther King faz seu discurso "I have a dream" (Eu tenho um sonho), em 28 de agosto de 1963, no Memorial Lincoln, na capital dos Estados Unidos. Ao completar 50 anos, o discurso de King é considerado um dos marcos na história norte-americana Martin Luther King faz seu discurso "I have a dream" (Eu tenho um sonho), em 28 de agosto de 1963, no Memorial Lincoln, na capital dos Estados Unidos. Ao completar 50 anos, o discurso de King é considerado um dos marcos na história norte-americana

Meio século depois, o presidente dos EUA simboliza a passagem dos negros da escravidão ao poder defendida pelo pastor, mas a igualdade ainda está longe
 
Ao chegar ao Salão Oval em 2009, Barack Obama mandou substituir o busto de Winston Churchill, que seu antecessor ali havia colocado, por outro, o de Martin Luther King. Também mandou emoldurar o programa da Marcha sobre Washington, na qual o mártir dos direitos civis pronunciou seu mais célebre discurso, "Eu tenho um sonho", que agora completa 50 anos. Em sua segunda posse, em janeiro passado, que coincidiu com o dia da festa nacional de King, Obama jurou o cargo sobre uma Bíblia do adorado pregador. "Suas ações, seu movimento, são a única razão pela qual eu posso assumir este cargo", disse o presidente.
 
Na próxima quarta-feira (28), Obama se dirigirá ao país das escadarias do monumento a Lincoln, no Mall desta capital, exatamente no mesmo ponto em que King falou há meio século. Apesar das dúvidas sobre a realização de um sonho que, como todos os sonhos, só se realizou pela metade e foi muito diferente do que se imaginou, esse momento trará à lembrança uma longa viagem na história americana, na qual os negros passaram da escravidão ao poder.
 
Obama está aí como testemunha excepcional dessa ocasião. É o primeiro presidente negro dos EUA e, como tal, o depositário do legado de King. Também como protagonista. Seu êxito é, em parte, mérito próprio. Não teria alcançado essa posição sem a mensagem unificadora difundida por sua candidatura.
 
Mas Obama não estará nas escadarias do monumento a Lincoln como o sucessor de King. Pelo contrário. Obama é a superação de King e de sua época. "Não existe uma América branca e uma América negra", dizia em 2008, "só existem os Estados Unidos da América".
 
A presença de Obama na Casa Branca não é uma vitória de King. Obama pertence a uma sociedade que não é a que King sonhou, uma sociedade em que o racismo não é mais uma força dominante, e sim residual, mas na qual a desigualdade sofrida por negros, brancos e latinos se acentuou.

Desde que apareceu no cenário político, escreveram-se centenas de comparações entre King e Obama, sem dúvida os dois políticos negros mais relevantes deste país. A maioria delas tende a exagerar as coincidências ou as diferenças. Os americanos ainda abordam os assuntos raciais através do filtro do politicamente correto, e essas comparações ainda escondem alguns ódios inconfessáveis contra o pastor de Atlanta e muitas frustrações dolorosas com o presidente.
 
A verdade é que Obama e King não têm muito em comum. Talvez compartilhem seus dotes para a oratória e um certo senso prático da política, que, guardada a distância histórica, situa ambos os personagens em posições centristas, demonizados pela direita mas também criticados pela esquerda.
 
Assim como Obama teve de suportar --especialmente agora, depois da revelação dos programas de espionagem-- ataques de seu lado, King teve de se defender das acusações de traição que lhe faziam em seu próprio movimento, principalmente por Malcolm X. Fora isso, King e Obama são quase personagens antagônicos.
 
 
Quando Martin Luther King pronunciou seu famoso discurso, Obama acabava de completar dois anos de idade em um lugar tão remoto quanto Honolulu. Nem de forma geracional nem política pertence ao grupo que dirigiu a luta pelos direitos civis, nem sequer a seus continuadores. Obama nunca atuou como líder negro nem compartilhou as estratégias e mensagens desse setor da classe política. De fato, os principais herdeiros de King, como John Lewis ou Andrew Young, demoraram para lhe dar seu apoio quando apresentou sua candidatura presidencial e se inclinaram inicialmente por Hillary Clinton.
 
Obama sempre se dirigiu a um país que mudou enormemente em meio século, um país diferente do que King conheceu. Em 1963, o casamento inter-racial de que nasceu Obama ainda era proibido em 20 Estados, o direito ao voto dos negros ainda não era respeitado na maior parte do sul e os negros eram chamados de "negroes". Hoje se admite o casamento homossexual em 12 Estados, os negros votam em maior proporção que os brancos e são chamados de "afro-americanos".
 
Obama aborda o problema do racismo em um contexto diferente, não como uma reação diante da arrasadora maioria branca, senão como uma reivindicação de igualdade de oportunidades. Obama não enfrenta os problemas dos negros como "problemas de negros", e sim como problemas que também afetam os negros.
 
Durante o último surto de polêmica racista, por ocasião do julgamento neste verão pela morte do jovem negro Trayvon Martin, o presidente disse que o debate realmente necessário era sobre postos de trabalho, sobre o acesso dos pobres à riqueza. Em uma entrevista, lembrou que "a Marcha sobre Washington foi uma marcha para reclamar empregos e justiça", que "havia um componente econômico muito importante nessa marcha".
 
A marginalização econômica continua sendo o maior obstáculo para a igualdade. Em alguns aspectos, a situação até se agravou. Os US$ 19 mil de renda anual de diferença que havia entre as famílias brancas e as negras 50 anos atrás se transformaram hoje em mais de US$ 27 mil, segundo um estudo do Instituto Pew. Diminuiu a distância entre a quantidade de brancos e negros que se encontram abaixo do nível de pobreza, mas aumentou quanto ao número dos que possuem uma residência.
 
É indubitável que se avançou consideravelmente em muitos aspectos: os negros aumentaram a expectativa de vida, cresceu o número de jovens que completam os estudos e é visível a presença de muito mais afro-americanos em cargos de responsabilidade. Mas 79% dos negros ainda acreditam que falta muito por fazer para conseguir a equiparação racial.

Barack Obama toma posse como presidente dos EUA pela segunda vez

 
22.jan.2013 - O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e a primeira-dama, Michelle Obama, dançam durante festa após cerimônia de posse no Centro de Convenções Walter E. Washington, em Washington (EUA) Leia mais Chip Somodevilla/Efe
 
Algumas coisas pioraram, e não só no campo econômico. A desestruturação das famílias negras hoje é um problema mais grave e, sobretudo, se retrocedeu no tratamento que os negros recebem por parte do sistema judiciário. Um negro tem hoje uma probabilidade seis vezes maior que um branco de ser condenado à prisão por um tribunal, o que supera inclusive os índices dos anos de segregação.
 
Ao mesmo tempo, outra diferença essencial daquela época é que os negros têm hoje, além da lei, o poder de mudar essa situação; não todo o poder, mas o suficiente. Essa também é a principal diferença entre King e Obama. "Obama é um político, King era um profeta", afirma o escritor especializado Tavis Smiley.
 
"Obama não é o líder de um movimento social progressista; é o presidente", lembra a jornalista Melissa Harris-Perry.
 
"Como presidente, é mais poderoso que King e também mais contido. Tem mais poder institucional, mas também uma gama mais ampla de gente a qual satisfazer e prestar contas. Tem aliados mais poderosos, mas também inimigos mais poderosos."
 
Talvez seja um exercício inútil imaginar o que King teria feito como presidente. Em vida, confessou que jamais havia pensado em aspirar a esse cargo, e em todo caso nunca o teria conseguido. Mas não é impensável que as responsabilidades da presidência teriam atenuado algumas de suas posições como ativista.
 
King foi um firme crítico da guerra do Vietnã, como Obama foi da do Iraque. Ambos receberam o Prêmio Nobel da Paz. Mas o último viveu o suficiente para dirigir depois a política externa dos EUA, e isso o levou a tomar decisões que decepcionaram muitos dos que o apoiaram. Com senso de humor, alguém escreveu que enquanto King "tinha um 'dream'" [um sonho], Obama "tem um 'drone'" [um teleguiado].
 
Se Obama é a consumação do sonho de King, tudo acabou sendo menos poético e bonito do que se vislumbrou há 50 anos. Mas o mais provável é que não seja assim. O mais provável é que esse sonho, como a terra prometida pelo pastor um dia antes de seu assassinato em Memphis, seja o da reconciliação entre os seres humanos, a meta inalcançável da perfeita harmonia racial, da absoluta igualdade. E, como tal, um sonho ainda pendente, sempre no horizonte.
 
O progresso foi gigantesco. Ninguém poderia imaginar há apenas uma década que um negro estaria à frente da comemoração deste meio século de história. Mas os desafios atuais também são enormes. O topo da montanha apontado por King certamente ainda está distante.

28 de agosto de 2013
  Antonio Caño
De Washington (nos EUA)

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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