"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 8 de janeiro de 2017

O SINO DE BELÉM

Há alguns dias, lá no Reino Unido, alguém teve uma ideia interessante: reduzir a números o cotidiano dos mendigos de Londres, umas das mais ricas e cosmopolitas cidades do planeta.

Os resultados obtidos fariam corar de vergonha qualquer povoado miserável dos mais atrasados países do mundo.

Só para começar a conversa, apurou-se que 79% deles já foram vítimas de agressões físicas causadas por discriminação - em 35% dos casos, foram socados e chutados. 9% deles já serviram de "banheiro" - dormiam em paz (eu disse "em paz"?) na sarjeta quando alguém decidiu urinar em suas faces. Em 34% deles foram arremessados pedras e objetos diversos. Se nos limitarmos às agressões verbais, 48% já foram ameaçados e 50% insultados. Constatou-se, ainda, que 54% deles já foram vítimas de roubos e 7% de violência sexual.

Mas talvez o mais triste seja a constatação de que o Estado foi acionado em apenas 47% dos casos - os miseráveis de Londres simplesmente não acreditam nas instituições que deveriam defendê-los, material e moralmente.

Mas deixemos o Estado para lá. Afinal, o que de mais chocante constatou-se foi mesmo a falta de sentimentos humanos de larga parcela da população - das pessoas comuns, pois. Aliás, talvez esteja aí a explicação da omissão estatal.

Abro a janela de minha casa. Olho para fora. Começo a recordar as notícias dos mendigos em cujos corpos jovens abastados atearam fogo, pelas avenidas de nossas mais ricas cidades, e episódios de agressões tão brutais que resultaram em morte. E subitamente dou-me conta de que Londres é lá, é aqui, é em todo lugar.

Com o espírito estremecido, saio à rua. Contemplo a cena rotineira de alguns miseráveis preparando-se para mais uma noite na sarjeta, sob o silêncio cúmplice de tantos, a embalar as gargalhadas de escárnio dos Estados.

Eis que aproxima-se e aninha-se, dentre eles, um cachorro. Um vira-latas. Manso, ali estava mostrando respeito e afeto, não para rosnar ou morder - afinal, ele era apenas um cachorro, não um ser humano impiedoso.

Enquanto isso, há poucos dias celebramos o Natal. Era meia-noite, quando os sinos dobraram. Ouso dizer, com o poeta John Donne, que eles dobravam pela raça humana - que deveria, recordando Thomas Jefferson, mostrar temor diante de um Deus que, acima de tudo, é justo. Simplesmente justo.



08 de janeiro de 2017
Pedro Valls Feu Rosa é desembargador do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.

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