"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A ARTE DE FATIAR

Um motivo pelo qual nunca me atrevi a cozinhar foi por me julgar incapaz de desempenhar uma das funções da especialidade: fatiar certos ingredientes. Se a culinária se resumisse a pratos com presunto, salaminho, pastrami, mortadela ou queijo-bola, seria fácil — bastaria pedir ao rapaz do açougue que tirasse 250 gramas de cada um na máquina de cortar frios. Mas ninguém será um cozinheiro de verdade se não dominar a fina arte de fatiar.

Vide o carpaccio. Como extrair de uma posta de filé ou lagarto aquelas lâminas diáfanas, quase transparentes? O truque é deixar a carne durante horas no congelador antes de seccioná-la. Já com os sashimis, o fatiamento é mais difícil, porque se dá com o peixe ao natural — o esmero estará na mão de quem corta e na precisão da faca, equivalente à das espadas dos samurais. Falando nisso, São Paulo perdeu há pouco o samurai dos sashimis: o inesquecível Tanji, que, em 50 anos de Liberdade, fatiou um oceano de salmões e atuns.

Fatiar uma pizza já não tem tanto mistério. Para dividi-la em oito pedaços, aplica-se uma carretilha em cruz à cobertura e à massa; depois, uma nova cruz em diagonal; e pronto — é só levantar as fatias com um garfo e servi-las. Mas, na única vez em que me aventurei a isto, devo ter aplicado muita força à carretilha, porque cortei também o fundo da caixa em que viera a pizza, com papel-manteiga e tudo.

Já cortar um bolo, torta ou pudim em fatias também exige "savoir faire", para que ele não se desfaça, despenque ou transborde da espátula até o prato. E, com isso, eu julgava ter esgotado o assunto.

Mas, agora, há um novo produto a ser fatiado. É a Constituição brasileira. Depois que Renan, Lewandowski e outros inauguraram esta prática, não há porque não continuar dividindo-a em fatias, a gosto do cliente.



08 de setembro de 2016
Ruy Castro, Folha de SP

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